A varejista online Netshoes precisa fazer mudanças estruturais urgentes, ou até mesmo fechar o capital, para conseguir se recuperar e encontrar o caminho do lucro. A avaliação é de analistas e consultores ouvidos pelo Valor. Para eles, a companhia, que por anos a fio foi apontada como um caso de sucesso, acabou transformando-se em um conjunto de problemas.
Desde que abriu o capital na bolsa de Nova York, em abril do ano passado, a Netshoes carrega uma estrutura pesada, com altos gastos de marketing; e uma operação pequena de markteplace (plataforma para vender produtos de terceiros). O portfólio, antes focado em calçados, vestuário e artigos esportivos, abriu-se para produtos fora desse universo, mas as vendas não reagiram. Há dificuldades para crescer no Brasil, cuja economia cresce pouco e devagar. Mas na América Latina a companhia também não está conseguindo aumentar as vendas.
“Foi um erro a Netshoes ter aberto capital nos Estados Unidos. poderia ter captado recursos de investidores estrangeiros no Brasil”, disse Douglas Carvalho, sócio da Target Advisor, consultoria especializada em varejo.
Carvalho observou que investidores que operam na bolsa brasileira são em número menor, mas se dispõem a esperar mais tempo até o preço da ação reagir, porque compensam essa queda com operações de baixo risco (como investimento em títulos do Tesouro, ou CDB). Nos EUA há mais investidores dispostos a investir em empresas de tecnologia. Mas eles também se desfazem rapidamente das ações se os preços caem. “Seria melhor a Netshoes fechar o capital, como fez a Dell. E depois que arrumar a casa abre o capital de novo”, avaliou o executivo.
Quando fez a abertura de capital, em 12 de abril de 2017, os sócios da Netshoes captaram US$ 138,85 milhões, com a venda de 8,25 milhões de ações na bolsa de Nova York. A Netshoes tem como principais sócios Marcio Kumruian, cofundador da empresa e presidente executivo, Tiger Global Investors, GIC Privated, Temasek Holdings, e Riverwood Capital Partners — os mesmos que participaram da oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês).
Desde que abriu o capital até ontem, a ação da Netshoes perdeu 87,6% do seu valor, saindo de US$ 18 para US$ 2,23. O valor de mercado da companhia, baseado no preço das ações, passou de US$ 556 milhões para US$ 64,03 milhões — um valor que permitiria a recompra de ações pelos principais sócios da empresa. Em 2014, a Netshoes chegou a ser avaliada em US$ 1 bilhão pelos fundos que fizeram aporte de recursos na companhia. “O negócio [agora] está muito barato. Seria a melhor saída agora”, diz Carvalho.
Procurada pelo Valor, a Netshoes preferiu não se pronunciar. Em abril do ano passado, quando abriu o capital da companhia, Kumruian disse que havia escolhido a bolsa de Nova York devido ao potencial de maior liquidez para as ações. “Hoje, poucas empresas fazem um trabalho semelhante ao nosso, com comércio eletrônico de moda, artigos esportivos e produtos de beleza. Mas os poucos que fazem o mesmo trabalho estão na Nyse, o que favorece a avaliação do valor de mercado da Netshoes”, afirmou Kumruian no primeiro dia de pregão da companhia.
A companhia não tem conseguido entregar resultados propostos aos investidores na abertura de capital da companhia.
No dia da estreia na bolsa de Nova York, Kumruian, também disse que a captação de recursos com a oferta pública inicial de ações serviria para acelerar planos de investimentos. No foco estavam a expansão dos negócios da Zattini, que representava 10,2% da receita total da companhia, e a ampliação das operações na Argentina e no México, que hoje representavam 10,6% da receita do grupo. “A meta é replicar na Argentina e no México o mesmo nível de desenvolvimento que as operações da companhia possuem atualmente no Brasil”,disse Kumruian na época.
No primeiro trimestre deste ano, a receita no México e na Argentina caiu 4,4%, para R$ 40,7 milhões. A empresa não divulgou dados de vendas da Zattini. As vendas brutas totais no Brasil tiveram incremento de 1,4%, para R$ 360,4 milhões.
Em relatório divulgado em maio, o analista Andre Baggio, do JP Morgan, alertou para a queima de caixa contínua da companhia, sem aumentos relevantes da receita. “Desde o seu IPO, [a Netshoes] tem decepcionado em várias frentes, levando ao declínio do crescimento da linha superior, e pondo em risco o caminho para lucratividade”, escreveu em relatório.
No primeiro trimestre deste ano, a Netshoes reduziu a sua posição de caixa em 85%, saindo de R$ 396 milhões em dezembro de 2017 para R$ 60,7 milhões no fim de março. Em seu balanço, a companhia informou que, nos trimestres anteriores, antecipava com bancos recebíveis de cartões de crédito, o que aumentava a geração de caixa, mas também gerava maior despesa financeira. A companhia decidiu abolir essa prática, tendo efeito negativo no caixa.
As vendas não reagiram, mostrando tendência oposta à esperada pelo mercado. Analistas aguardavam uma aceleração dos negócios, em função da proximidade da Copa do Mundo — o que geralmente estimula as vendas de camisas de seleções e outros produtos ligados ao futebol.
No relatório de resultados do primeiro trimestre, Kumruian afirmou que o desempenho no trimestre “reflete, em parte, o ambiente de consumo no Brasil, que ainda não acompanha o ritmo lento de melhoria do clima macroeconômico”. Mas, uma fonte do mercado de comércio eletrônico disse que o setor cresceu mais de 10% no primeiro semestre. “A Netshoes teve desempenho abaixo do mercado”, disse a fonte.
Um analista de mercado, que acompanha a empresa, disse que a Netshoes precisa cortar custos com urgência, para melhorar seu resultado financeiro. Ele ponderou que a empresa opera com uma estrutura cara, o que dificulta a companhia a melhorar sua rentabilidade. “Deter estrutura de tecnologia própria, em vez de contratar uma empresa especializada em plataformas de comércio eletrônico, encarece a operação”, disse o analista.
Outro problema é o custo de marketing, mais alto do que de outras varejistas que operam na internet como Mercado Livre e Magazine Luiza. Essas empresas têm um número tão alto de produtos e a audiência é tão grande que aparecem no topo de pesquisas do Google, sem custos para as empresas. “A Netshoes, por sua vez, depende de marketing pago para atrair tráfego”, comparou.
A companhia também mantém uma operação pequena de marketplace, equivalente a 10% de suas vendas brutas. Outras companhias de comércio eletrônico no Brasil como B2W, Mercado Livre e Magazine Luiza, ampliaram suas operações de marketplace, devido ao ritmo acelerado de crescimento dessa operação.
No fim do ano passado a empresa teve que lidar com outra má notícia: um vazamento de dados de quase 2 milhões de contas cadastradas na sua página na internet. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MP) recomendou, em janeiro, que a empresa entrasse em contato por telefone com todos os clientes afetados pelo incidente — o que a Netshoes informou que faria até abril.
A investida em suplementos alimentares não foi bem sucedida. A empresa precisa se livrar de estoques altos que ainda carrega, segundo fontes a par do assunto. Desde 2016, a companhia detém licença exclusiva para vender e distribuir suplementos nutricionais e vitaminas da Midway Labs USA no Brasil. Em 2017, a companhia decidiu reduzir a escala da operação para focar na melhoria do modelo econômico. As vendas eram destinadas a outras empresas, como drogarias e supermercados. Mas parte dos clientes atrasou o pagamento.
Na negociação com esses clientes, a Netshoes estendeu prazos de pagamento e aceitou a devolução de produtos, aumentando seus estoques. No fim de 2017, a empresa tinha R$ 117,7 milhões em suplementos nos estoques. No balanço de 2017, a companhia informou que não sabia se conseguiria vender todo o estoque antes do vencimento dos produtos.
Todos esses fatores, de tempos em tempos, contribuíram para causar fortes quedas nas ações da companhia. A mais recente foi em 15 de maio, após a divulgação do balanço do primeiro trimestre. As ações da Netshoes chegaram a cair 43,7% no dia.
Essa queda levou o escritório de advocacia americano Bragar Eagel & Squire a anunciar, na semana passada, que abriria uma investigação sobre a empresa, para apurar se ela violou regras do mercado de capitais, ou se adotou medidas ilegais. O escritório busca acionistas da companhia interessados em abrir uma investigação sobre a Netshoes.
Os escritórios RM Law e Kaplan Fox & Kilsheimer também anunciaram interesse em abrir investigações semelhantes em junho. Em novembro de 2017, o Holzer & Holzer divulgou que buscava acionistas interessados em abrir uma investigação sobre a companhia, logo após a divulgação dos resultados do terceiro trimestre, com consequente queda no preço das ações.
Uma fonte com conhecimento na área jurídica disse que nenhuma investigação foi aberta ainda contra a Netshoes. “O fato de já ter passado algumas semanas desde que as ações tiveram a queda mais forte, pode dar a entender que não houve interesse dos acionistas em mover uma ação. Mas isso pode mudar a qualquer momento”, disse a fonte.
Fonte: Valor Econômico