Dá para comprar roupas, sapatos, artigos de cama, mesa e banho, eletrodomésticos. E agora também pagar boletos, fazer saques, empréstimos, pagamentos, transferências. É crescente a lista de grandes varejistas no país que, muito além daquele antigo cartãozinho vinculado à loja em que se podia pagar as compras feitas ali em dezenas de vezes, decidiram ampliar a oferta de serviços financeiros e passaram a atuar quase como bancos. O Magazine Luiza lançará sua conta digital neste mês. A Renner também dará esse passo até o final deste primeiro semestre. Estão seguindo o caminho de Via Varejo — dona de Pontofrio e Casas Bahia —, Carrefour e outras.
O objetivo principal não é rivalizar com os bancos, mas, a partir dos milhões de clientes, aprofundar os conhecimentos sobre seus hábitos de consumo, e, assim, melhorar as vendas e o resultado. Sabendo quando a pessoa tem dinheiro, onde, quando e como prefere fazer suas compras, e muito mais, as varejistas ampliam seu potencial de entregar a esse cliente o que ele deseja e até o que não deseja.
Essas “financeiras” são instituições constituídas em separado da “varejista-mãe”. Com plataformas digitais, elas vão bem além da oferta de crédito para financiar novas compras na própria rede. Oferecem a oportunidade de abertura de conta digital em minutos e sem necessidade de comprovação de renda, como já fazem muitos bancos, tanto os tradicionais como os puramente digitais. Os serviços também são parecidos, sobretudo com novas soluções de pagamento, como por meio de maquininhas digitais ou via leitura de QR Code pelo celular.
O diferencial a favor das varejistas na comparação com os bancos — que, não custa lembrar, eram até pouco tempo seus parceiros na emissão dos cartões ligados exclusivamente às lojas — é que seu cliente já costuma visitar suas lojas, tem uma relação antiga e informal com os estabelecimentos. Quando se trata das classes C, D e E, obviamente as mais “desbancarizadas”, o jargão do setor para quem não está incluído formalmente no sistema financeiro, entrar numa loja é muito mais fácil e menos intimidador do que pisar numa agência bancária.
Essa estratégia está, por exemplo, no centro da operação lançada pela Via Varejo, o banQi, parceria com a fintech Airfox, que permite o uso da rede de lojas físicas das Casas Bahia para atendimento e alguns serviços — não custa lembrar que a Via Varejo tem uma base de 60 milhões de clientes. O grupo dos sem conta-corrente ou conta-poupança cobriria 45 milhões de pessoas, sendo a maioria delas (86%) nas classes C, D e E, segundo levantamento do instituto de pesquisa Locomotiva. Entre eles, sete em cada dez compram fiado, e mais da metade já fez pagamentos utilizando cartão emprestado por algum conhecido. “São pessoas que guardam dinheiro até ter o suficiente para comprar à vista o que precisam, do telefone à geladeira”, disse Renato Meirelles, presidente do Locomotiva. “O consumidor médio adora o varejo e odeia os bancos, que têm ‘detector de pobre’ na entrada. Há um medo do constrangimento, de não ser aceito”, afirmou Meirelles.
“Um dos trunfos dos varejistas são as redes de lojas, que os consumidores já frequentam, ao contrário das agências bancárias, onde os mais pobres têm medo de não ser bem recebidos, disse Renato Meirelles, que pesquisa os hábitos dessa fatia da população”
O movimento não se limita ao varejo e inclui também empresas originalmente digitais, como o Mercado Livre, que detém o Mercado Pago, e de venda direta, como a Natura. Todas integram o grupo de companhias com instituições financeiras sob seus chapéus ou como parceiras.
Ana Paula Tozzi, sócia da AGR, consultoria especializada em varejo, considera que o movimento tem potencial de fazer girar o setor em nichos negligenciados pelos bancos. “As grandes redes perceberam que os serviços financeiros básicos podem ir além do que já é oferecido. Isso não só promove a bancarização das classes C, D e E, mas também ajuda na formalização da economia”, avaliou.
Esse movimento tem um impacto concreto na estratégia das varejistas. No caso da Renner, se muitas compras com cartões da loja são feitas em uma cidade vizinha, pode ser indicativo do potencial da localidade para abertura de uma loja. Já o cartão de crédito permite entender o padrão de consumo do cliente fora da Renner.
Os resultados da mudança de mercado já começam a ser percebidos nos balanços das empresas. No terceiro trimestre do ano passado, a receita da Midway, financeira do Grupo Guararapes, controlador da Riachuelo, foi de R$ 637,1 milhões, 15% maior que no mesmo período do ano anterior. A Midway administra uma carteira de 31,1 milhões de clientes portadores do Cartão Riachuelo. Por meio desses cartões, o grupo oferece, além das operações de vendas, empréstimo pessoal, seguro-desemprego, residencial e para acidentes pessoais, assistência de veículos e odontológica. A Riachuelo aguarda agora sinal verde do Banco Central para lançar também sua operação com conta digital e outros serviços. A estimativa é anunciar o novo serviço até o mês que vem.
No terceiro trimestre de 2019, o Mercado Pago, plataforma de pagamentos do Mercado Livre, registrou alta de 66% em volume de pagamentos, que saltaram para US$ 7,56 bilhões, na comparação com igual período de 2018. Pela primeira vez, as compras feitas fora do site ultrapassaram as realizadas no Mercado Livre, alcançando US$ 4 bilhões. “Esse salto veio principalmente com a solução das maquininhas, lançada em 2015, e mais recentemente com a Carteira Digital, conta que oferece produtos e serviços financeiros via aplicativo. Conseguimos ampliar a oferta de crédito tanto para o comerciante que vende no Mercado Livre ou usando o Mercado Pago, quanto para o consumidor. Isso impulsiona negócios e consumo”, afirmou Tulio Oliveira, vice-presidente do Mercado Pago. A ferramenta também concede empréstimos. Para os comerciantes, geralmente na modalidade de capital de giro, com valores médios de R$ 20 mil a R$ 25 mil. A taxa de juros depende da avaliação de risco de cada tomador — que pode, inclusive, estar listado nos cadastros nacionais de inadimplentes.
Também na venda direta, a transformação das financeiras das companhias em instituições de pagamento é forte. A Natura, de beleza e higiene pessoal, e a Cacau Show, de chocolates, desenvolveram sistemas para oferecer a suas redes de revendedores maquininhas de pagamento e contas digitais. A Natura lançou, em parceria com o Santander, um programa de serviços financeiros e digitalização. Além da maquininha integrada a uma conta digital, a iniciativa conta com um sistema de gestão de vendas e cartão que permite a realização de saques, depósitos, compras e transferências. As vendas da revendedora carioca Simone Hofman, de 45 anos, aumentaram depois que ela passou a receber pagamentos com a maquininha. Antes, seu faturamento mensal girava em torno de R$ 400. Com a tecnologia, passou a variar entre R$ 800 e R$ 1.200. A Natura possibilita também a contratação de microcrédito digital para compras dentro do portfólio de marcas da empresa. Com isso, as revendedoras podem estocar produtos e expandir sua atividade. “O objetivo é fazer a consultora ganhar mais, e aí ganharemos mais também. Se elas fizerem melhores negócios, todo mundo ganha. É também mais um passo para seguir construindo lealdade”, afirmou João Paulo Ferreira, presidente da Natura.
Para Roberto Kanter, professor da FGV, o varejo e os bancos passam a se preocupar com a educação financeira do consumidor, pois é importante que as contas estejam em dia para que ele permaneça economicamente ativo. “Não é interessante para o mercado ter um consumidor endividado demais. Quando ele compromete sua renda por dois anos no financiamento de um produto, deixa de ficar ativo, e isso impacta as vendas. A tendência das empresas é cuidar do cliente para que ele permaneça mais tempo comprando”, disse.
Fonte: Época