Por Talita Moreira, Fernanda Guimarães, Rita Azevedo | Às vésperas do Natal do ano passado, a Americanas avisou a debenturistas de três emissões diferentes que pretendia fazer o resgate antecipado dos papéis, que juntos somavam R$ 1,2 bilhão. Só uma das operações foi levada a cabo antes da revelação das “inconsistências contábeis” que fizeram a varejista pedir proteção contra credores. Mas as circunstâncias que levaram à tentativa e ao recuo permanecem como um dos enigmas dos dias que antecederam a debacle da varejista.
Nas últimas semanas, o Valor conversou com investidores, advogados e pessoas envolvidas na tomada de decisões naquele momento, para reconstituir o que aconteceu nos bastidores.
Do lado dos investidores, relatos indicam que, na época em que a Americanas contratou o BTG Pactual para conduzir as conversas com as gestoras, o sentimento foi de surpresa. Fundos que detinham os papéis não identificaram, naquele momento, razão econômica para a companhia gastar energia para recomprá-los. Em uma das casas em que o sinal amarelo acendeu, o time de crédito passou a calcular em qual cenário a varejista poderia ter estourado os “covenants” estabelecidos no contrato das debêntures ao longo do último trimestre de 2022.
Uma das cláusulas desses contratos estabelecia que a alavancagem medida pela relação entre dívida líquida e Ebitda não podia ultrapassar 3,5 vezes. Se estourasse esse limite, todas as dívidas de mercado de capitais da Americanas teriam vencimento antecipado, o que no jargão do mercado financeiro se chama “cross default”.
O que os investidores desses títulos aparentemente não sabiam é que os “covenants” já estavam estourados. Com isso, o gatilho poderia ter sido acionado.
O desconhecimento explica a surpresa dos debenturistas com o pedido de resgate dos papéis. Segundo o último demonstrativo financeiro divulgado, referente ao terceiro trimestre de 2022, a alavancagem estava em 1,7 vez — um patamar confortável. Essa era a informação oficial que os investidores tinham em mãos.
“Depois do pedido de resgate, começamos a desenhar situações em que a empresa poderia ter atingido essa alavancagem, porque teria que ter acontecido uma hecatombe para esse salto”, diz umas das fontes ouvidas pelo Valor. Nessa gestora, por exemplo, colocou-se na ponta do lápis a probabilidade de a Americanas ter feito vendas “tenebrosas” na Black Friday e no Natal, ou a possibilidade de a nova diretoria, que assumiria na virada do ano, ter solicitado provisionamentos para “limpar o balanço”. A fonte diz que houve pressão para que se liberasse a antecipação.
Segundo fontes próximas a investidores, não houve um aceno da empresa de que os “covenants” iriam estourar ou estavam estourados. No entanto, vários debenturistas procurados pelo Valor não quiseram falar sobre o assunto.
O passo a passo foi o seguinte. No dia 22 de dezembro, a Americanas anunciou que faria, em 11 de janeiro, o resgate total da 13ª emissão de debêntures (conhecida no mercado pela sigla Lamea3), exercendo um direito previsto nesses papéis, que pagavam 116,7% do CDI e venciam em 2026. Na mesma data, a varejista também convocou assembleias de debenturistas das 14ª (Lamea4) e 15ª (Lamea5) emissões para aprovar uma alteração na escritura desses títulos, de forma que também passasse a prever a possibilidade de recompra antecipada. Essas duas emissões pagavam CDI mais 3% e venceriam em maio e junho deste ano. As assembleias foram marcadas para 13 de janeiro.
Em 2 de janeiro, Sérgio Rial assumiu a presidência da Americanas, dando fim a duas décadas de gestão de Miguel Gutierrez. Assim, reuniões com os detentores de Lamea4 e Lamea5 foram marcadas para os dias 4 e 5 já com a nova diretoria. Só a primeira dessas conversas aconteceu. Rial alega que, depois de receber denúncias de dois diretores sobre a real situação da empresa, interrompeu o processo. Assim, no dia 9, a convocação das assembleias de debenturistas foi formalmente cancelada.
Mesmo assim, no dia 11, conforme estava previsto, a Americanas recomprou a Lamea3. A companhia resgatou os R$ 216 milhões que ainda estavam em circulação da captação de R$ 1 bilhão feita em 2019. O resto já havia sido amortizado. Por questão de horas, os investidores desses papéis escaparam da hecatombe que a varejista estava prestes a provocar.
Às 18h32 daquela quarta-feira, a empresa chocou o mercado ao publicar o fato relevante em que anunciava ter encontrado “inconsistências contábeis” da ordem de R$ 20 bilhões (esse número aumentaria nos meses seguintes) e Rial renunciava ao cargo. No dia seguinte, advogados da Americanas entraram na Justiça com pedido para evitar ter suas dívidas cobradas pelos credores. Uma semana depois, veio a recuperação judicial.
Fonte de uma gestora que tem títulos da Americanas afirma que, quando os resgates de Lamea4 e Lamea5 foram suspensos, a justificativa aos investidores foi que Rial estava chegando e queria um tempo para tomar pé da situação. “A partir do fato relevante, deu para entender o motivo”, diz.
Meses depois, o assunto veio ao holofote. Agora, o resgate antecipado das debêntures Lamea3 — as únicas a escapar da recuperação judicial — tornou-se alvo de uma nova ação do banco Safra contra a varejista. O banco questiona o porquê de uma empresa com necessidade de capital ter antecipado o resgate de papéis que venceriam apenas em 2026. Pediu investigação sobre os fundos que detinham os títulos, já que os recursos, na sua leitura, deveriam ser objeto da RJ. Outros credores também discutem se a medida beneficiou um grupo de credores e se há espaço para contestá-la.
Um detalhe sugere que a companhia tinha pressa. A recompra da Lamea3 foi marcada para o primeiro dia em que a escritura dessas debêntures permitia o resgate antecipado.
Da porta para dentro, a situação se deteriorava. Em 27 de dezembro, num e-mail a Gutierrez, o então diretor financeiro, Fabio Abrate, afirmou que, “na visão mais otimista”, a alavancagem da varejista já estava em 4,3 vezes — bem acima, portanto do “covenant” de 3,5 vezes.
“Para pensarmos… ajuda a elucidar o tema, mas vai precipitar a conversa do 4T22, pois na visão mais otimista, que seria utilizar o Ebitda operacional (desconsiderando todos os efeitos não recorrentes do trimestre), o que a princípio o debenturista não toparia, já fecharíamos com alavancagem de 4,3x (o que estouraria o covenant de 3,5x)”, escreveu Abrate ao chefe. Gutierrez sugere então não levantar o assunto, somente se alguém perguntar. “E se não levar nada. Só na conversa e caso seja demandado apresenta (sic)?”, responde, por e mail.
A troca de e-mails consta de peça apresentada pela Americanas no processo movido pelo Bradesco que pede a produção antecipada de provas relativas à fraude na companhia. As mensagens são um dos indícios apresentados pela varejista para sustentar que a fraude contábil foi cometida pela antiga diretoria.
A troca de e mails entre Gutierrez e Abrate ocorre dois dias depois de o então diretor financeiro ter conversado com Rial. A troca de mensagens via WhastApp à qual o Valor teve acesso, Rial pergunta a Abrate sobre a recompra e fala sobre alinhar o roteiro de um “call” sobre o assunto que ocorreria dali a dois dias com a participação, entre outros, de André Covre (que assumiria a diretoria financeira em janeiro).
Abrate então responde que as debêntures que seriam alvo da recompra somavam R$ 1,2 bilhão, sendo 83% com vencimento no primeiro semestre de 2023. “Elas [as debêntures] ainda carregam o covenant de dívida líquida/Ebitda de 3,5x. Com esse movimento, estaríamos eliminando o covenant e teríamos maior flexibilidade em relação ao 4T22 e também no ano de 2023”, afirmou.
O conselho acompanhava o dia a dia da varejista. E-mails e mensagens mostram conselheiros questionando diretores da Americanas sobre estoques, consumo de caixa, dívida e pagamento a fornecedores. Há, por exemplo, uma mensagem de Paulo Lemann (filho do empresário Jorge Paulo Lemann) no fim de outubro perguntando ao diretor Marcelo Nunes quanto da piora do capital de giro era pontual e quanto era estrutural.
As dificuldades da empresa também foram retratadas na ata de uma reunião sobre o planejamento financeiro de 2023, com participação de Rial, Covre e diretores, sem Gutierrez. O texto falava que a área financeira teria de atuar como “segunda linha de defesa” e que o dinheiro captado em oferta de ações já havia sido gasto. “Agora precisamos do dinheiro e temos que ir para a ‘guerra’ ”, descrevia a ata.
Um material da diretoria financeira indica que a situação piorou muito no quarto trimestre. Nele, a relação dívida líquida/Ebitda sai de 1,7 vez em setembro para 3,1 vezes em novembro. Esse material, chamado de “book”, era enviado periodicamente a um sistema para informar o conselho de administração sobre a situação financeira da companhia. Com esses dados, o conselho veria que a Americanas estava perto de romper os “covenants”. Porém, essa apresentação foi carregada no sistema na noite de 30 de dezembro, segundo documento a que o Valor teve acesso.
Fonte próxima aos conselheiros afirma que a recompra de debêntures era um tema da diretoria, e não foi tratada no colegiado.
Em nota, a defesa de Gutierrez diz que, “em momento algum”, o executivo “orientou que informações fossem escondidas de qualquer pessoa na companhia”. Gutierrez diz que, na troca de e-mails com Abrate em 27 de dezembro, “apenas orientou que a informação quanto ao estouro do covenant das debêntures fosse transmitida e opinou, dado que essa é uma questão bastante simples e direta, que em princípio não parecia necessário qualquer documento elucidativo mais detalhado para explicá-la (sobretudo estimativas não oficiais com base em números de um trimestre que ainda não havia acabado)”.
Também por meio de nota, Rial diz que “nunca tomou conhecimento de nenhum cenário que caracterizasse uma situação de crise financeira na Americanas antes de assumir o cargo de CEO, em janeiro de 2023”. O executivo afirma que, em documento de novembro apresentado ao comitê financeiro e a ele, a então diretoria disse que teria, no início deste ano, “R$ 9 bilhões em caixa e um Ebitda de R$ 3 bilhões positivos. Informava também que a dívida líquida da Americanas cairia de R$ 5,298 bilhões, no terceiro trimestre, para R$ 4,794 bilhões no quatro trimestre. Com isso, a alavancagem seria reduzida para um patamar de 1,6 vez, bastante inferior ao limite de 3,5 vezes que poderia gerar quebra de covenant financeiro”.
“Ao conhecer a situação crítica da companhia no início de janeiro, o executivo cautelosamente determinou a suspensão de qualquer negociação de debêntures, por meio do cancelamento das respectivas assembleias que haviam sido agendadas pela antiga diretoria da empresa, que escondida na conta fornecedores cerca R$ 20 bilhões, com vencimento de curtíssimo prazo”, diz Rial.
A Americanas afirma que a decisão de resgatar as debêntures e o pagamento da recompra da Lamea3 foram “medidas tomadas pela antiga diretoria da companhia”. A empresa também diz que documentos apresentados ao comitê financeiro em 7 de novembro, já disponibilizados às autoridades, mostram que “a antiga diretoria, liderada por Miguel Gutierrez, apresentou aos conselheiros visão de que a Americanas geraria R$ 500 milhões de caixa no 4º trimestre de 2022 e continuaria gerando caixa nos anos subsequentes, mantendo índice de endividamento financeiro saudável”.
A Americanas segue, até o momento, sem publicar seus balanços, que estão passando por uma revisão, trabalho hoje nas mãos da auditoria BDO. A publicação desses documentos também é premissa para que a varejista avance na negociação com seus credores.
Procurados, Abrate, conselheiros de administração e a LTS, holding dos acionistas de referência da Americanas, não se manifestaram.
Fonte: Valor Econômico