A Netshoes nasceu dentro de um estacionamento e se tornou o maior e-commerce de esportes da América Latina – sem jamais ter registrado lucro. Com o IPO, buscou capital para manter o crescimento. Mas a pressão por rentabilidade vai aumentar.
Aos 17 anos, o jovem descendente de armênios Marcio Kumruian começou a trabalhar como faz-tudo na loja Clóvis Calçados, no centro de São Paulo. Aos 25, pediu para usar uma parte do estacionamento do tio, na rua Maria Antônia, em frente ao Mackenzie, para vender sapatos. Em pouco tempo, o negócio que nasceu sem muitas pretensões, voltado a seus colegas de universidade, se transformou em uma rede de dez lojas, com um site para vendas virtuais. Até Marcio, aos 32, decidir mudar tudo. Ao lado de seu sócio e primo, Hagop Chabab, ele apostou todas as fichas no e-commerce e vendeu as lojas físicas. Aos 36, já orgulhoso por ter conquistado a internet brasileira com a Netshoes, resolveu desbravar outros mercados e partir para a Argentina e o México. Um ano depois, comemorou a marca de R$ 1 bilhão em faturamento pela primeira vez. Agora, aos 43 anos, Marcio se prepara para dar a sua maior cartada: abrir o capital da Netshoes nos Estados Unidos, um movimento inédito para um e-commerce brasileiro. O que começou num puxadinho, quem diria, chegou a Wall Street.
O IPO na bolsa de Nova York (Nyse) foi realizado no dia 12 de abril deste ano. A Netshoes esperava levantar até US$ 189,7 milhões. Números para seduzir os americanos ela tinha. A empresa é hoje o maior e-commerce de artigos esportivos da América Latina. Na categoria de vestuário e calçados possui 18,3% de participação de mercado, segundo a Euromonitor. No Brasil, a fatia de 40,3% garante a liderança folgada. A Netshoes é a 5ª maior marca do comércio eletrônico brasileiro. Fechou 2016, um ano de recessão, com 10,3 milhões de pedidos, um aumento de 20,8% frente a 2015.
Mas a Netshoes também tem algo para deixar qualquer investidor, brasileiro ou americano, ressabiado: o lucro ainda não deu as caras no balanço da empresa. A estratégia dos “nets” tem sido apostar na expansão, sem se preocupar (muito) com a última linha do balanço. A receita líquida, de R$ 252,9 milhões em 2010, terminou 2016 em R$ 1,7 bilhão. Para crescer num ritmo alucinante de dois dígitos ano após ano, é preciso investir um caminhão de dinheiro em marketing, tecnologia e logística. A solução? Injeção de capital novo, seja por venda de participação acionária, rodada de investimentos ou, como se vê agora, uma abertura de capital, cogitada pelo menos desde 2013. Ao final, ao realizar enfim o IPO em abril e vender 8,25 milhões de ações, a Netshoes captou US$ 138,85 milhões no total. As ações “NETS” foram negociadas a preço unitário de US$ 18.
O IPO marcou a oportunidade para os fundos estrangeiros que acreditaram na Netshoes receberem parte do retorno de seu investimento na varejista, com a venda de ações da companhia. Apesar de Marcio gostar de velocidade, a exigência do crescimento frenético dos últimos anos veio, em grande parte, dos fundos. A lógica é simples: quanto maior a empresa, mais eles ganham na hora de dar adeus ao investimento. Um caso clássico e parecido ao da Netshoes é a venda da Zappos para a Amazon. Pioneira no comércio de calçados pela web, ela dobrou sua receita todos os anos, de 2005 a 2007. Em 2009, o martelo da aquisição foi batido por US$ 1,2 bilhão.
No bullshit, man
Fundador e CEO da Netshoes, Marcio Kumruian tem uma origem humilde, não estudou nos melhores colégios e não fez MBA em Stanford. Seus pais morreram quando ele era jovem e foi trabalhando desde cedo que Marcio ajudou a pagar os estudos da irmã mais nova. Na época, seu passatempo para relaxar após o serviço era montar e desmontar computadores. Um prenúncio do que viria pela frente? Intuição nunca parece ter lhe faltado. “O Marcio sempre tomou decisões baseado naquilo que sentia, sem analisar milhares de slides ou se prolongar em uma escolha”, diz um ex-funcionário. E-mails longos, para convencê-lo a investir em um projeto? Esqueça. “Se você não capturar a atenção dele em três linhas, já era.”
Comandando hoje uma empresa de 2,7 mil funcionários, Marcio é definido como um líder pragmático, que simplifica para inovar. “Ele não tem vergonha de copiar. Busca, fuça e gosta de saber o que estão fazendo de melhor lá fora. E-commerce é repetição, ele diz”, afirma um ex-funcionário. Ele é obcecado por detalhes, mas um aviso: evite grandes apresentações em PowerPoint. “Ele já manda um e-mail dizendo: reunião, tal hora, número máximo de slides: três, incluindo a capa”, conta quem já trabalhou com ele. E nem tente enrolá-lo. “No bullshit” é uma de suas máximas.
Ele é descrito como um chefe duro, visionário e workaholic. Espere uma ligação aos sábados (acompanhada de um pedido de desculpas) e, se viajar a trabalho, prepare-se para debater sobre negócios durante todo o voo. Como fundador, ele falou, e ainda fala, muitos “nãos”. Mas é um chefe que concede autonomia – ainda que seja para errar. Certa vez, um alto executivo, do círculo restrito de Marcio, cometeu um deslize que fez a Netshoes perder um bom dinheiro. Cabisbaixo, bateu à porta do chefe preparado para ser mandado embora. Confessou o erro e deixou o cargo à disposição. “Seu cargo sempre está à disposição porque sou seu chefe. Mas, me conta, o que aconteceu? Quero ter certeza de que você aprendeu com isso.” Explicações dadas, o executivo voltou ao trabalho.
“Toca a ficha”
Ao dar aval a uma nova ideia, Marcio costuma mandar um “toca a ficha”. Agora, com ações negociadas na bolsa, para onde irão as fichas da Netshoes? Os principais planos envolvem projetos já iniciados com o objetivo de continuar crescendo, mas também de perseguir a lucratividade.
Uma das apostas é se lançar em novos nichos de mercado. Em dezembro de 2014, replicando o know-how obtido com artigos esportivos, a Netshoes decidiu aventurar-se no setor de moda, um dos de maior margem no varejo e a categoria mais vendida do e-commerce brasileiro. Marcio trouxe executivos renomados, inclusive da rival Dafiti, estruturou uma área comercial independente e lançou a Zattini, oferecendo marcas de peso como Colcci, Cavalera e Diesel. Com o tempo vieram os sapatos e, no ano passado, os cosméticos. Tendo a atriz Giovanna Antonelli como garota-propaganda, em um ano de operação, a Zattini saltou de 12 mil produtos distribuídos entre 70 marcas para 40 mil artigos de 300 marcas. Em 2016, respondeu por 11,5% das vendas da Netshoes no Brasil.
A experiência bem-sucedida irá render mais novidades. A próxima tacada, segundo apurou Época NEGÓCIOS, deve ser a venda de artigos para bebês. “A diversificação é importante para a Netshoes. Ela não tem muito mais espaço para crescer em artigos esportivos, precisará entrar em outras categorias”, afirma Paulo Humberg, pioneiro da internet no Brasil, fundador do Shoptime e do ClickOn. Outra alternativa nessa estratégia de expansão seria a compra de empresas rivais. “A Dafiti faria todo o sentido, por exemplo”, diz Humberg. E, claro, há sempre a possibilidade de oferecer serviços complementares aos produtos Netshoes. Hoje, a empresa já promove a Netshoes Fun Race. Ela organiza a corrida e vende o kit (a inscrição, junto a outros artigos, como camiseta e até fone de ouvido) para os participantes interessados em participar do evento esportivo.
A mina de ouro
A diversificação faz todo o sentido, mas se o assunto é rentabilidade não há o que bata a estratégia do marketplace. No varejo virtual, a venda de produtos de terceiros é vista hoje como a mina de ouro do comércio eletrônico. É nessa praia que os lucros escassos do setor têm aparecido. O maior exemplo de marketplace na América Latina é o Mercado Livre. A plataforma virtual, fundada pelo argentino Marcos Galperin em 1999, dá lucro há mais de 40 trimestres seguidos.
Os grandes varejistas demoraram, mas perceberam o bem que o marketplace faz para um balanço, ao repassar custos para um terceiro e abocanhar parte da venda. A Netshoes lançou o seu em fevereiro de 2016 e irá reforçá-lo. A prática passou a ser adotada em larga escala pelos e-commerces brasileiros. Gigantes como a B2W e a Cnova também apostam nele para reequilibrar o caixa. E a tendência só deve se fortalecer. Enquanto o Brasil soma cerca de 600 mil sites de e-commerce, o número de vendedores avulsos (vendas individuais ou feitas em marketplaces) chega aos 17 milhões, de acordo com dados da BigData Corp. “Estamos falando de cerca de 10% da população brasileira vendendo coisas online”, diz Thoran Rodrigues, CEO de BigData Corp. “O número de lojas virtuais vem crescendo por volta de 20% ao ano, enquanto o de vendedores avulsos subiu 60% de 2015 para 2016.”
A Netshoes leva uma vantagem nessa seara. Só consegue viver de marketplace quem tem boa audiência. Os “nets” registram 70 milhões de visitas em seus sites por mês. Ser um gigante ajuda – e muito – nessa hora. E, num ambiente como o e-commerce brasileiro, em que apenas cerca de 1,65% das visitas dos internautas se convertem em compras, essa multidão vem bem a calhar.
A busca pelo aumento da rentabilidade passa também pelo lançamento e crescimento das marcas próprias. Sem um intermediário, é possível obter melhores margens. A primeira da Netshoes a sair do papel, em 2014, foi a Gonew, de artigos esportivos, hoje a terceira mais vendida em seus sites. Vieram na sequência várias outras, como Mood, Burn e Treebo. Em 2016, as marcas próprias responderam por 6% das vendas da Netshoes no Brasil.
A boa experiência e o retorno deram o aval para que a empresa investisse mais no setor. Desde 2009, a Netshoes namorava a rede paulista de calçados Shoestock, que conquistara um público fiel e cativo. Inaugurada em 1986, em Moema (SP), a empresa de calçados femininos foi pioneira no autosserviço neste nicho – as mulheres não precisavam esperar o vendedor ir até o estoque buscar um modelo, bastava pegar na própria prateleira e experimentar. Nos tempos áureos, consumidoras faziam fila para comprar ali. A rede, contudo, enfrentou problemas de administração e não soube lidar com altos custos operacionais. Fechou as portas em 2015. Poucos meses depois, a Zattini anunciou a aquisição da marca, que voltou ao mercado no mês passado. Justamente no endereço mais antigo, o de Moema, mas agora com uma roupagem nova. Além de poder escolher e experimentar sozinhas o sapato, as consumidoras também podem pagar direto no caixa sem a ajuda de um atendente. “A Shoestock foi um movimento assertivo para a empresa ganhar margem. Mas o jogo é intenso. Para fazer diferença, as marcas próprias precisam chegar a representar 50% das vendas”, diz Mariano Gomide, da VTEX. O plano, segundo o prospecto para a abertura de capital, é continuar a investir nas marcas Netshoes.
De volta às origens
Com a abertura da primeira loja da Shoestock, o grupo Netshoes volta para onde começou: uma loja de rua de calçados. Neste caso, passado e futuro se entrelaçam. Quem entende de varejo é categórico ao afirmar: o retorno é definitivo. É uma questão de tempo até a empresa abrir mais pontos de venda. A combinação entre o mundo de bits e bytes e o dos tijolos, de modo que eles se complementem, é uma das alternativas que os grandes e-commerces mundiais têm encontrado para reduzir o custo de logística e fortalecer suas marcas. A Amazon, eterna referência do setor, surgida na web, já programou a abertura de dez livrarias. “Se tem algo que o Marcio e sua família sabem fazer é vender sapatos”, diz Lígia Zeppelini, especialista em comércio eletrônico. “E, no caso da Shoestock, eles estão testando algo importante para o momento do e-commerce: uma experiência multicanal integrando celular, autosserviço e loja física.”
Outra frente para crescer explorada pela Netshoes é conquistar o resto da América Latina. Ela avisou ao mercado que pretende ampliar sua presença fora do Brasil, aumentando sua operação na Argentina e no México, e até se lançar a novos territórios. Essa movimentação, no entanto, é mais polêmica. Se por um lado pode ser um caminho certeiro para ganhar escala, por outro os custos são bastante altos e as diferenças culturais e de estrutura podem cobrar seu preço. Há quem diga que o melhor mesmo é se concentrar no Brasil, onde ainda há muito território a ser desbravado. Além disso, o e-commerce é muito mais desenvolvido por aqui do que no resto do continente: 76% dos sites de comércio eletrônico na América Latina são brasileiros. O México aparece num distante segundo lugar no ranking, com 8,5%, segundo dados da BigData Corp. A decisão de expandir localmente ou regionalmente – ou ambos – vai depender do apetite de Marcio (e do dinheiro que entrará no IPO, claro).
O drama de quem não lucra
O caminho traçado para o futuro pela Netshoes parece correto, segundo especialistas. Por ora, no entanto, o lucro – sempre ele – não deu as caras. Em 2015 e 2016, a empresa registrou Ebitda positivo no Brasil, ainda que modesto: R$ 10,6 milhões e R$ 5,4 milhões, respectivamente. Considerando também as operações internacionais, no entanto, ele ficou negativo em R$ 43,9 milhões no ano passado. E pior: o prejuízo por pedido aumentou. “Para cada transação que a Netshoes fez em 2015, ela perdeu R$ 12. Em 2016, foram R$ 14”, afirma Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores. Para chegar ao resultado, a consultoria dividiu o prejuízo registrado no ano pelo número de transações realizado no período. “A entrega ainda é um desafio enorme no Brasil. Nesse sentido, eu acho que a Netshoes deveria se reinventar. Por que ela precisa ir até a sua casa? Por que não pode chegar através de um parceiro?” Apesar de ainda não existir uma experiência dessas no Brasil, Ana conta que a moda está pegando no mundo. “No Japão, por exemplo, você compra online na Uniqlo e retira no Seven Eleven. A tendência é montar projetos conjuntos, em operações que não tenham conflito.”
O drama da busca infrutífera pelo lucro não é uma exclusividade da Netshoes. Boa parte das grandes varejistas brasileiras sofre do mesmo mal. A maior empresa de e-commerce nacional, a B2W, dona do Submarino e da Americanas.com, apresentou um rombo de R$ 485,8 milhões em 2016. Algo similar deu-se com a Cnova, sua maior rival. Nascida da fusão entre a francesa CDiscount, do Casino, e a brasileira Nova Pontocom, do Grupo Pão de Açúcar, ela foi mais tarde integrada à Via Varejo, que registrou perda de R$ 95 milhões no mesmo período. O problema é que, diferentemente dos marketplaces, todos esses sites vendem produtos próprios e têm custos enormes. Por exemplo: sustentam grandes centros de distribuição, metem-se em disputas canibais por preço, investem um dinheirão em novas soluções tecnológicas e bancam o frete de toda sorte de produtos enviados para a clientela. Isso sem falar na publicidade. “As operações de e-commerce são muito dependentes do marketing. Se você não colocar um caminhão de dinheiro em mídia digital, você não tem fluxo. Sem fluxo, não há tráfego e as vendas não acontecem”, diz Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).
Se os gastos com publicidade parecem ser incontornáveis, a farra do frete grátis indiscriminado já terminou na Netshoes, assim como na maioria dos e-commerce brasileiros. “O frete grátis é uma maneira de convencer os consumidores a comprar online, mas ele representa de 10% a 20% dos custos de um e-commerce”, diz Pedro Guasti, do e-bit. Como não há mágica para recuperar as margens, as empresas reavaliaram essa prática, passando a cobrar o consumidor ou a oferecer a gratuidade apenas em determinadas condições. Atualmente, o frete grátis ocorre para até 25% das vendas nas grandes lojas, diz Guasti. “A conta com frete gratuito não fecha. Os grandes varejistas já entenderam isso”, diz Mauricio Salvador, presidente da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm).
Sedutora o suficiente?
Às vésperas do IPO, a questão que fica é: a Netshoes será capaz de encantar Wall Street? Vejamos, primeiro, os aspectos positivos. Além do faturamento robusto da própria empresa, o e-commerce brasileiro tem muito a oferecer aos americanos: o Brasil é dono da quarta maior audiência online do mundo, com 139 milhões de internautas. Em 2016, em plena recessão, o setor de e-commerce faturou R$ 44,4 bilhões, uma alta de 7,4% em relação a 2015. Uma multidão de 48 milhões comprou pela internet pelo menos uma vez no ano passado, o equivalente a quase cinco vezes a população de Portugal. E esse número só tende a crescer. “Todos os anos nós temos milhões de consumidores fazendo pela primeira vez uma compra pela internet. Em 2016, foram 4 milhões”, afirma Salvador, da ABComm. O e-commerce representa hoje apenas cerca de 3% das vendas do varejo no Brasil, segundo Eduardo Terra, da SBVC. “A média mundial é de 7%. Nos EUA, são 10%. Na Inglaterra 18%, na China 20%. Portanto, o potencial de crescimento em todas as categorias é muito grande”, diz.
O IPO da Netshoes é um marco para o setor de e-commerce brasileiro. Mas por que, então, a festa será em Nova York? A opção pela bolsa americana se deu por diversos motivos. Lá, os principais fundos acionistas da empresa, como a Tiger, estão em casa e conhecem bem melhor o jogo. Por ter um mercado financeiro muito mais desenvolvido, existe nos Estados Unidos, de forma geral, uma paciência maior com companhias pontocom e uma melhor compreensão do ramo, conhecido por suas empresas passarem anos sem dar lucros convincentes. Resumindo: a Netshoes provavelmente não alcançaria o valor pretendido para a abertura de capital, se ela fosse feita no Brasil. “Eles já mediram o apetite dos investidores brasileiros e viram que seria frustrante ou não existiria”, afirma Ana, da AGR Consultores. Paulo Humberg explica os motivos para a apatia. “O investidor brasileiro acha que as empresas de tecnologia são construídas por ‘maluquetes’. Ele não está preparado para tomar esse risco, principalmente quando sabe que irá conseguir 14% de juros ao ano em outros investimentos.” A história, nos Estados Unidos, é outra, segundo ele. “O investidor americano está educado para dar o valor correto à sua empresa.”
Outro motivo é o possível fim de um ciclo do comércio eletrônico no Brasil. “Até 2012, as empresas mostravam musculatura ganhando participação de mercado em um segmento forte, como a Netshoes com artigos esportivos”, diz Guasti, do e-bit. “Hoje, o mercado quer ver, de fato, o quanto essa empresa pode gerar de valor nos próximos anos. Os fundos buscam algo a mais, cresceu a expectativa por Ebitda e lucro que não seja tão demorado.” No mercado, a notícia da abertura de capital foi bem recebida até pela concorrência. “O IPO vai ser bom para eles e para o resto do segmento. No Brasil, não existe a cultura de investir em empresas que ainda não ganham dinheiro”, diz Philipp Povel, CEO da Dafiti. “Nos EUA, o e-commerce conta com aportes de US$ 50 bilhões por ano. Aqui, não chega a US$ 500 milhões.”
Novos tempos
Agora, o outro lado. Não se sabe, por exemplo, até que ponto irá a compreensão dos americanos. No prospecto da abertura de capital, a Netshoes deixa bastante claro que não pretende pagar dividendos num futuro próximo. Caso haja lucro, diz, ele será usado para a expansão da empresa. A estratégia de apostar no crescimento em detrimento da rentabilidade, portanto, irá permanecer a mesma. Mas muito mudará. Ao chegar à bolsa, a Netshoes adentra território desconhecido. “Ela vai ser muito mais cobrada, estará na lupa do mundo, precisando se reportar a cada trimestre – e não mais anualmente”, diz Guasti, do e-bit.
Entre os potenciais riscos que a própria Netshoes descreve no pedido de listagem, está o fato de que o capital aberto irá demandar recursos significativos da companhia, de gente e de tempo, e a atenção dos gestores. “A Netshoes será mais cobrada pelos resultados financeiros. Veja como foi com as redes que estão na bolsa: Renner, Hering, Marisa”, afirma Marcelo Prado, sócio-diretor do IEMI, empresa de pesquisas de inteligência de mercado. “No primeiro momento, é namoro. No ano seguinte, vem a cobrança por resultados e cumprimento das metas. A relação com o investidor muda. Não é mais um ‘estamos juntos, vamos crescer juntos’.”
O ponto é: o mercado será paciente o suficiente para amargar anos a fio sem nenhum registro de lucro? As ações não irão sofrer na bolsa? A Netshoes será obrigada a usar o freio pela primeira vez em sua história, domando a sede de expansão em nome de maior rentabilidade? E, nesse caso, Marcio Kumruian, o vendedor “do lojinha” que ganhou as Américas, continuará sendo o homem ideal para tocar os negócios? Ou ainda, ele gostará de liderar uma companhia com o freio puxado?
O coração da Netshoes
Após diversas rodadas de investimentos e aportes, Marcio detém atualmente 17,7% do capital da Netshoes. Sua participação futura como acionista, após o IPO, ficará por volta de 12%. Atualmente, é a Tiger quem tem a maior fatia da companhia, com 37,8%. Na prática, porém, é Marcio quem sempre deu as cartas na empresa. Há quem não imagine a Netshoes sem ele – e não são poucos. Junto a um seleto grupo de executivos de sua confiança, ele centraliza as decisões mais importantes.
O modelo de tentativa e erro, a tal da gestão consagrada pelo Vale do Silício, reinou na Netshoes por muitos anos. Quem trabalhou lá antes de a empresa virar um gigante conta que ela era uma “verdadeira escola de e-commerce”, já que não havia cursos sobre o assunto e pouca tecnologia disponível no Brasil. Imperava o espírito de startup. Mas o crescimento cobraria seu preço. Hoje, existe uma “fila” de projetos e processos muito bem definidos. “A Netshoes cresceu, ficou grande e acabou virou uma empresa normal”, diz um ex-funcionário que deixou a companhia em 2016.
Os tempos de startup podem estar fazendo falta. “Acho que a gestão está engessada. As transformações foram muito lentas. A Netshoes demorou demais para montar loja física e ter marca própria”, afirma Ana, da AGR Consultores. “Eles precisam retomar aquele espírito empreendedor que tinham lá no início. Ficaram mais conservadores.” Difícil saber se Marcio concorda. A Netshoes não concedeu entrevista à reportagem, alegando restrições legais devido à proximidade do IPO.
Há quase 20 anos, o destino da Netshoes e de Marcio estão entrelaçados. Para continuar assim, ele terá de usar sua lábia para cair nas graças dos gringos. Armas para isso ele tem. É um líder forte que conhece como ninguém o negócio, segundo Gomide, da VTEX. “O mercado financeiro ainda não compreendeu que o mundo digital exige um líder veloz, ágil, e que a empresa não viverá sozinha sem ele. Não é só profissionalizar e colocar um executivo inteligente. A Amazon depende 100% do Jeff Bezos, o Alibaba, 100% de Jack Ma. Por que a Netshoes não pode depender do Marcio?” Haja moral! Resta saber se os gringos vão concordar.
Fonte: Época Negócios