Lojistas terão mais flexibilidade para usar fluxo de pagamentos para viabilizar empréstimos
Por Talita Moreira, Fernanda Bompan e Sérgio Tauhata
Uma regra do Banco Central (BC) que entra em vigor nesta segunda-feira abre espaço para a oferta de centenas de bilhões de reais em crédito a micro, pequenas e médias empresas. A medida facilita o uso do fluxo de pagamentos com cartões como garantia para a obtenção de empréstimos. Credenciadoras, fintechs, fundos e bancos tradicionais se movimentam para atender o segmento.
De agora em diante, todos os valores recebidos por vendas feitas com cartões terão de ser registrados em câmaras registradoras, que irão atestar a existência e a unicidade desses recebíveis. A ideia é que as empresas possam oferecer esses ativos como garantia para obter crédito mais barato.
Os recebíveis de cartões já eram usados como garantia de duas formas: na antecipação oferecida pelas credenciadoras (as empresas de “maquininhas”) ou na obtenção de crédito bancário. No entanto, a resolução 4.734 do BC melhora a qualidade desse lastro porque o registro o torna mais seguro. Ao mesmo tempo, dá mais liberdade para os lojistas porque limita a chamada “trava bancária”.
Era praxe no mercado que, para conceder crédito com essa garantia, o banco exigisse reter que todo o fluxo de recebíveis de cartões ficasse “travado” na conta do lojista naquela instituição – mesmo que o crédito tomado representasse uma fração daqueles pagamentos. A prática tinha como objetivo mitigar a inadimplência, que é alta entre as pequenas empresas.
A partir da mudança, os bancos só poderão segurar o volume de recebíveis equivalente ao saldo devedor da operação de crédito. O restante poderá ser livremente usado pelo lojista para tomar mais recursos no mercado. A expectativa é que haja uma liberação de recursos até agora “empoçados”.
“Vai abrir uma gama para o estabelecimento negociar com mais de um agente e ter o limite de crédito ampliado, e ter mais concorrência, o que deve levar a taxas melhores”, afirma o diretor de fiscalização do BC, Paulo Souza. “A gente espera que os lojistas repassem essa economia para o consumidor.”
O regulador não divulga uma projeção de quanto a nova regra pode representar em crédito. Também não há dados oficiais sobre o tamanho do segmento hoje. Estimativas de mercado apontam que a antecipação de recebíveis movimentou cerca de R$ 290 bilhões no ano passado, enquanto o crédito “fumaça” – garantido pelo fluxo futuro de recebíveis de cartões – tinha saldo aproximado de R$ 45 bilhões em dezembro. As duas modalidades devem crescer, mas é nesta última que reside o maior potencial. O “fumaça” poderia se multiplicar para cerca de R$ 300 bilhões, segundo fontes do setor.
O tamanho do mercado de cartões vai balizar as perspectivas para a oferta, afirma Pedro Coutinho, presidente da Getnet e da Abecs, associação das empresas do setor. A expectativa é que o setor movimente R$ 2,3 trilhões neste ano, dos quais cerca de R$ 1,4 trilhão no crédito. Esse volume se divide historicamente meio a meio entre pagamentos à vista e parcelados.
“Com a regra, assimetrias desaparecem e a gente passa a ter um modelo único [de garantias centralizadas]. Vau haver maior competitividade”, diz Coutinho. “Nossa posição vai ser de ataque.”
Além de atuar na antecipação de recebíveis, a credenciadora do Santander planeja oferecer empréstimos, usando sua licença de sociedade de crédito direto (SCD). Com ela, pretende atender lojistas que não são clientes do banco. O Santander, por sua vez, afirma em nota que, se os clientes o autorizarem a visualizar sua agenda de recebíveis, poderá fazer a eles uma melhor oferta de crédito e de pré-pagamento. “É a avant-première do open banking”, diz Coutinho.
Não por caso, diversos competidores estão preparando ofertas baseadas nos recebíveis para avançar no mercado de empresas. É o caso do BTG Pactual, que lançou no ano passado um banco de varejo voltado a pequenas companhias. “Quando iniciamos a operação, pelo menos nove em cada dez clientes demandavam crédito”, afirma Gabriel Motomura, que espera rápida adesão ao produto.
Outro banco digital que vê oportunidade no uso da linha é o C6 Bank. Segundo Monisi Costa, chefe da área de pessoa jurídica, a regra será “um divisor de águas” tanto para os bancos tradicionais quanto para novos entrantes. Para estes, representa o fim da “reserva de mercado” que a trava impunha.
Fintechs também estão de olho no segmento. A Gyra+, que surgiu anos atrás oferecendo crédito sem garantia a pequenos lojistas de marketplace, começará a testar uma linha garantida por recebíveis de cartões no segundo semestre, diz Rodrigo Cabernite, cofundador. De acordo com ele, a depender da posição do credor no acesso dessas garantias, é possível imaginar uma redução de 0,5 p a 1 ponto percentual nas taxas de juros cobradas das empresas.
Carlos Maggioli, sócio-fundador da startup de antecipação de recebíveis Quasar Flash, diz que a regra representará “a demolição dos spreads” dessas operações. Segundo ele, a fintech poderá trabalhar com um spread de 1,5% – bem abaixo da média de 5% cobrada atualmente pelas credenciadoras. “Não tenho mais o risco de crédito, de ser uma fraude, por exemplo”, afirma.
O coração do novo modelo são as registradoras. São elas que vão atestar a existência daqueles recebíveis, e se eles já estão comprometidos em alguma operação de crédito. Habilitaram-se a prestar o serviço a Central de Recebíveis (Cerc), criada por executivos do mercado financeiro, a TAG, dos fundadores da Stone, e a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP). As três terão de interoperar e é a elas que bancos, credenciadoras e fundos precisarão se conectar para operar nesse segmento.
“Hoje, o mercado tem pouco apetite para alavancar clientes. O limite de crédito deles dificilmente chega a três vezes o faturamento. Com os recebíveis, pode aumentar muito”, diz Fernando Fontes, sócio-fundador da Cerc. Marcelo Maziero, também cofundador da registradora, acredita que haverá um período de adaptação, mas já vê movimentação de fundos e em cadeias de suprimento que podem usar o lastro dos recebíveis.
“A registradora abre possibilidade de operações que não eram possíveis ou eram complexas, como um lojista pagar com recebíveis um fornecedor ou comprar recebíveis de outro”, diz Breno Moreira, responsável pela área de negócios e tecnologia da TAG. Joaquim Kavakama, superintendente-geral da CIP, vê a possibilidade de aumento da oferta, do surgimento de inovações e da redução de custos no crédito.
A mudança pode parecer mau negócio para os bancos tradicionais, mas não é necessariamente assim. Se ficam mais vulneráveis às investidas de concorrentes, por outro lado terão acesso a garantias mais seguras e poderão conquistar novos clientes. Houve grande resistência à ideia quando foi apresentada pelo BC, há três anos. Hoje, o comando dos bancos já enxerga oportunidades, embora ainda se note algum apelo ao “status quo” nos escalões intermediários.
Com a nova regulação, a inadimplência tende a cair. “Isso levará a taxas mais baixas e uma concessão de crédito maior”, afirma André Daré, diretor de produtos para empresas do Itaú Unibanco, em nota. Na Rede, a aposta é oferecer ao lojista a gestão dos valores que tem a receber, inclusive os operados por concorrentes.
Para a Febraban, a norma traz “inegável benefício para o consumidor”, com maior concorrência entre bancos e credenciadoras e “empoderamento” dos lojistas.
Fonte: Valor Econômico