O projeto Apollo, lançado pelos Estados Unidos na década de 1960, levou o homem à Lua. O presidente da Nestlé Brasil, Marcelo Melchior, resolveu criar a sua própria versão da incrível aventura que levou o homem a pisar pela primeira vez no satélite natural da Terra: ele quer conhecer e criar vínculos com os seus 42 milhões de consumidores no Brasil.
“O homem foi para a Lua numa época em que tínhamos menos tecnologia do que existe em um celular hoje. E isso virou uma corrida, uma paranoia”, disse Melchior, ao NeoFeed. “Os 42 milhões de consumidores são a nossa Lua.”
Nesta entrevista, Melchior, que comanda uma empresa que faturou R$ 13,75 bilhões no Brasil, em 2018, aborda os diversos desafios da maior companhia de alimentos do mundo, dona de marcas como Nescau, KitKat, Nescafé, Ninho, Leite Moça, entre outras.
E eles não são poucos. Passam por se aproximar de startups, lançar produtos mais saudáveis com menos açúcar e sal, além de alimentos que substituem a carne, como hambúrgueres veganos. Até lojas próprias, para ficar mais perto do consumidor, estão no “cardápio” da Nestlé.
“Estamos cada vez mais abertos e cada vez mais humildes de que boas ideias podem vir de qualquer lugar”, afirmou Melchior. “Se nós ficarmos presos ao nosso legado, as foodtechs vão ser uma ameaça mortal.”
Confira os principais trechos da entrevista:
A Nestlé anunciou investimentos de R$ 1 bilhão para os próximos três anos no Brasil. Uma parte desses recursos será usado em transformação digital. Como você vai investir e o que significa transformação digital para a Nestlé?
Primeiro, acredito que é uma transformação geral da empresa. Chamamos de digital, mas digital tem uma conotação de startups. Transformação digital é uma forma de pensar e de trabalhar de maneira diferente. Evidentemente, estamos trabalhando com metodologias Agile e Scrum e com startups e dados. Mas isso são coisas que já estavam acontecendo. A diferença, que começamos a fazer a partir de junho do ano passado, é que criamos uma área específica de transformação digital, que organiza tudo o que estávamos fazendo. Nós já tínhamos transformação digital nas nossas fábricas, com robôs e com a informação fluindo entre as áreas. Temos até drones, que são usados para checar o perímetro das nossas unidades, para ver se está tudo funcionando direitinho. Porém, não tínhamos uma visão conjunta. Hoje, temos um mapeamento e sabemos tudo o que estamos fazendo e onde estão nossas prioridades.
E onde elas estão?
Temos, atualmente, 42 milhões de brasileiros que são fiéis as marcas da Nestlé. Eu quero saber tudo desses 42 milhões de consumidores. Quero ter um vínculo cada vez mais forte com esses consumidores, porque, quanto mais forte for esse vínculo, mais eu blindo a relação que temos juntos.
A Nestlé já está fazendo isso?
Estou fazendo isso com sete milhões de consumidores.
De que forma?
Nós temos um relacionamento com eles de diversas formas. Por exemplo, através da compra de Dolce Gusto na parte de e-commerce ou através de participações nas nossas promoções. Porém, o relacionamento com esses sete milhões de consumidores ainda não está no nível que gostaria. Vamos dizer assim: nós conhecemos, mais ainda não somos amigos íntimos. Quero que sejamos amigos íntimos. Quero saber quando estamos fazendo um negócio legal, como ele está se sentindo e que coisas nós podemos fazer para melhorar a qualidade de vida dele.
O objetivo é chegar aos 42 milhões de consumidores?
Esse é o oceano azul. E estamos bem longe, como você pode imaginar. São sete milhões e ainda somos amigos que nos conhecemos apenas de vista. Precisamos virar sete milhões de amigos íntimos para depois chegar a 42 milhões de amigos íntimos.
A ideia é criar, então, um grande banco de dados desses 42 milhões de consumidores para entender seus comportamentos?
Esquece a palavra banco de dados. Acho até legal, pois é a tecnologia que vai nos ajudar. O que eu quero é criar um vínculo com eles. Esse vínculo, se a tecnologia é um banco de dados ou se é reconhecimento facial, para mim é irrelevante. A tecnologia só vai nos ajudar a chegar a eles. Mas quando você fala em um banco de dados, eu não gosto porque parece um termo de big brother. E não é isso o que eu quero. Eu quero criar um vínculo, algo que sempre fizemos, mas à maneira antiga. Hoje em dia o vínculo pode ser mais direto e mais pessoal.
Vou insistir: você já sabe como fazer isso?
Não tenho a menor ideia.
Não?
Mas o legal é isso. Lembra do Kennedy (o ex-presidente do EUA, John F. Kennedy – 1917/1963)? Ele chegou e falou: ‘nós vamos para a Lua’. Na época, não tinha nem tecnologia para ir à Lua. E o homem foi para a Lua numa época em que tínhamos menos tecnologia do que existe em um celular hoje. E isso virou uma corrida, uma paranoia. Os 42 milhões de consumidores são a nossa Lua.
Você está se referindo ao projeto Apollo, que levou o homem à Lua. Qual o projeto Apollo da Nestlé?
Hoje, temos uma área que nos ajuda a detectar e a trabalhar nossos processos. Estamos muito mais abertos ao mundo exterior. Isso é um negócio que é facilmente dito, mas dificilmente executado. Muita gente fala ‘nós somos totalmente abertos’. Mas isso é uma mentira. Você precisa ser humilde e, às vezes, encontrar uma startup que possa ter uma solução que você não tem, mesmo com os seus milhões ou bilhões de reais que investe em pesquisa e desenvolvimento. É preciso se abrir ao externo, entender o que está acontecendo no mundo em geral e conseguir que a sua equipe esteja sintonizada o suficiente ou receptiva o suficiente para poder adaptar e adotar qualquer boa prática que exista lá fora.
“Você precisa ser humilde e, às vezes, encontrar uma startup que possa ter uma solução que você não tem”
Você pode dar exemplos?
Trabalhamos com startups que nos ajudam a resolver problemas ou a ver oportunidades. Estamos também abertos a trazer inovações que não venham de nós. Lançamos recentemente um desafio: queríamos eliminar os canudos das nossas embalagens de Nescau. São 320 milhões de canudos por ano. Como podemos fazer isso? Não havia solução técnica no Brasil. Mas existia uma empresa na Coreia que fazia canudos de papel, mas não tinha como colar na embalagem. A equipe veio com uma proposta de fazer um “multipack” de seis Nescaus com os canudos lá dentro. Vamos, então, fazer mais? Vamos lançar uma embalagem de Nescau sem canudo. E como o consumidor vai tomar? Se vira. Quer ajudar o planeta? Nós também. É só tirar o canudo.
Isso já foi lançado no Brasil?
Sim e causou muitas conversas. E, surpreendentemente, mais de 90% das conversas foram positivas porque é uma empresa que tentou fazer. Nossos clientes apoiaram 100%. E, agora, já lançamos uma embalagem com papel industrial com um canudo retinho, que não se dobra. No passado, ele também era retinho e ninguém nunca morreu por usar esse tipo de canudo. Por que estou te contando essa história? Porque as soluções vieram de fora. É mais caro? Sim. Mas nós temos que começar. Aliás, nenhuma nova solução de tecnologia começa mais barata que as existentes. Basta ver o carro elétrico, que custa muito mais caro que o movido a gasolina.
O que mais vocês têm feito?
Alguns projetos são menos sexy. Por exemplo, nós vendíamos o nosso produto e não tínhamos visibilidade suficiente do que o cliente vendia para o consumidor final. Chegamos aos nossos clientes (os supermercados e os atacadistas) e dissemos que precisávamos dos dados deles. Eu não quero dados da concorrência, só os meus. Depois de muita explicação, todos abriram os dados. Atualmente, eu sei como foram 85% das nossas vendas na semana passada. Mas a ideia é saber em tempo real. Com isso, tenho uma administração do meu supply chain muito melhor. Inclusive, já posso fazer previsões de demanda.
A Nestlé está comprando startups para trazer essa inovação externa?
Compramos participação majoritária numa startup do Equador chamada Terrafertil (em fevereiro de 2018). Ela é uma startup de produtos de origem vegetal e que trabalha com uma fruta de origem andina, chamada golden berry. Queríamos entender mais desse ecossistema e conhecer melhor uma marca que nasceu do zero. Inclusive, estamos usando essa plataforma para testar conceitos, sabores e produtos. Além de testar, você tem uma forma diferente de conversar. Estava com os fundadores e perguntei como eles faziam a racionalização de lançamento de produtos. Ele não entendeu a pergunta. Eu insisti, pois ele lançava produtos o tempo todo. E ele me respondeu: ‘sim, eu lanço, se não funciona, eu tiro’.
Esse é um pensamento de startup, que sempre pensa em falhar rápido.
Pois é. Eu sou um idiota (risos). Como eu faço uma pergunta dessas?
Não é uma questão de escala? Se a Nestlé falhar, o tombo é gigantesco. Agora, em uma startup, o tombo é menor.
Pode ser que seja. Mas é também um pouco de mentalidade. Imagina lançar o Ninho sabor de morango. Mas se ele não funciona, para desativar todos os sistemas, o negócio demora. Mas não precisa demorar. As pessoas estão lá e deviam dizer: ‘sabe esse negócio de morango? Não funcionou. Então, tira’. Para a produção e pronto. Nós vamos muito no velho estilo. Esses caras aqui (referindo-se a Terrafertil) lançam 50 produtos num mês. E se não funcionou, no mês seguinte, eles já têm 30 coisas novas.
É isso que você quer aprender com as startups?
Parte é isso. Mas eu também quero aprender com o golden berry. Eu quero usar o golden berry como ingrediente de vários produtos. Ele é uma fruta dos Andes que existe há muitos anos. É uma fruta ácida, que tem propriedades nutricionais extraordinárias e tem mais vitamina C do que uma laranja. Mas tem um montão de coisas que nós temos de aprender com eles.
A Nestlé é a maior empresa de alimentos do mundo. Mas hoje diversas foodtechs estão revolucionando o setor. Elas são uma ameaça à Nestlé?
Eu acho que se nós ficarmos presos ao nosso legado, as foodtechs vão ser uma ameaça mortal. Porém, estamos cada vez mais abertos e cada vez mais humildes de que boas ideias podem vir de qualquer lugar. Temos de ter a humildade de trabalhar com eles ou simplesmente tentar fazer negócios com eles. Porque muitas dessas empresas, quando estão crescendo, precisam de um parceiro como nós. E nós precisamos deles. Nós temos recursos e, às vezes, eles não têm como aplicar a tecnologia em escala. Temos um histórico muito bom de nos adaptarmos ao mercado. Eu sou muito otimista neste sentido.
“Se nós ficarmos presos ao nosso legado, as foodtechs vão ser uma ameaça mortal”
A Nestlé também está investindo nessa onda de “carne vegana”?
Sim. Nos EUA, lançamos o hambúrguer vegetal. Estamos vendo uma oportunidade em tudo o que é vegetal. E o consumidor está muito interessado nisso.
Pretende trazer para cá?
Ainda não sei. O supply chain é meio complicado. Precisamos ver os preços no Brasil. Mas pode ser uma alternativa.
É uma área em que a Nestlé está investindo muito?
Estamos muito sintonizados com as coisas que estão acontecendo e lançamos muitas das nossas marcas em versão vegetal. Temos, por exemplo, o Ninho vegetal e Leite Moça vegetal. Temos também diversas bebidas de origem vegetal. Estamos cada vez mais trabalhando nessas tendências de produtos mais saudáveis, retirando algumas coisas, como o açúcar. Mas sem nunca perder o sabor. Estamos numa indústria em que o sabor é fundamental. Quando retiramos o açúcar, o sabor precisa ser similar ou igual ao anterior. Por isso que fazemos gradativamente, se não há uma rejeição do consumidor.
E como tem sido a aceitação do consumidor?
A demanda ainda é pequena. Mesmo porque, às vezes, você tem um preço superior. Não necessariamente no produto vegetal. Mas quando você está falando de orgânico, o preço é aproximadamente 50% superior.
Como fazer para vencer a questão do preço?
Por isso que a gente produz. E fixamos o preço em função do que o consumidor pode pagar ou deve pagar. E não em função do nosso custo. Não conseguimos ainda fazer 100% assim. Mas tentamos colocar preços atrativos. Mas não é só o preço que assusta. Às vezes, as pessoas preferem os produtos normais.
A Nestlé tem apostado também em lojas próprias. Qual é a estratégia? O objetivo é ter um relacionamento direto com o consumidor?
Abrimos uma que chamamos de Chocolatory, no Shopping Morumbi, em São Paulo. É uma loja na qual você compra sabores de KitKat completamente fora do que existe no mercado. Nela, você pode, por exemplo, comprar um KitKat com uma foto sua ou de seu filho. Tudo isso aumenta o vínculo com o consumidor. É uma experiência única. Mas temos de fazer de uma forma escalável para que uma pessoa que more na Zona Leste de São Paulo não precise ir para o Shopping Morumbi para fazer a experiência. Essas lojas estão nos dando a possibilidade de conhecer mais o nosso consumidor, saber mais coisas e ser mais rápido. Poderemos vir a lançar linhas de KitKats inspiradas na loja.
A Nestlé tem outras lojas?
Temos a loja de Nestlé como um todo, chamada de Empório Nestlé. Tenho também quiosques de Garoto em Vitória e nas cidades do Nordeste. Tenho ainda cafeterias Nescafé. E estamos fazendo um teste com uma brigaderia Leite Moça.
A ideia é ter franquias ou são lojas flagships para testar conceitos?
Queremos fazer a experiência escalável. Estamos ainda vendo quais têm um modelo de negócios. E se vamos sozinhos ou com franquias.
Não há preocupação de haver um conflito com o seu canal de distribuição?
São experiências totalmente diferentes. Na brigaderia Leite Moça, o consumidor vai ter brigadeiro, bolos. Na Chocolatory, não vendemos nenhum produto que você encontra no supermercado. Agora, na Empório Nestlé, são os mesmo produtos. Nessa não devemos entrar porque a experiência é a mesma de um supermercado.
Fonte: NeoFeed