Prejuízo, lojas fechadas, trocas de presidente… a maior empresa do mundo segue em marcha lenta no país
Sempre que se fala em Walmart logo surgem as analogias esperadas: se a varejista americana fosse um país, teria o PIB de, por exemplo, uma Venezuela. Ou o equivalente à riqueza somada de Chile e Peru. Responderia ainda por um terço do produto interno brasileiro. Não faltam parâmetros geoeconômicos para medir o gigantismo da empresa, dona de receitas de US$ 485 bilhões e de uma força de trabalho de 2,2 milhões de pessoas (o contingente do exército da China, excluindo reservistas, segundo a revista The Economist). Ocorre que a nação Walmart nem sempre transforma esse produto interno bruto em lucro certo e líquido. Tome o Brasil como exemplo. Em 2014, a empresa, terceira colocada no varejo nacional, faturou R$ 29,6 bilhões, R$ 1 bilhão a mais do que no ano anterior. Mas registrou prejuízo de cerca de R$ 200 milhões, segundo cálculos de especialistas do setor (a companhia não divulga os resultados consolidados por região). Analistas de mercado, ex-funcionários e fornecedores ouvidos pela NEGÓCIOS acreditam que a operação brasileira jamais tenha fechado um ano com a última linha do balanço no azul. O Walmart não comenta.
“Quando desembarcaram por aqui, a mensagem era clara: o Walmart iria conquistar o Brasil passando por cima da concorrência como um rolo compressor”, diz Rubens Batista, consultor especializado em varejo e sócio da consultoria 2B Partners. Duas décadas após, no entanto, o quadro é bem diferente. A empresa não consegue sair da terceira posição do varejo nacional. Está bem longe do líder Pão de Açúcar, que fatura duas vezes mais, R$ 72 bilhões, tem o quádruplo de lojas e o dobro de funcionários. Também não conseguiu ultrapassar o Carrefour, segundo do ranking, ainda que a rede francesa tenha vivido seguidas crises no país. Em janeiro o Walmart anunciou o fechamento de 60 de suas 540 lojas no país, como parte de um plano de encerramento global de pontos de venda deficitários (no mundo, serão 270). E, mais uma vez, trocou de presidente. Saiu Guilherme Loureiro, rumo à direção do grupo na América Latina, e entrou Flavio Cotini, ex-Unilever. É o quarto presidente a assumir a empresa nos últimos oito anos, uma média de um CEO a cada dois anos. No Brasil, grandes companhias costumam promover mudanças na presidência a cada cinco anos, segundo estudo da consultoria Strategy& (antiga Booz&Company). E como se tudo isso não bastasse, o grupo enfrenta ainda uma investigação de autoridades americanas por suposto pagamento de propinas para a construção de lojas em Brasília.
O cenário é preocupante, ainda mais levando em conta que a empresa já encerrou suas operações em mercados onde também registrou prejuízos, como a Coreia do Sul e a Alemanha. Piora ainda mais com os problemas enfrentados pela matriz e a necessidade de cortar despesas. No ano passado, o Walmart perdeu o posto de maior valor de mercado do mundo para a Amazon, dona de um faturamento cinco vezes menor. A briga entre Walmart e Amazon é uma mostra de como, mesmo nos Estados Unidos, ser um gigante pode não ser o suficiente. Quando o Walmart lançou sua loja online, em 1999, a Amazon faturava US$ 1,6 bilhão. Este ano, o e-commerce do Walmart deve faturar cerca de US$ 14 bilhões – enquanto a Amazon vai superar R$ 100 bilhões. Isso significa que a velocidade de crescimento da empresa de Jeff Bezos no comércio eletrônico é quase dez vezes maior que a da varejista.
O Walmart, cuja história sempre foi marcada pela inovação, parece ter perdido a mão. Ir a um supermercado, hoje, envolve encarar trânsito, pegar um carrinho, circular por corredores, pegar fila na hora de pagar, carregar o carro, pegar trânsito novamente, descarregar os pacotes e guardar todos os itens em casa. Frente a esse cenário, fazer compras com um clique e ter os produtos entregues na sua casa parece uma opção mais atraente. Pesquisas feitas por institutos americanos colocam a Amazon no topo da lista de melhor experiência de compra nos últimos anos. Como resultado, para manter seus acionistas por perto, o Walmart teve de pagar US$ 6 bilhões nos últimos dois anos em programas de recompra de ações – além de distribuir parcelas generosas do lucro na forma de dividendos. A Amazon nunca precisou gastar um centavo nesse tipo de estratégia. Na prática, isso significa que uma empresa precisa pagar pelo presente, enquanto a outra aposta no futuro. Criador de conceitos, de repente o Walmart se viu transformado em seguidor de um novo paradigma, estabelecido pela concorrência.
A consequência era esperada: a redução da expectativa de lucro em 2016 está derrubando o valor das ações na Bolsa de Nova York – em um único dia, no final do ano passado, elas chegaram a recuar quase 10%. “Essa empresa tem mais de 50 anos e o varejo mudou”, admitiu o presidente mundial, Doug McMillon. “O que o Walmart pode fazer e que ninguém mais pode é casar o e-commerce com nossos ativos físicos para entregar uma experiência de compra perfeita, em grande escala.”
Força cultural
Mas enquanto isso não ocorre, fica a questão: por que o Walmart não decola no Brasil. É claro que a própria crise da economia brasileira afetou os resultados do grupo. Na última década, o varejo cresceu quase 5% ao ano, em média. Já em 2016, a expectativa é de queda de 3%, segundo o Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo e Mercado de Consumo (Ibevar). Mas os problemas do Walmart vão muito além da conjuntura – e não vêm de agora. Procurados, os porta-vozes da companhia não concederam entrevistas. Mas, segundo uma série de especialistas, concorrentes e ex-executivos ouvidos por NEGÓCIOS, há um problema fundamental de adaptação do negócio da empresa à cultura de compras brasileira. “Faltou e falta tropicalizar o Walmart”, diz Paulo Cury, sócio da consultoria Condere. Como o modelo é extraordinariamente bem-sucedido nos Estados Unidos, tende a ser replicado à risca em outros países – ignorando as características específicas de cada região. Em 1995, os primeiros supermercados do Walmart abertos no Brasil tinham em suas prateleiras itens como equipamentos para beisebol e casacos para neve. Até itens corriqueiros das lojas, como produtos de limpeza e esfregões, eram importados dos Estados Unidos. O mix de produtos foi adaptado. O modelo de negócios, não. “A ideia de manter o sistema, mesmo com defeitos, vem da crença de que, algum dia, eles vão acabar educando o consumidor”, afirma um ex-diretor. “Deu certo no México, e a expectativa é fazer o mesmo no Brasil.” O problema é que a rede já está em sua segunda década de operação no país. Parece haver uma falta de sintonia entre os desejos da empresa e a realidade do mercado.
Do ponto de vista dos negócios, a principal marca registrada dessa cultura é a oferta de preços, em média, mais baixos que os dos concorrentes, uma estratégia conhecida como EDLP, ou Every Day Low Price, algo como Preço Baixo Todos os Dias. O EDLP é um mantra dentro do Walmart, uma marca registrada da companhia. É justamente esse o problema. O modelo do EDLP funciona bem nos Estados Unidos, devido à escala da operação. Mas tem dificuldade em um mercado menor e com menos fornecedores, como o brasileiro. “É um processo que castiga a margem e sacrifica muito a operação”, diz Batista. Mas a principal questão é que o modelo, curiosamente, não pegou no Brasil – é um bicho estranho que pouca gente conhece. Por aqui, o sistema praticado no mercado é conhecido como High-Low (Alto e Baixo): promoção em alguns itens e preço mais elevado em outros, para compensar. O consumidor brasileiro associa a economia na conta a promoções e não a uma estratégia comercial para toda a loja. “É uma questão de percepção: a oferta de um produto gera a sensação de que o carrinho todo vai sair mais barato”, diz Jeferson Mola, professor da Universidade Anhembi Morumbi.
Há alguns anos, a operação brasileira tentou mudar o modelo do EDLP para o High-Low, mas acabou tendo de voltar atrás. Motivo: falta de autonomia dos executivos, CEOs incluídos. “Os chefes precisam consultar Bentonville até para questões corriqueiras”, afirma um executivo com conhecimento da empresa. Em parte, pela cultura centralizadora da empresa. Por outra, pelo baixo peso do Brasil dentro do grupo. Convertendo a moeda, são vendas de US$ 7 bilhões por ano, cerca de 1% do faturamento mundial. “É uma operação relativamente pequena, que precisa de adaptações, dentro de um negócio muito grande. Vira aquela coisa: a chefia não discute, não ouve e vai tocando, achando que uma hora dá certo”, diz o executivo.
Marcação cerrada
Claro, nem todos os problemas do Walmart por aqui são derivados da falta de adaptação ao Brasil. Alguns deles se devem ao fato do mercado local ser “duríssimo, com concorrentes bem estabelecidos, extremamente profissionais e com relações consolidadas com fornecedores”, segundo Antônio César Carvalho de Oliveira, diretor da consultoria Acomp. Um exemplo dessa concorrência acirrada vem do Carrefour. Quando o grupo americano chegou ao país, a rede francesa decidiu atacar em vez de se defender. Mapeou onde seriam as novas lojas do novo concorrente e reforçou suas unidades próximas, aumentando a equipe, o sortimento e o estoque. Comprou um terreno bem ao lado do local de um dos primeiros hipermercados do Walmart, em Osasco, construiu uma nova unidade e mandou para lá um time experiente, liderado por um de seus melhores diretores. Foi definido que essa loja não teria responsabilidade de fazer dinheiro: seria uma unidade de combate, por assim dizer, com preços mais baixos e promoções frequentes. “O resultado foi uma carnificina”, diz Batista, da 2B. Sem uma equipe experiente, com sistemas pouco adaptados ao Brasil e produtos para americano ver, a unidade do Walmart sofreu com baixo movimento por anos e anos.
Outros desafios, no entanto, são de responsabilidade da própria empresa, como a falta de integração entre suas diferentes bandeiras no país. Nos Estados Unidos, o modelo de negócios do Walmart funciona devido à sua altíssima escala – são cerca de 5 mil lojas por lá –, e a rede tenta replicar isso em outros países. No Brasil, foram compradas diversas redes regionais, como Bompreço, Big e Maxxi. Contribuiu para essa estratégia o poder de fogo do grupo. Em 2004, por exemplo, o Pão de Açúcar negociava a compra da rede nordestina Bompreço com os executivos brasileiros da companhia, que pertencia à holandesa Royal Ahold. No meio da negociação, chegou a informação que as conversas teriam de ser interrompidas. Motivo: o Walmart americano havia acabado de fechar o negócio, conversando diretamente com os holandeses, sem sequer passar pelos executivos brasileiros.
O problema, no entanto, é que o Walmart brasileiro nunca deglutiu as redes que abocanhou. Sistemas de operações, logística e a parte administrativa dessas unidades adquiridas ainda não foram integrados. O Walmart usa vários sistemas diferentes de gestão em suas bandeiras espalhadas pelo país. A previsão é que a integração das regiões, iniciada em 2010, só deve ser concluída daqui a 18 meses, na melhor das hipóteses.
O grupo também padece de apostas feitas em segmentos que ainda não se mostraram rentáveis. O Walmart começou a atuar no Brasil com dois modelos de negócios diferentes, ao mesmo tempo: supercenter (super e hipermercados) e clube de compras, por meio da bandeira Sam’s Club. Foi necessário montar e treinar dois times, o que também dobrou os custos da estrutura. Mas o clube de compras ainda não decolou por aqui. No exterior, empresas como a americana CostCo atuam lado a lado com a indústria para desenvolver produtos específicos para esse modelo. Aqui, em um estágio bem menos amadurecido, o apelo não é a exclusividade de itens, mas sim o preço – o que nem todos veem como algo tão vantajoso, já que a anuidade paga pelos clientes está na faixa dos R$ 65. É um modelo mais focado no profissional (pequenos empresários e empreendedores individuais) do que na pessoa física.
O problema é que a opção do Walmart em reforçar seu clube de compras veio exatamente quando a preferência do consumidor brasileiro – em especial o da nova classe média – recaiu sobre os chamados atacarejos. Desde 2008, o atacarejo cresceu a 22% ao ano em média, segundo a consultoria Bain & Company, o dobro da média do varejo de alimentos. Com foco no Sam’s Club, a operação do Walmart no segmento, sob a bandeira Maxxi, recebeu pouco investimento. O adjetivo mais suave dado pelos analistas para a operação é “problemática”. Ao mesmo tempo, os concorrentes se moveram. A rede Atacadão já representa 60% da receita do Carrefour no Brasil. Dentro do Pão de Açúcar, a bandeira Assaí é a estrela do momento. Uma bela oportunidade, até agora desperdiçada.
Gigantismo
Há um outro “pequeno” detalhe que atrapalha a vida do Walmart no Brasil: ele é grande demais. Não em tamanho da rede, mas em espaço físico. Em média, segundo a Associação Brasileira de Supermercados (Abras), cada loja do Walmart tem 2.838 metros quadrados, mais do que o dobro dos 1.336 metros quadrados do Pão de Açúcar. E isso virou uma dor de cabeça.
Quando Sam Walton – fundador do Walmart – abriu sua primeira loja, em 1952, criou um conceito revolucionário para a época: juntar todas as necessidades básicas das famílias em um único lugar, pelo preço mais baixo. Isso facilitou de modo decisivo o processo de compras. Por aqui, esse modelo de grandes lojas ganhou popularidade durante os anos 80 e 90. Os hipermercados reuniam todos os tipos de produtos imagináveis – de pneus a fraldas infantis – e ainda eram um programa familiar, um símbolo de status, especialmente para famílias com menor poder aquisitivo. Mas os tempos mudaram. O perfil social do país se alterou, a inflação diminuiu e a preocupação com os preços deixou de ser exclusiva. Itens como comodidade e um mix mais especializado de produtos passaram a pesar mais. Os shoppings ganharam espaço como palco da diversão da família e o número de pessoas solteiras e separadas disparou. Tudo isso impulsionou as lojas de pequeno porte, mais espalhadas e bem localizadas. Segundo números da consultoria Bain & Company, o segmento formado por pequenas unidades já ultrapassou em importância os hipermercados. Elas já movimentam R$ 80 bilhões por ano, frente aos R$ 66 bilhões das megalojas.
Ao mesmo tempo, a disparada no preço do metro quadrado nas grandes cidades tornou proibitivo o custo para um supermercado. Há uma década, construía-se um super “médio” por menos de R$ 50 milhões, somando o preço do terreno e da construção; hoje em dia, esse valor dificilmente fica abaixo dos R$ 100 milhões. O chamado payback – tempo que a obra demora para se pagar – está em sete anos. “É um investimento caríssimo em um país com taxas de juros elevadas”, diz Cláudio Felisoni de Angelo, presidente do Ibevar. Como resultado, Carrefour e Pão de Açúcar estão correndo para abrirem unidades nesse formato conveniência – sob as marcas Express e Minuto, respectivamente –, enquanto o Walmart segue empacado com as lojas de grande porte.
Mesmo as unidades maiores, concebidas segundo o modelo americano – organizado, silencioso, com prateleiras imaculadamente arrumadas e sem cartazes de promoção – parecem não fazer com que os clientes nacionais se sintam convidados a comprar. “O que faz sucesso aqui é a festa, a bagunça, o locutor falando sobre as promoções no megafone”, diz Enéas Pestana, ex-presidente do Pão de Açúcar e recentemente empossado no comando da JBS. “O Abilio [Diniz] costumava me dizer que hipermercado morno é hipermercado morto. A loja do Walmart é desanimada, parece um cemitério.” O problema com a loja vai além. Uma pesquisa do grupo, feita anos atrás junto a uma consultoria, descobriu que poucas mulheres entravam nas lojas devido ao desconforto gerado pelo frio excessivo do ar-condicionado. Tudo isso aparece nos resultados. Segundo a Abras, o faturamento anual por metro quadrado do Walmart é de R$ 19 mil, frente R$ 25 mil do Pão de Açúcar. O faturamento por funcionário também é inferior: R$ 396 mil, ante R$ 452 mil da rede líder.
Tentativa de reação
Frente ao panorama negativo, parte do mercado vê de modo positivo as ações mais recentes. “O fechamento de lojas é sadio. Eram unidades que se tornaram muito deficitárias e estavam afetando os resultados do grupo”, diz Márcio Roldão, sócio da consultoria MaxValue. A troca na presidência também foi vista como um indicativo de que a empresa irá se concentrar na redução de custos. Foi nessa área que o novo CEO Flavio Cotini se destacou em suas experiências anteriores, na Unilever e Diageo.
Outro ponto visto como positivo é o investimento pesado feito na operação brasileira de e-commerce, que cresce acima dos 10% ao ano. A unidade recebeu o reforço de diversos executivos vindos da Cnova e já reúne mais de mil funcionários. Tem uma estrutura operacional própria, separada do resto da rede, incluindo centros de distribuição exclusivos para as vendas feitas pela internet.
Outros especialistas dizem, no entanto, que fechar lojas, trocar executivos e apostar no e-commerce ainda é muito pouco. “São soluções pontuais, enquanto os problemas são estruturais”, diz Batista. “É preciso tomar as decisões estratégicas, difíceis.” O consultor lista algumas: definir um modelo de negócios. Tentar mudar o sistema de precificação. Ampliar o atacarejo. Decidir se quer ou não investir em pequenas unidades. “E a empresa ainda não sinalizou com nenhuma dessas respostas”, afirma Enéas Pestana.