A ausência de uma parcela da população nas manifestações contra o governo de Dilma Rousseff não significa que ela esteja satisfeita. Ao contrário. O índice de rejeição da presidente de cerca de 80% mostra: o país não está dividido exatamente quanto a esse aspecto. A divergência reside nos motivos para o desagrado, diz o presidente do Instituto Data Popular, Renato Meirelles. Enquanto parte das classes A e B olha com desconfiança para programas sociais da última década e meia, o estrato social intermediário, onde se encontram 54% dos brasileiros, se ressente de “um passo atrás” nas conquistas e exige justamente o aprofundamento dessas políticas. “Perder dói muito mais do que deixar de ganhar”, diz Meirelles.
Com diagnóstico baseado em números coletados ao longo de sua experiência no Data Popular, onde entrou como estagiário e trabalha desde a inauguração do instituto, em 2001, Meirelles, 38 anos, enxerga no país hoje mais do que crise econômica ou política, uma crise de perspectiva. O cidadão – especialmente o da classe C – não vê esboço de futuro para depois do furacão por falta de projetos e de lideranças no espectro político.
O governo não consegue mais promover a melhoria da qualidade de vida dessa parcela da população e a oposição está cega para as demandas de mais igualdade de oportunidades desse mesmo público. Por trás da divisão, diz, cresce um pensamento fascista.
Para ele, os políticos não acompanharam a evolução do país. Pensam de forma analógica diante de um eleitor digital – que não quer apenas ouvir, mas também falar. “Achar que a população brasileira vai aceitar tranquilamente cortes orçamentários que, de alguma forma, prejudiquem os mais pobres, é ser ingênuo”.
Formado em Publicidade, Meirelles arrisca palpites de economista. E considera o Fla x Flu político e ideológico prejudicial para a economia – agora e no pós-crise. Para ele, não existe saída “sem fortalecimento do mercado interno, e não existe fortalecimento do mercado interno, sem melhorar a educação e sem oferecer emprego ou condições de empreender”.
Meirelles considera que a Operação Lava-Jato tem o mérito de promover “uma saudável e oportuna” discussão sobre a corrupção no país, mas teme que o eventual viés político de algumas decisões do juiz Sergio Moro gere questionamentos capazes de comprometer os resultados. “Não tenho bandido de estimação. Roubou, tem que ser preso”, disse, na entrevista que concedeu ao Valor na quarta-feira da semana passada. Leia a seguir os principais trechos:
Valor: A classe C participa das manifestações contra o governo?
Renato Meirelles: Quando olhamos os números do Datafolha sobre o perfil sociodemográfico de quem foi às manifestações a favor do impeachment, claramente tinha um perfil mais rico, mais escolarizado, mais masculino e mais velho que a média da população. Sete de cada dez pessoas que foram às manifestações não votaram na presidente Dilma no segundo turno. Efetivamente existe uma grande mobilização da parcela mais rica da sociedade em oposição ao governo. Isso diminui a importância das manifestações? De jeito nenhum. Tem muita gente na rua e são as maiores manifestações da história, mas os números mostram que é uma parcela que já está descontente com a situação política há muito tempo. Não significa que a classe C não esteja descontente com a economia. Está. Mas não entende o que vai além do processo de catarse, de insatisfação com o governo.
Valor: A classe C tem uma adesão mais pragmática?
Meirelles: Acho que tem. Mas existe uma dificuldade de alguns agentes políticos entenderem as diferenças dos 80% da população que avaliam o governo como ruim ou péssimo. Desses, 36% não gostam da Dilma e também não gostam do Prouni, do Fies, do Mais Médicos, das cotas nas universidades, ou seja, de um conjunto de políticas públicas que fizeram na última década o Brasil viver um processo de redução da desigualdade.
Valor: É isso que faz com que uma boa parte da classe C não esteja presente nas manifestações?
Meirelles: A ausência de uma visão clara sobre para onde vamos e sobre a garantia da manutenção de políticas públicas de um Estado que promova igualdade de oportunidades e que reduza a desigualdade social sem dúvida tira muitas pessoas da classe C da passeata. De um lado organiza mais a classe A e B, a parcela que há tempos não estava satisfeita com os rumos do país, mas afasta o eleitorado médio. Se 36% odeiam a Dilma e tudo o mais, 44% dos brasileiros que estão insatisfeitos com a Dilma avaliam mal o governo justamente porque ele não ampliou o Fies, o Prouni, não promoveu aumento real do salário mínimo, não cumpriu promessas de campanha, de redução de desigualdade que, no limite, fizeram Dilma ganhar a última eleição presidencial. Isso numa eleição em que 73% dos brasileiros queriam mudança. É impossível entender o que acontece hoje sem voltar um ano e meio atrás, quando a oposição conseguiu perder uma eleição em que 73% dos eleitores queriam mudança.
Valor: Por que isso ocorreu?
Meirelles: Porque a oposição não dialogou com o pensamento majoritário da sociedade brasileira, que defende um Estado presente na promoção do bem-estar social e na redução da desigualdade.
Valor: É a luta de classes típica?
Meirelles: Acredito que as pessoas cada vez mais querem um Estado mais eficiente e que entregue serviços públicos com qualidade – o que já aparecia em 2013. Elas não querem um Estado pequeno. Querem um Estado presente, vigoroso, eficiente e presente. “Há quem use o discurso da meritocracia, mas é incapaz de enxergar a busca da igualdade de oportunidades como um valor”
Valor: O discurso predominante de quem está contra o governo parece um tanto diferente, não?
Meirelles: O discurso das passeatas está longe de ser o discurso majoritário. Todas as pesquisas do Data Popular, quantitativas e qualitativas, mostram as pessoas insatisfeitas com a ineficiência do Estado, mas querem a existência do Estado. Por uma razão simples: são elas que usam a escola pública, o serviço público. Graças à presença do Estado que o Brasil tem 9 milhões de universitários a mais nos últimos dez anos. Isso não se deu pela iniciativa privada, mas pelo Prouni e pelo Fies.
Valor: A participação da iniciativa privada é acessória…
Meirelles: Sim, como braço do poder público. O caso do Prouni é o exemplo clássico. Quando pessoas falam que todos que recebem Bolsa Família são ladrões e venderam seu voto, quando começa a existir um conjunto de preconceitos de gênero, classe e cor, boa parte da classe C, majoritariamente negra e com maior presença no Nordeste, pensa: “eu posso estar muito irritado com o governo, acho que o Brasil não está no rumo certo, mas não me identifico com isso”. O que preocupa é que na esteira da briga política começa a crescer um pensamento fascista.
Valor: O sr. identifica esse tipo de pensamento?
Meirelles: Claramente. Um ódio, uma intolerância na discussão sobre a corrupção, que é fundamental para o país, mas que está tapando a discussão real do que é um Estado que promova igualdade de oportunidades, redução da desigualdade. Isso coloca o ajuste fiscal, que é necessário, apenas sob uma ótica financista. O preço, por exemplo, de diminuir o acesso à universidade em um país desigual como o nosso é muito grande.
Valor: Essa divisão está comprometendo o futuro social e econômico?
Meirelles: É impossível pensar em um Brasil pós-crise sem uma gestão mais eficiente dos recursos do Estado, sem combater fortemente a corrupção e os desvios de dinheiro público, mas também sem que se mantenha e se fortaleça o conjunto de políticas públicas que reduziram a desigualdade, aumentaram o mercado interno, criaram milhões de empregos e fizeram com que mais de 10 milhões de pessoas se formassem na universidade.
Valor: E quanto à crítica de que esse modelo estaria esgotado?
Meirelles: Minha tese é que para sair da crise temos que aprender com o maior país capitalista do mundo, os Estados Unidos, que superaram 1929 aumentando o mercado interno, gerando emprego e incentivando a economia. Todos concordam que é impossível ser forte e competitivo sem que todas as crianças estejam na escola. Tirar verba do Bolsa Família significa que um monte de criança vai deixar a escola. É justo a sociedade pagar esse preço para sair da crise?
Valor: É essa a cabeça da classe C?
Meirelles: Para responder a isso tenho que voltar um pouco na natureza das crises. Primeiro, por que a corrupção ganhou essa proporção no debate político? Todos os brasileiros passaram a ser mais éticos? Obviamente, não. Fizemos uma pesquisa no Data Popular sobre corrupção cotidiana. Só 3% dos brasileiros se consideram corruptos, mas mais de 70% já tiveram alguma atitude corrupta: subornar um guarda, guardar lugar na fila… Mas a corrupção passou a ser vista como a causa, a raiz da crise.
Valor: E ela é?
Meirelles: Obviamente, não. As pessoas acham que a gasolina aumentou por causa da corrupção da Petrobras, que a energia elétrica subiu por conta dos desvios dos políticos. A corrupção é um câncer, precisa ser combatida, mas não é a causa da crise. Uma maioria dos brasileiros, 99%, acham que estamos em crise; desses 55% consideram que essa é a maior crise econômica que o país já viveu. Sabemos que não é. Tivemos crises com desemprego acima de 20% e inflação de 80% ao mês sem o Brasil ter um centavo de reserva internacional. Por que essa visão? Primeiro porque metade dos brasileiros não era consumidor, não era adulto na época da hiperinflação. Segundo porque, em uma geração, é a primeira vez que o brasileiro tem sensação de perda. Perder dói muito mais que deixar de ganhar.
Valor: E dentro desse universo de novos consumidores, tem o que se tornou adulto e o que era consumidor marginal, a classe ascendente…
Meirelles: Claro. E que agora está sofrendo. Perguntamos que outras crises existem além da econômica. E 95% acreditam que o Brasil vive uma crise de perspectiva.
Valor: O que isso significa?
Meirelles: Que ele não vê luz no fim do túnel. O problema então, não é a crise econômica, pois já tivemos crises como essa, o problema é não ver luz no fim do túnel; 89% dos brasileiros são incapazes de dizer o nome de alguém em condições de tirar o país da crise.
Valor: Isso não é só a classe C?
Meirelles: Não, é geral. A classe C é majoritária, pois é 54% da população. Logo, pensa assim também. Então, 89% acham que não tem ninguém capaz de tirar o país da crise. Dentro dos 11% que dizem algum nome, quem aparece na frente é o Papa Francisco. Quando um argentino é a melhor solução que o brasileiro enxerga… [risos].
Valor: Além da crise econômica, temos uma crise de liderança?
Meirelles: O brasileiro não enxerga essa liderança no governo nem na oposição. A oposição perdeu as eleições por ser incapaz de apresentar um projeto de futuro e tem uma enorme dificuldade de ganhar a classe C e D para o movimento pró-impeachment porque também é incapaz de dizer como vai ser o pós-impeachment. Hoje 92% dos brasileiros concordam com a frase “todo político é ladrão”. Os brasileiros podem até defender o impeachment porque estão de saco cheio do governo – assim como também muita gente da esquerda está -, mas não acham que é solução para a crise econômica, já que quem assumiria também é político e, se todos são ladrões… Quando a gente pergunta: “você acha que os políticos defendem o impeachment porque querem melhorar a vida das pessoas ou querem o lugar da Dilma?”, oito de cada dez falam que é porque querem o lugar dela. O brasileiro, classe C em especial, fica desiludido. Na ausência de um debate sobre o futuro do país, se coloca a corrupção como única temática, sem discutir problemas que realmente interessam. Isso afasta o eleitor médio de um debate saudável sobre a vida democrática e aumenta a crise de perspectiva, o descrédito com relação à classe política. Temos uma classe política analógica para um novo eleitor digital, que não quer só ouvir, mas quer falar, ser protagonista.
Valor: O que interessa ao cidadão?
Meirelles: Questões de gênero e de construção de identidade interessam, assim como a promoção de igualdade de oportunidade. Como os políticos tratam disso? A esquerda fala sobre a importância da inclusão. Partidos mais ligados ao pensamento de direita, em meritocracia. Não se discute igualdade de oportunidade. Defendo a meritocracia, mas ela só existe quando todos partem do mesmo ponto. Pelo simples fato de ser homem, ganho 25% a mais do que uma mulher branca, de São Paulo, de 38 anos, que estudou o mesmo que eu. Por ser branco, ganho mais que um negro em iguais condições. Não tenho mérito em ganhar uma corrida de 100 metros se largo 50 metros à frente. A igualdade não está na chegada, está na saída.
Valor: O consumidor ascendente tem clareza disso?
Meirelles: Ele não tem a clareza teórica, mas prática. A palavra que resume isso se chama oportunidade. Parte considerável dos opositores da presidente simplesmente não consegue se conectar com o pensamento majoritário na busca por igualdade de oportunidade.
Valor: O sr. falou de fascismo…
Meirelles: Quando estudantes são agredidos porque estavam com uma bicicleta vermelha ou uma região inteira do país é discriminada por conta de sua opção de voto, você não pode ficar quieto. Tem muita gente a favor do impeachment pelo justo debate de que é impossível tolerar a corrupção no Brasil. Eu também acho. Não tenho bandido de estimação. Roubou, tem que ser preso. Mas para combater a corrupção é justo marchar ao lado de quem defende a volta da ditadura militar ou de quem defende agressão a alguém com camiseta da cor A ou B?
Valor: Qual é a gênese desse pensamento?
Meirelles: É a intolerância de classe. De pessoas que falavam que os aeroportos tinham virado rodoviária, que acreditam que a sala de aula não deve ser compartilhada por negros. Pessoas que usam o discurso fácil e raso da meritocracia e são incapazes de enxergar a busca da igualdade de oportunidades como valor da sociedade. O Fla x Flu político está acabando com a chance de debate democrático sobre a crise econômica. Na permanência da Dilma, o Brasil vai continuar rachado diante da dificuldade de implementar um conjunto de reformas. Se a presidente cai e o vice Michel Temer assume, o [programa] “Ponte para o Futuro” – que é o projeto do PMDB para a solução da crise e que deixa o Aécio Neves à esquerda -, não enxerga que boa parte de quem odeia a presidente a odeia pelo pouco que ela fez de parecido com o “Ponte para o Futuro”. Achar que a população aceitará tranquilamente a desindexação do salário mínimo, mudança da idade da aposentadoria ou um conjunto de cortes orçamentários que prejudique os mais pobres é ser ingênuo. Desse descrédito da classe política surge o Moro, hoje um dos principais agentes políticos do Brasil.
Valor: Acha que ele é agente político?
Meirelles: Sem medo de errar. Ele promoveu um saudável e fundamental debate para a democracia brasileira sobre a importância da corrupção. Fez com que o brasileiro entendesse que corrupção tem dois lados, alguém que recebe e alguém que paga. E isso foi muito bom. Difícil é acreditar em uma faxina se em algum momento se questiona a isenção do juiz. Essa isenção começou a ser posta a prova na condução coercitiva do ex-presidente Lula. Imagina a quantidade de pessoas que começam a dizer ao Moro que bom seria se todos os políticos fossem iguais a ele, que já perguntaram se ele não gostaria de ser candidato à Presidência. Acredito que isso fez com que a postura de isenção, que poderia estar ocorrendo até então, tenha sido colocada em xeque.
Valor: A classe C consegue entender esse tipo de formulação?
Meirelles: O que a classe C entende é que está cada vez mais difícil confiar na classe política como agente de transformação. As crises de perspectiva e liderança afloram. Ela fica angustiada e imobilizada por não enxergar luz no fim do túnel. Isso prejudica em muito a economia. As pessoas correm menos atrás de crédito quando estão pessimistas. Consomem menos. Os brasileiros começam de fato a ficar preocupados com o rumo de suas vidas.
Valor: A desilusão dos brasileiros é mais forte na classe C?
Meirelles: A classe C está sentindo o passo atrás. Viajar de avião e parar de viajar, ter o filho no colégio particular e deixar de ter… É muito difícil para alguém que tome champanhe voltar para sidra. É difícil quem se acostumou com alcatra voltar para a salsicha e o ovo.
Valor: E já está voltando?
Meirelles: Do ponto de vista do consumo sim. De classe, não. Não posso dizer que a classe C diminuiu, mas o poder de compra dela, claramente. O número de novos estudantes na universidade já diminuiu. O retrocesso existe e tende a crescer. Seja pelo agravamento da crise ou pela solução política e econômica que desconsidere o que fez o Brasil crescer, que foi a promoção de igualdade social.
Valor: educação é o grande problema do Brasil?
Meirelles: Não. Nosso grande problema é desigualdade. educação é um dos fatores que leva à desigualdade. O brasileiro pode ter dúvidas se gosta ou não da Dilma. Pode ter dúvida se o que é melhor, esquerda ou direita, PSDB ou PT. Mas dois terços dos brasileiros defendem o Estado vigoroso, eficiente e presente na sociedade.
Valor: O sr. acredita que vá ocorrer impeachment?
Meirelles: Acho muito difícil [o presidente da Câmara] Eduardo Cunha, único brasileiro com rejeição maior que a da presidente Dilma, conduzir um processo de impeachment. Mas não tenho a mais vaga ideia se esse governo vai continuar ou não. Seja quem for o vencedor, deve chamar todos os lados para conversar. O pensamento fascista não pode contaminar o debate. Quando você só fala e não escuta, não consegue fazer com que o bom senso prevaleça.