Sete meses de pandemia aceleraram a chegada da loja física do futuro: superconectada, digital e cheia de experiências. Se a vida tivesse continuado seu curso normal, a expectativa de especialistas era de que essa nova loja viria, mas que somente ganharia força nos próximos três a cinco anos.
Mas, por conta da covid-19, um grande número de brasileiros ficou isolado em casa e descobriu que era possível comprar, sem susto, tudo pelo celular – do sabão em pó ao carro novo. Essa mudança de comportamento obrigou a loja física a mudar já e o movimento é nítido sobretudo entre grandes varejistas, mas pega também supermercados de bairro, que ganharam recentemente a preferência do consumidor.
“Aquela loja que abria as portas no shopping ou na rua à espera de compradores morreu”, afirma o presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), Eduardo Terra. Ele explica que, com a rápida digitalização do consumidor, a loja física deixou de ser passiva, ela não para de trabalhar. A equipe de vendedores vai atrás dos compradores nas redes sociais e, quando começa a funcionar no horário comercial, já tem muitas conexões feitas com potenciais clientes.
Criar novas experiências de compra no varejo físico para que o consumidor venha à loja e conectá-la com o comprador online já tinha sido o caminho escolhido pela Havaianas, por exemplo. Há um ano e meio a digitalização avança na companhia e culminou no final do ano passado com a abertura da loja laboratório no Shopping Iguatemi, em São Paulo, para testar inovações. “Era um projeto que tínhamos e estamos acelerando neste momento porque tem tudo a ver com essa situação de pandemia”, diz o diretor executivo da Havaianas Fabio Leite de Souza.
Mais consciente neste momento, o consumidor faz compras mais objetivas, observa o executivo. “Ele não entra na loja para descobrir o que tem, não vai à loja para fazer o famoso passeio”, explica, acreditando que essa tendência veio para ficar. Por isso, a marca criou algumas inovações.
Uma delas foi um tapete com o desenho de vários tamanhos de pé. Pisando nesse tapete adesivado, é possível descobrir rapidamente qual é o número sem precisar experimentar o chinelo. Entre outros projetos, a empresa desenvolve também uma solução de fila virtual de atendimento que deve ser implantada nas 450 lojas antes do Natal, período de maior movimento e aglomerações. Com o dispositivo, não é preciso esperar para ser atendido dentro da loja. “O cliente pode sair da loja e será chamado pelo celular quando chegar a sua vez”, explica Eric Strauss, chefe de direct to consumer da marca.
Na Centauro, especializada em artigos esportivos, a integração da loja física com o varejo online começou em 2017, com o novo modelo de loja batizado de quinta geração (G5). Essa loja combina experiência de compra com tecnologia. Em meados deste mês, a varejista inaugurou uma versão super turbinada de loja G5, na Avenida Paulista. É a primeira loja da rede na rua.
Na loja da Paulista, pesamos mais a caneta nas experiências em relação às demais lojas G5”
“Nessa loja acabamos pesando mais a caneta nas experiências em relação às demais lojas G5”, conta o diretor executivo da Centauro, Gustavo Furtado. Enquanto as outras lojas G5 da rede – são 55 até o momento de um total de 208 – têm uma esteira para experimentação dos tênis, a da Paulista tem duas para que o comprador possa brincar com outra pessoa numa corrida virtual conectada a telas que simulam circuitos de corrida do mundo todo. Também há uma oficina de conserto de bicicletas e um serviço de personalização de um número maior de produtos.
Ao mesmo tempo que a loja física de quinta geração proporciona mais experiência para o consumidor, a sua conexão com o mundo online para fechar vendas ficou muito forte. “Com os vendedores e gerentes em casa, acabamos ativando uma força de vendas para que eles oferecessem os produtos aos clientes conhecidos por meio de suas redes sociais”, explica Furtado. A iniciativa deu tão certo que a varejista está estruturando projetos para que o vendedor possa comercializar os produtos a distância por redes sociais e o comprador retirar a mercadoria na loja física. “Com a pandemia não mudamos o conceito de loja digitalizada, mas aceleramos o estávamos fazendo.”
Home Office
Para a arquiteta Anelise Campoi, presidente do Retail Design Institute Brasil e professora da ESPM, com o choque da digitalização provocado pela pandemia, o esforço do varejista é tirar o consumidor de casa e levá-lo para loja física, criando experiências diminuindo os pontos de atrito.
Com exemplo da tendência, ela cita a nova loja do supermercado St Marche, aberta no shopping Villa Lobos este mês. Ao mesmo tempo que mais da metade dos caixas da loja é de autoatendimento, grande parte da área a central está ocupada por café. É um espaço convivência, equipado com internet rápida, que permite o cliente trabalhar, por exemplo. “As pessoas estão em home office, mas podem ir para o supermercados para trabalhar e sair um pouco de casa”, explica.
A intenção de abrir um espaço de convivência dentro de um supermercado de bairro é mostrar que o St Marche é um lugar diferente, reconhece um dos diretores da rede de 20 lojas, Victor Leal. “Queremos reforçar o convite para as pessoas virem à loja e criar uma relação diferente, não aquela de entrar correndo no supermercado, ticar a lista de compras e ir embora.”
Tendências para lojas físicas que foram aceleradas pela pandemia
Loja super conectada. Vendedores não param de trabalhar e ativam os clientes pelas redes sociais. Quando a loja abre as portas em horário comercial, muitas conexões já foram feitas. A loja é ativa e o trânsito entre a loja física e a digital é uma via de duas mãos.
Loja digitalizada e sem toque. Mesmo dentro da loja física, são usados muitos recursos digitais:
● Provador inteligente que sugere outros produtos; também é possível solicitar outros tamanhos sem ter que interagir com o vendedor
● Fila virtual que avisa pelo celular qual o momento de voltar à loja para ser atendido
● Possibilidade de comprar itens que não estão disponíveis na loja física
● Caixas de autoatendimento reduzem filas para pagar
● Possibilidade de experimentar produtos, como itens de maquiagem, por exemplo, por meio de realidade virtual, como espelho inteligente da Lancôme. No caso de chinelo da Havaianas, simplesmente colocando o pé sobre um tapete que tem os tamanhos do calçado
Loja viram minicentros de distribuição. A venda digital se aproveita da loja física para aumentar a sua capilaridade e ter mais agilidade nas entregas
Loja passa a ser um local de experiências para atrair clientes. As lojas físicas passam a oferecer serviços, como conserto de bicicletas, exemplo da Centauro, ou espaço para trabalhar com internet ultrarrápida, caso do St Marche
Novas preferências consumidor. Comércio mais próximo de casa (localtivistas) é valorizado, assim como lojas menores, mais organizadas e com oferta de produtos que passaram por uma curadoria
Ambiente de loja estabilizador. Lojas com ambiente mais clean, com cenário que remeta à natureza, com muito verde e tons pastéis estão em alta
Movimento ‘sem toque’ ganha força
Ainda sem vacina e sem remédio, a pandemia de covid-19 acelerou o movimento “sem toque” para a prova de produtos nas lojas físicas de varejo por causa do risco de contaminação. Neste caso, o grande aliado para preencher essa lacuna é o uso mais intenso da tecnologia.
A arquiteta Anelise Campoi, presidente do Retail Design Institute Brasil e professora da ESPM, lembra que a grande ferramenta tecnológica neste caso é de realidade aumentada, usada hoje na experimentação virtual de itens de maquiagem.
A Lancôme, marca de luxo da L’Oréal no Brasil, por exemplo, desenvolveu um espelho que permite experimentar a maquiagem utilizando a realidade virtual. É possível encontrar desde o tom certo da base até a cor do batom que mais combina sem experimentar o produto fisicamente, apenas escaneando a imagem do interessado. O equipamento está disponível desde 2018 em 46 lojas espalhadas pelo País.
Uma das lojas que usam esse espelho inteligente é a revenda de cosméticos Sephora, conforme a reportagem apurou. “A pandemia acelerou o uso da realidade virtual no varejo”, afirma arquiteta especialista em design de lojas. Ela ressalta também que a covid-19 trouxe novos comportamentos de consumo que os varejistas devem levar em conta a partir de agora na hora projetar as lojas físicas.
Além da loja física mais digitalizada e com maior oferta de experiências, o consumidor que surgiu com a pandemia procura um comércio mais estável e organizado, onde o risco de contaminação é menor. Por isso, a especialista observa que lojas com uma curadoria de produtos são as preferidas. Outra forte tendência de consumo neste momento é o varejo local. Como normalmente as lojas de bairro são menores, elas dão uma sensação também de mais segurança para o consumidor e ganharam a sua preferência com a pandemia.
Fonte: Estadão