Por Claudia Penteado | Está na hora de o mundo pisar no freio? A resposta mais natural deveria ser afirmativa, diante do cenário atual – caótico do ponto de vista socioambiental e bastante preocupante diante dos dados sobre o estado geral da saúde mental da humanidade.
O desejo pela desaceleração de ritmo de vida, de uso de telas e de consumo tem aparecido com bastante frequência em estudos de tendências de comportamento mundo afora. Esses estudos – que costumam entrevistar, é preciso lembrar, grupos com níveis mais elevados de renda e segurança econômica – vêm identificando que as pessoas estão ávidas por conexões humanas autênticas e por desacelerar o ritmo de vida, diante do imediatismo imposto pela tecnologia.
Esse desejo, que se desdobra em vários aspectos do comportamento das pessoas e também nos seus hábitos de consumo, não é exatamente novo. Está relacionado, em grande parte, à crescente preocupação com o meio ambiente e à intenção de consumir de maneira mais consciente, o que já se reflete no comportamento de diversas marcas pelo mundo.
Um bom exemplo é a campanha publicitária recente veiculada pela Göteborg Energi, uma das maiores empresas públicas de energia da Suécia, que espalhou em outdoors, anúncios em ônibus e outras peças de mídia exterior o seguinte convite: “Faça menos pelo clima – comprando menos, comendo menos carne, usando menos plástico, fazendo menos viagens de longa distância e, claro, usando a eletricidade de forma mais inteligente”. A campanha chegou a outros países e chegou a ser comentada pelos delegados da Conferência da ONU sobre o Clima, COP28, em Dubai, nos Emirados Árabes.
Outro aspecto da desaceleração que aparece, cada vez mais, como tendência de comportamento é fruto do esgotamento de um ritmo eufórico registrado ao longo dos últimos dois anos.
“O que vemos agora é uma equalização, o reequilíbrio depois de um momento pós-pandemia de muita expansão e euforia”, analisa Stella Pirani, diretora de estratégia da VML no Brasil, agência responsável pelo estudo “The Future 100: 2024”, que ouviu 9 mil pessoas com mais de 18 anos em nove mercados (entre eles Brasil) e é dividido em setores como beleza, luxo, saúde e inovação. Segundo ele, há uma resposta à aceleração do ritmo de novas tendências e produtos lançados no mercado em plataformas igualmente “aceleradas” como TikTok. Nas diferentes partes do mundo, o movimento de desaceleração ocorre de maneiras distintas.
No chamado norte global, há grupos de consumidores que veem valor na desaceleração do consumo, o que leva, por exemplo, designers de moda como a britânica Phoebe Philo a evitar a abordagem sazonal padrão para as suas coleções e optar pelo lançamento limitado de peças “desenvolvidas para durar”.
O estudo menciona também a escolha da marca francesa de luxo Hermès por produzir menos variedade de produtos, mais inovadores, enquanto outra marca de beleza, a americana Dieux Skin, estabeleceu como missão vender menos itens, que duram mais (como a máscara de olhos reutilizável Forever Eyemask).
Os dois movimentos se enquadram na tendência (mais forte no norte global) intitulada “slow beauty” (beleza lenta), que tem levado diversas marcas a investirem em matérias-primas mais naturais e de melhor qualidade, o que acaba por desacelerar naturalmente o ritmo de produção – pois cada produto leva mais tempo para ser feito.
O movimento da beleza lenta se materializa principalmente entre marcas de luxo do segmento, como a australiana Aesop, que a Natura vendeu recentemente para a L’Oréal. Procurada no Brasil para comentar a tendência, a L’Oréal afirmou não ter por aqui um porta-voz da Aesop.
O relatório da VML vai mais longe: vê na escolha da Pantone para a Cor do Ano de 2024, “Peach Fuzz” (algo como “pêssego suave”), uma espécie de ilustração desse desejo de desaceleração. Nota que jovens da Geração Z se mostram cansados da rapidez das tendências nas redes sociais e abertos para optar por modos de vida mais lentos. Quais? O relatório sugere que, em 2024, haverá um aumento da busca por qualidade de vida, com valorização da comunidade e da conexão interpessoal. São tendências que aparecem mais fortemente no Brasil.
Em conversa com o Valor, Karen Cavalcanti, sócia-diretora da Mosaiclab, empresa de pesquisa de mercado da Gouvêa Ecosystem, afirma que o consumidor, de uma maneira geral, é dicotômico por natureza. E é preciso sempre lembrar de que “consumidor” estamos falando. Desacelerações de consumo, quando de fato ocorrem, podem ter raízes muito distintas.
“Vivemos, no passado, épocas de pós-guerra, eras de pujança econômica global, de booms de consumo e crescimento como referência, depois de períodos de escassez muito grandes. Na medida em que as pessoas passaram a nascer em ambientes de maior abundância, já ‘tendo’ coisas, o consumo em si ganhou outras nuances. Em décadas recentes, passou-se a reconhecer a limitação de recursos no mundo, enquanto produzir e consumir tornou-se mais caro”, comenta.
No mundo todo, a inflação e altos impostos, além da falta global de insumos causados por guerras, levaram, entre outras dificuldades, à redução do consumo, em muitas categorias. Paralelamente, entre os consumidores que “já têm tudo”, como ela diz, surgiu uma tendência de ser mais racional e reflexivo nas escolhas: é o chamado “smart consuming”, facilitado pelas ferramentas digitais.
“Hoje é mais fácil comparar preços, e há mais oferta. O smart consumer é mais crítico, tem mais repertório para questionar porque pesquisa, acessa opiniões de quem comprou, segue sugestões de influenciadores em quem confia. Há, portanto, um freio econômico, e há um freio comportamental”, comenta.
Segundo Cavalcanti, a pandemia gerou na humanidade um medo coletivo muito grande, e isso levou a um período de valorização das experiências – em detrimento da aquisição de coisas. No entanto, isso tem levado a outros tipos de consumo.
Mesmo entre as classes com maior poder aquisitivo e onde muitas das tendências de desaceleração são identificadas, o consumidor típico não é “slow” o tempo todo, diz. Em algumas microbolhas ele pode, por exemplo, ter decidido consumir menos roupas e adotar uma bicicleta elétrica como principal meio de transporte, defendendo a sustentabilidade, enquanto em categorias como eletroeletrônicos e viagens ele se mantém um “heavy user” (usuário intenso). O consumo “slow”, segundo Cavalcanti, faz parte do movimento pendular natural das pessoas, que oscilam muitas vezes entre ele e momentos de hiperconsumismo.
“O consumidor é pendular por natureza. Até porque o que move o mundo é o capitalismo. A conta não fecha muito na prática, dentro das camadas de realidade de viver em um mundo onde consumir é existir”, diz a especialista.
No mercado de luxo, especialmente, há uma preferência por produtos mais duradouros e uma janela para novos tipos de consumo, como o turismo mais experiencial. O “slow” se manifesta na preferência cada vez maior por experiências exclusivas, vividas em ambientes mais privados e menos exibicionistas de status. O luxo ostensivo ainda existe, mas há alguns anos cresce o chamado “luxo de experiência”.
Em outra esfera, o movimento global de comércio e aluguel de coisas usadas segue em franco crescimento e, quem diria, também nos apresenta um paradoxo. Ele não se enquadra exatamente numa “desaceleração” do consumo, mas cumpre seu papel em reduzir, em alguma medida, a circulação de itens novos no mercado. Pode ter um papel em democratizar e também prolongar a vida de peças, promovendo a ideia do “consumo consciente”.
Há, no entanto, correntes que argumentam que a certeza de conseguir vender, rapidamente, suas peças de roupas e acessórios para brechós e serviços de aluguel de roupas de luxo tem levado muitas pessoas a consumir ainda mais, sem critério e sem freios.
É um fenômeno que a psicologia denomina de “efeito de licenciamento moral”, em que as pessoas se sentem mais livres para se engajar em comportamentos menos éticos ou não sustentáveis após terem feito uma escolha que consideram positiva. Este efeito foi identificado e estudado em vários contextos, incluindo consumo, saúde e comportamento ambiental.
Na mais recente NRF, feira global dedicada ao futuro do varejo promovida pela Federação Nacional de Varejo dos Estados Unidos, alguns futuristas mencionaram que seremos mais “guardiões” de coisas do que proprietários de coisas. Lá, na NRF, Kate Ancketill, CEO e fundadora da GDR Creative Intelligence, afirmou que haverá um afastamento cada vez maior do consumo de massa desenfreado para a chamada “tutela”, em que o consumidor “cuida” de produtos durante algum tempo e depois recoloca-os na economia.
E pode não haver nada de altruísta nisso: segundo analisa Cavalcanti, o movimento de alugar itens de luxo tem força porque não é limitador: ele amplia as possibilidades de ter, de usufruir de coisas antes proibitivas, de vivenciar mais coisas. Isso tem efeitos positivos tanto econômicos quanto emocionais.
Estudiosa dos movimentos da indústria brasileira, Marina Pereira, gerente de pesquisa e desenvolvimento na Associação Brasileira de Automação-GS1 Brasil, diz que, olhando friamente para o índice GS1 (que se baseia no volume mensal de pedidos de novos códigos de barras), ela não consegue destacar qualquer tendência de comportamento de desaceleração de lançamentos de produtos, por exemplo, sua especialidade. Em dezembro de 2023, a intenção da indústria em lançar produtos foi apontada como a maior variação desde 2013, em relação ao mesmo período do ano anterior.
Pereira reforça a ideia de que há desacelerações pontuais em ciclos e em nichos. Segundo ela, durante a pandemia houve uma retração natural no índice GS1, por redução dos índices de inovação e reinvenção. Mas, nos últimos dois anos, os dados mostram uma virada, com força especial para os setores de alimentos e bebidas.
A Geração Z, queridinha das empresas de bens de consumo, está no foco da maioria dos departamentos de inovação criados para ampliar linhas de produtos, lançar novas versões e sabores, embalagens temáticas e comemorativas, novos tamanhos de produtos. A intenção é sempre a mesma: ampliar as chances de conquistar novos consumidores ou voltar a seduzir os que andavam um pouco entediados ou flertando com marcas concorrentes.
“As próprias indústrias brasileiras se preparam sempre para atender a públicos distintos: transformam embalagens para tornar produtos mais atrativos ou para que a redução do tamanho de embalagens não seja sentida pelos consumidores. A intenção é sempre ampliar o consumo. Este é o comportamento da indústria nacional, e o brasileiro gosta de consumir o novo”, observa.
Mesmo na indústria automotiva, impactada por inúmeros aspectos e transformações – especialmente as comportamentais, que têm levado as novas gerações a trocar sem pestanejar a experiência de ter um carro pelos serviços de transporte como Uber e 99 (ou uma charmosa bike elétrica) -, existe hoje uma nova aposta de crescimento, que se chama “conectividade”.
“A conectividade é o grande transformador da relação do consumidor com a mobilidade”, afirma Rogelio Golfarb, vice-presidente da Ford América do Sul.
A aposta da Ford e de diversas montadoras está nos veículos conectados (além dos elétricos), que permitem que os automóveis se tornem assistentes de seus donos, tendo inúmeros serviços “embarcados” e dando pouco ou nenhum trabalho de manutenção.
A chatice que as velhas gerações enfrentaram para levar seus automóveis para a oficina, por exemplo, vai ficar na história. Carros conectados têm sensores para todo lado e alertam se o pneu está esvaziando, por exemplo. E poderão acionar o seguro ou algum outro serviço que vai poupar tempo e dor de cabeça. E este é apenas um exemplo, há apelos e razões para acreditar que os automóveis conectados serão cada vez mais atraentes mundo afora. “O carro conectado tem novo apelo, traz nova atratividade para o produto. Há muito espaço para crescer”, diz Goldfarb.
Em tendências macroeconômicas, o tempo exerce um papel fundamental. Tendências de consumo consciente foram mapeadas há décadas e levam muito tempo para ir furando bolhas, se espalhando como informação e valor e ganhando relevância a ponto de fazer diferença no bolso – e, consequentemente, na estratégia das empresas. Falar em qualquer tipo de desaceleração “stricto sensu” não é o forte de nenhuma empresa, razão pela qual várias preferiram não abordar o tema.
Mesmo no estudo da VML, a tendência da desaceleração de ciclos de produtos não é representativa no Brasil. No recorte mais específico sobre as tendências na América Latina e no Brasil, há algumas marcantes, como a busca por qualidade de vida, conexões e experiências emocionais. E há uma tendência forte no Brasil que Stella Pirani, do Grupo VML, destaca especialmente: 74% dos brasileiros e brasileiras entrevistados(as) acreditam que o papel das marcas mudou nos últimos cinco anos. É esperado das empresas e suas marcas que não “somente” vendam seus produtos ou serviços.
“As marcas precisam ter uma postura, uma voz e um propósito na vida das pessoas. É um chamado de reconexão pelo lado emocional”, diz Pirani.
E uma das maneiras de fazer isso é abordar o tema da desaceleração na comunicação. Marina Daineze, diretora de marketing da Vivo, disse ao Valor que a marca precisa antecipar tendências e liderar conversas importantes sobre tecnologia. Falar sobre o equilíbrio no uso da tecnologia é, portanto, uma pauta essencial.
Ela conta que o insight veio de uma pesquisa conduzida pelo hub de pesquisas e insights da Vivo, VTrends, sobre a relação dos brasileiros com a tecnologia, que mostrou que 53% das pessoas acreditam fazer um uso equilibrado desses avanços, enquanto 68% indicaram que conhecem pessoas que não estão sabendo lidar muito bem com o controle do seu uso – sejam em telas, smartphones, aplicativos ou outros devices. E 83% acreditam que é necessário falar mais sobre seu uso consciente no dia a dia.
Por isso, a Vivo passou a promover na sua publicidade o uso consciente da tecnologia e o melhor uso do tempo, na campanha que tem como slogan “Viva no Seu Tempo” e na trilha sonora a música “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, incentivando as pessoas a equilibrarem o uso da tecnologia aproveitando seus benefícios sem perder a “essência da vida offline”.
A reflexão sobre o tempo vem sendo proposta de diferentes formas. Em uma das ações, a atriz Denise Fraga gravou um comercial no qual fez reflexões importantes sobre o uso do tempo e chegou mesmo a protagonizar uma peça intitulada “Tem Tempo pra Tudo”, que reflete o posicionamento da marca e pode ser vista no YouTube.
Com humor, ela consegue mostrar como é paradoxal o nosso desejo, e mesmo necessidade, por desacelerar, enquanto toda a nossa vida é constantemente sugada por demandas que nos impõem a aceleração.
“Onde há paradoxo, há conflito”, diz o psicólogo e psicoterapeuta Flávio Cordeiro. Segundo ele, desejamos intensamente criar pausas em uma vida que sentimos esvair de nossas mãos, mas passamos voluntariamente cada vez mais horas nas redes sociais, sentimos que o tempo cada vez menos nos pertence e não conseguimos colocar um limite justo ao excesso de estímulos. “A civilização entende limite como perda. Ser adulto pressupõe lidar com os limites. E não ser compulsivo é uma postura quase transgressora nos dias atuais.”
Vivemos, juntos, esse paradoxo aparentemente sem saída, não há fórmula mágica para a mudança: cada um terá de buscar o melhor equilíbrio entre perdas e ganhos, fazendo suas próprias escolhas e reconhecendo que sempre haverá perdas. Quem sabe, no futuro, consumir menos não se torne, de fato, um atrativo ato transgressor?
Fonte: Valor Econômico