Por Adriana Mattos | Em pouco menos de cinco horas, ainda com o governo sob o desgaste do tema dos impostos em remessas internacionais, um conjunto de ações foram anunciadas na quinta-feira (20), pelo Ministério da Fazenda e pela Shein, que tiram da agenda a percepção de que governo cedia à entrada ilegal de produtos “made in China”, e de que a Shein não parece se importar com a concorrência desleal que avança pelo on-line sobre o país.
Ao colocar de pé anúncios que falam em transformar o Brasil em “plataforma de exportação” (de um setor golpeado por carga tributária pesada e forte importação chinesa) — com geração de empregos e anúncio de investimentos de R$ 750 milhões pela Shein em três anos —, governo e Shein mudam a narrativa, acalmam as redes sociais, mas deixam para trás vários pontos pouco claros, especialmente em relação à lógica econômica do projeto.
Falta mais clareza também sobre o curto anúncio, encaminhado na noite de quinta à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), sobre memorando de entendimento das empresas Coteminas e Santanense com a Shein, para viabilizar a produção nacional das roupas vendidas na plataforma.
Haverá uma parceria para que duas mil confecções que são clientes da Coteminas passem a ser fornecedoras da Shein. Além disso, o acordo inclui um financiamento de capital de giro à Coteminas e à Santanense, do grupo têxtil fundado por José de Alencar, ex-vice-presidente da República na gestão de Lula de 2003 a 2010. As companhias pertencem a seu filho, Josué Gomes da Silva, também presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Executivos, especialistas e pessoas envolvidas nas negociações levantaram os aspectos não esclarecidos sobre os anúncios, até o momento.
A roupa vendida pela Shein pode ficar mais cara?
A Shein anunciou os R$ 750 milhões a serem desembolsados em três anos com foco num projeto de nacionalização da receita da empresa. Quer ter 85% das vendas de lojistas ou de indústrias brasileiras até 2027. É algo que a companhia, com sede em Cingapura, nunca tentou fazer no mundo ( (ainda tem analisado levar esse modelo para a Turquia) porque não era preciso. Ela vende hoje para mais de 150 países e é abastecida principalmente por três mil fornecedores da província de Guangdong, no sul da China.
A plataforma vai tentar replicar no país uma parte desse modelo de seu produção consolidado e incomparável, em termos de competitividade e agilidade.
No exterior, espalhou parcerias com oficinas que produzem mercadorias com sua marca — e em tempo real, identifica produtos que são “top” em vendas, e esses ganham escala industrial em poucos dias. Para tentar chegar aqui um pouco mais perto disso, colocará esses milhões em tecnologia e treinamento a fabricantes brasileiros. Não considera, portanto, seus gastos com a a sua própria estrutura, como logística e sistemas.
Na média, ao ano, equivale a menos do que Renner e Riachuelo investiram, separadamente, em tecnologia em 2022 — R$ 313 milhões e R$ 465 milhões, respectivamente.
Terá que encarar desafios de uma operação têxtil local — apesar de o setor estar melhor estruturado no país do que décadas atrás — que ainda carrega uma carga tributária média de 18% e com menores níveis de eficiência, agilidade e produtividade.
O que a Shein ainda não explicou é como ela vai reproduzir o seu modelo nesse ambiente, para chegar aos 85% de venda de produto nacional — mesmo usufruindo da escala da Coteminas e da Santanense.
Terá que dar mais espaço, e colocar, no site e “app” mais produtos nacionais — afetados naturalmente, pelos altos custos fiscais e trabalhistas das indústrias no Brasil, que encarecem a venda — correndo o risco ficar mais “careira”. É algo que vai exatamente contra a lógica de seu modelo.
Pelo formato, para muitos vitorioso, a Shein usa algoritmos refinados cruzados perfil de cliente e vendas por produto para definir os destaques na plataforma. Um dos questionamentos é como ficaria esse ecossistema dentro de um modelo de nacionalização inédito no grupo.
Quais são os ajustes necessários no sistema de produção da Shein, e os custos disso?
Numa forma de proteger seu formato inicialmente, e não perder competitividade, a Shein pode ter que subsidiar a migração de formato de importação para a nacionalização da venda.
Pode considerar pagar parte do frete ao consumidor, ou as taxas de comissão do vendedor nacional, para ter preço final melhor, e não perder mercado. Seriam novas despesas, além dos R$ 750 milhões anunciados.
Uma vantagem pode ser um eventual ganho de escala caso a venda aos países da América Latina, a partir do Brasil, como prevê o projeto, crie volume tão representativo que reduza preço.
Sobre o assunto, Marcelo Claure, chefe da Shein na América Latina (ex-Softbank), em entrevista na noite de quinta, admitiu que se trata de uma “grande transformação” para a Shein. Disse contar com a capacidade de a empresa reproduzir suas vantagens competitivas e se adaptar e acrescentou que já tem contatado há algum tempo parceiros no Brasil para testes de produção.
Mas, pelo seu tom, tem consciência que China e Brasil são mundos bem diferentes. Apesar disso, fala que a Shein “não deve falhar” no que se propôs. “Nós temos a expertise, as ferramentas, o modelo de digitalização para replicar, para ajudar nas mudanças do setor no país. Queremos jogar dentro das regras ajudando o Brasil”, disse ele.
Se formato pode funcionar e gerar empregos e renda, por que a Shein não havia feito nada até agora, e agiu após forte pressão política?
Esse é um dos pontos que concorrentes nacionais vêm levantando nas últimas horas. Marcelo Claure, que esteve com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, na quinta, nega que a companhia tenha montado um anúncio às pressas, e reagido a pressões políticas. Haddad disse, nesta semana, que Shopee e AliExpress tinham sinalizado interesse em mudar práticas no Brasil. Apenas uma empresa não havia sinalizado nada nesse sentido, afirmou o ministro, sem citar nomes.
Especialistas entenderam que se tratava da Shein. O Valor apurou que a reunião com a Shein foi sendo costurada de forma mais acelerada no começo da semana, com apoio de Josué Gomes, da Coteminas, e bateu-se o martelo mesmo só na quarta-feira (19).
Claure afirma que a empresa não se movimenta por conta de pressões externas, mas admite que o governo fez bem em não acabar com a isenção de impostos abaixo de US$ 50, porque afetaria pessoas físicas que usufruem do direito. A isenção é válida na compra e venda apenas entre pessoas físicas, e o governo entende que vem sendo usada como brecha para a disparada na importação irregular nos últimos anos. A isenção foi mantida, segunda decisão de Lula.
Esse é o aspecto central da discussão nos últimos dias, e que levou o governo a criticar abertamente as plataformas estrangeiras, especialmente asiáticas, e a concorrência desleal criada.
Na quinta-feira (20), a Shein disse que aderiu ao plano de conformidade da Receita Federal.
“Parece existir o desenho de um plano que depende de muitos aspectos ainda. E para que isso pare de pé, eles [Shein] vão ter que lidar com o Custo Brasil, que é sem dúvida o ‘x’ da questão. A Shein tem um modelo inovador, isso é claro, mas não vão conseguir repetir o mesmo sistema lá de fora por conta dos nossos custos locais, não há milagre”, diz Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail.
Para tentar equilibrar essa conta, um hipótese é trazer mais lojistas brasileiros para sua base de vendedores — dos polos de moda e de todos os cantos do país — eliminando intermediários, como atacadistas, que encarecem a cadeia.
“Ao trazer mais vendedores locais, ela elimina alguns degraus da cadeia, como os intermediários, que tornam o produto final mais caro”, diz Eduardo Terra, sócio-diretor da BTR Educação e Consultoria.
Terra lembra que preço é um aspecto do modelo da Shein, mas que a empresa ainda pode compensar eventual perda de competitividade em preço com a força da marca.
Diz que, para a camada mais jovem de consumidores, essa forma de vender em site e “app” num visual “meio Tik Tok”, com cara de “games” e percepção de oferta e promoções o tempo todo, cria uma boa experiência de compra e clientes ativos. Isso pode ajudar nesse processo de nacionalização da venda.
“Talvez, até intensifiquem essa pegada ‘Tik Tok’ e esse jeito de vender com cara de game para reforçar a percepção de que são competitivos”, diz.
Brasileiro vendendo produto chinês entra como “nacionalização” das vendas?
Outra dúvida é o que o acordo anunciado considera como produção local, para chegar nesses 85%. Um grande lojista de moda de marketplace lembra que centenas de vendedores brasileiros compram produtos da China pela Shein e revendem aqui as mercadorias na plataforma da Shein, e que a empresa inclusive incentiva essa compra.
Se isso entrar como nacionalização vai ser fácil aumentar a taxa hoje, que é mínima, diz ele. “E na prática, ainda é tudo venda de produto chinês, e não brasileiro”, afirma. A Shein não informa os critérios para as estimativas dessa nacionalização — o patamar de 85% seria alcançado em 2027.
Considerando projeções de bancos de que a venda anual está em até R$ 8 bilhões, equivaleria a vender em mercadorias locais cerca de R$ 6,8 bilhões hoje.
Uma fonte a par das conversas diz que, pelo já discutido, nem todos os 85% de nacionalização serão produtos comercializados no país. “O plano é que 85% das vendas sejam de produção local, então pode ser fabricação nossa vendida do Brasil para América Latina”, diz ele.
Como a plataforma vai pagar imposto no lugar do consumidor? E para que faixa de produto?
Outro anúncio na quinta, do ministro da Fazenda, referiu-se à discussão de implementar no país o sistema “digital tax”. Pelo sistema de pagamento digital de impostos, na hora da compra de produtos estrangeiros, o tributo sai discriminado como um item a ser pago já na hora de quitá-lo.
Haddad disse que quem arcará com esse pagamento de imposto é o vendedor — seja o vendedor chinês que tem uma loja on-line ou a plataforma mesmo.
Não mencionou prazos e a faixa de preço da compra para que a loja pague o imposto. Mas disse que a Shein (e outras plataformas asiáticas) concordaram com isso.
Há diferentes modelos de imposto digital, inclusive com o consumidor pagando essa conta.
O que parece confuso ainda é a razão pela qual as empresas estrangeiras bancariam esse pagamento, e o efeito em seus modelos de operação.
Além disso, se o vendedor é que paga, o lojista estrangeiro (que tem “lojinhas” dentro da plataforma da Shein, Shopee, Aliexpress, etc) teria que absorver esse custo. E pode repassar isso a preço, se quiser. Cabe só a ele decidir.
Haddad diz que a Shein afirmou que não vai repassar isso ao consumidor. É sempre uma decisão de empresa privada, que define metas de receita, “share” e rentabilidade, e revisa isso constantemente com acionistas e diretoria.
Ao fazer esses anúncios, sem maiores detalhes — no mesmo dia em que a Shein comunica investimentos milionários e geração de empregos indiretos —, o ministério acomoda o tema dos impostos que poderia gerar mais gritaria e gerou desgaste nos últimos dias.
A Shein é uma empresa de capital fechado, sem acionistas na bolsa, controlada pelo chinês YangTian Xu, também chamado de Chris Xu, e assim como outras plataformas estrangeiras, tem buscado melhorar seus resultados.
“Pode ser que a Shein tenha capacidade de absorver mais essa conta do que as empresas abertas, como a Shopee, ligada a Sea Group, que está com essa agenda de ser mais rentável. Mas é difícil entender como a Shein absorveria isso porque ela não publica número algum”, diz Terra.
Como esse acordo entre Coteminas e Shein evoluiu, e como Haddad se envolveu?
Companhia de capital aberto, a Coteminas vem negociando há um mês e meio o acordo com a Shein, apurou o Valor – o memorando de entendimento foi anunciado na quinta-feira (20).
Das cerca de três mil confecções parceiras do grupo, duas mil devem fazer parte do projeto, e passam a ser fornecedores da plataforma asiática para atender Brasil e América Latina. Na segunda-feira (24), há reunião para alinhar mais detalhes entre as partes. A Santanense, controlada pela Coteminas, também faz parte do acordo.
Um ponto que não estava tão claro refere-se ao fato de a Coteminas não produzir moda, o forte da Shein. Apesar de a empresa ser uma das líderes no país em produção de cama, mesa e banho, e a Santanense, em vestuário profissional, a Shein pode treinar equipes para a fabricação de vestuário. E as confecções já com esse perfil podem fazer parte do projeto.
A Shein ainda pode fechar acordos com outros fabricantes, além da Coteminas.
A fabricante foi fundada por José de Alencar, e Josué Gomes é diretor presidente da companhia. Na verdade, foi Gomes que fez a ponte para esse contato entre Shein e Haddad, ocorrido na reunião da manhã de quinta-feira, num momento de ânimos mais alterados por conta da questão da polêmica do imposto abaixo de US$ 50.
Gomes, também presidente da Fiesp, aproximou as partes para “intermediar um entendimento”, diz um fonte, mas na figura de CEO da Coteminas, não pela Fiesp.
Foi após essa conversa que Haddad anunciou o envolvimento da Shein nessa pauta de nacionalização, tema que acabou “virando” a percepção negativa do mercado, depois do confuso recuo do governo no caso dos impostos.
Fato relevante da Coteminas de quinta-feira, que informa a parceira, ainda fala em financiamento para “working capital”, ou seja capital de giro da empresa, e um contrato de exportação de produtos para o lar. É dinheiro que entra da Shein para dar fôlego inicial para a produção, que precisa acontecer para que ele saia do papel.
Questionada, a Shein não comentou mais detalhes do acordo até o momento.
O que diz o Ministério da Fazenda
Perguntado sobre os pontos ainda em aberto do projeto da Shein, o Ministério da Fazenda se posicionou sobre o “digital tax”. Disse que é um imposto que já existe, mas que será recolhido na fonte, antes do envio da mercadoria, sem criação ou majoração de tributo, somente a viabilização do recolhimento eletrônico facilitado.
“A medida está em elaboração e será detalhada em breve. Cabe enfatizar que o objetivo principal é garantir a concorrência justa para que o consumidor seja beneficiado no curto, médio e longo prazos”, disse ao Valor.
Fonte: Valor Econômico