Indígenas, mulheres, negros e pequenos artesãos de mercadorias com impacto positivo multiplicam seus espaços no varejo brasileiro
Por Lana Pinheiro
No meio da Amazônia, debaixo das árvores, que vistas de cima mais parecem um compacto bloco verde, dezenas de pessoas de povos originários, comunidades ribeirinhas e quilombolas levantam todos os dias dispostas a produzir. De alimentos a artefatos de decoração, o potencial da bioeconomia local foi estimado em US$ 7 trilhões pela publicação científica Nature Sustainability (2018). Some a esse montante o valor gerado por tantos outros milhares de brasileiros das demais regiões do País que movimem a economia com a fabricação de produtos sustentáveis. Pois é esse mercado, aliado a uma oportunidade única de trazer os princípios ESG para o core do negócio, que as grandes varejistas estão mirando ao abrir os seus marketplaces para o varejo social ou comunitário.
Via, Mercado Livre e Magalu são bons exemplos. Estas três das maiores redes de varejo com operações no Brasil integraram a suas plataformas digitais empresas, marcas e causas que promovem impacto positivo. E assim estão provocando uma revolução no modelo de produção desses microempreendedores. Um exemplo é a história de Joanna Martins, sócia-fundadora da Manioca. Paraense, é neta de Anna Maria Martins e filha de Paulo Martins, que assumiram a missão de difundir a culinária local para o Brasil — os dois são referências no mundo da gastronomia. O primeiro passo foi um restaurante em Belém, o Lá em Casa. O sucesso foi tamanho que Paulo resolveu apresentar ingredientes como o tucupi, o jambu e as castanhas nativas para os mais renomados chefs brasileiros. A estratégia funcionou e eles passaram a consumir e difundir os produtos. Só havia um problema: era difícil comprar a mercadoria fora da região Norte. A solução veio com a filha que criou a Manioca, empresa de impacto especializada em especiarias amazônicas. Projeto de pé, o problema passou a ser o reverso: como chegar ao consumidor final. Aqui começa a grande revolução.
Em 2019, junto ao sócio Paulo Reis, Joanna iniciou a comercialização dos produtos Manioca no Mercado Livre. Primeiro com uma “loja” própria, mas logo foram escolhidos para um programa da plataforma que queria dar mais visibilidade aos produtos socioambientalmente responsáveis, como explica Laura Motta, gerente de Sustentabilidade da empresa. Foi naquele ano (2019) que decidiram criar uma categoria fixa que juntasse estes sellers. “Pois vimos ali uma grande oportunidade de impulsionar negócios de impacto positivo”, afirmou Laura. Duas foram as motivações. A primeira, a demanda do consumidor. “Desde 2017 quando criamos a Ecofriday [semana de promoção de produtos sustentáveis], percebemos uma tendência na busca de opções mais saudáveis e de impacto”, disse ela. O segundo, uma percepção de propósito. “Acreditamos que o Mercado Livre e o varejo têm a responsabilidade de dar visibilidade a essas marcas.” O negócio tem se mostrado vantajoso. De seu início até o ano passado, o projeto cresceu 463% para os atuais 10 mil empreendedores da categoria.
Se na ponta da venda a ação foi um sucesso, na do produtor ainda mais. Para Joanna, do Manioca, o resultado veio a galope. Durante 2019, o e-commerce chegou a representar 30% do faturamento perdendo somente para o varejo físico com 50%. O restante ficou dividido entre exportações e food service. Aí veio a pandemia e hoje representa 15%. Agora a expectativa da empreendedora é crescer. “O grande varejo permitiu criar uma ponte para atingirmos uma massa maior de consumo, mas temos de educar o brasileiro sobre os produtos da Amazônia”, afirmou a empreendedora. A estratégia passa pela ampliação da presença da marca no mundo real e no virtual. “O varejo físico funciona como showroom, e o e-commerce como canal de fidelização do consumidor de compras recorrentes.” Aqui entra a decisão dos sócios da Manioca de expandir a presença para outras plataformas digitais, como a recém-anunciada parceria com a Via.
ECOSSISTEMA Dona das marcas Casas Bahia, Extra.com.br e Ponto, a Via escolheu a Casas Bahia para lançar sua Loja Sustentável em janeiro deste ano. A inauguração aconteceu com 15 marcas e 200 produtos. O tamanho, pequeno diante da potência que é a rede, é justificável, como explica Luciana Pacheco, gerente de Comunicação e Sustentabilidade da Via. “Não queremos só expor os produtos. Queremos ajudar o vendedor a vender bem e o consumidor a incorporar hábitos mais responsáveis”, disse. Para cumprir o que promete, a empresa se juntou a um ecossistema que está sendo construído com empresas como a Pangeia e a Conexsus para tornar o varejo social uma realidade cotidiana e não mais uma moda passageira. “Esta não é uma ação. É uma iniciativa perene de desenvolvimento social, por isso não é um projeto comercial e sim um projeto de sustentabilidade feito com cuidado e diversos parceiros”, afirmou.
Trocando em miúdos parte do que Luciana disse, o varejo social traz o grande desafio de mudar o mindset dos grandes marketplaces construído na base de grandes escalas e metas ousadas. Ao trazer a produção de impacto para a plataforma não dá para que os KPIs exigidos sejam os mesmos dos sellers tradicionais. Segundo Gustavo Peixoto, CEO e fundador da Pangeia, empresa que além de ter um e-commerce sustentável é parceira da Via neste projeto, “a ideia é ter um novo modus operandi, com outros indicadores, em que o propósito é construir um mundo mais verde, integrado e justo”. Mas é legítima a pergunta: e o lucro? Luciana, da Via, garante que essa não é uma questão. “Vamos continuar olhando para isso”, disse. Mas, segundo ela, a estratégia da rede é uma composição em que algumas operações são mais voltadas ao lucro e outras a diferentes propósitos, como a que “coloca o ESG no core do negócio”.
O Magalu segue caminho parecido. Em fevereiro, a empresa lançou a Nordestesse, um hub que reúne em seu e-commerce 18 marcas nordestinas de produção artesanal. Mas o foco, disse Silvia Machado, diretora da empresa, é a moda. “A Nordestesse tem a intenção de trazer novos e pequenos varejistas de moda para a plataforma”, afirmou. Isso não exclui os demais produtos sustentáveis que tem na estrutura geral do marketplace do Magalu mais um canal de venda.
DESAFIOS Como é de se imaginar, integrar a esses gigantes uma loja sustentável com muito menos escala não é tarefa romântica. Um dos desafios, para Fabiana Munhoz, coordenadora de Acesso a Mercados da Conexsus, é chegar a novos sellers. “Os marketplaces precisarão de uma equipe dedicada a gerir esses fornecedores.” Isso porque, segundo ela, muitos ainda não têm “qualificação, gestão ou governança”. Via e Mercado Livre, por exemplo, estão investindo na capacitação dos novos parceiros e os apoiando com funções básicas como a digitalização até grandes desafios como a logística. Em troca, afirmou Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail, “ganham maior impacto no negócio, o que reforça propósito, valores e engajamento de todos os stakeholders”, além de atenderem uma demanda crescente de um consumidor que está buscando um comportamento consciente.
A tendência é vista também no varejo físico, mas para Cinthia Gherardi, diretora de Relacionamento e Marketing do Sistema B — uma comunidade global de empresas com impacto positivo —, é no on-line que está a força transformadora. “O e-commerce permite uma construção mais holística da narrativa de sustentabilidade apoiada por ferramentas audiovisuais em que os produtos contem suas histórias.” Histórias estas que são narradas por indígenas, mulheres, negros, quilombolas e artesãos que enfim encontraram no marketplace de grandes varejistas o ambiente ideal para amplificar sua voz até o consumidor final.
Fonte: IstoÉ Dinheiro