Por Elaine Medeiros e Tatiane Pamboukian
As mulheres desempenham muitos papéis e chefiam em torno de 45% dos lares brasileiros, segundo o IBGE. No varejo não é diferente. Aproximadamente metade dos profissionais do comércio são mulheres. Porém, elas ganham em média 20,5% a menos que os homens (IBGE 2022), o que representa 74 dias de diferença salarial em relação a eles, e cerca de 20% ocupam cargos de liderança no setor.
Este é o cenário de um mercado em que 80% dos compradores são mulheres, responsáveis pelas decisões de consumo, mas quando verificamos quantas delas estão, por exemplo, nos cargos de CEO, esse número diminui drasticamente para duas vagas em média. (Fonte: Instituto Mulheres do Varejo).
- Cerca de 70% das mulheres acreditam que têm mais dificuldades para se recolocar no mercado depois que se tornam mães e 65% dos homens entrevistados concordam
- 64% das mulheres afirmam que para alcançar os cargos mais altos da organização elas precisam desenvolver um estilo de liderança mais masculino
É por isso que lutar para ter seu espaço dentro do mercado varejista, tipicamente liderado pelos homens, ainda é desgastante para muitas mulheres, pelo fato delas terem que provar, quase que o tempo todo, a sua capacidade.
O lado bom dessa história é que algumas redes supermercadistas e indústrias alimentícias mais engajadas nas práticas de ESG (sigla que traduzida do inglês se refere as questões ambientais, sociais e de governança) têm ajudado o setor a avançar nessas conquistas.
A pesquisa realizada pela Boston Consulting Group (BCG), antes da pandemia, mostra que as empresas que adotam essas práticas de contratação mais igualitária registraram maior lucratividade e melhoraram o seu valor de mercado. Muitas delas têm como meta destinar 50% dos cargos de gestão às mulheres.
É o caso do Grupo Pão de Açúcar, que hoje já está acima das estatísticas, com 38% de mulheres nas lideranças, mas a meta da companhia é galgar ano a ano rumo à equidade. Em 2020 esse número era 36% e em 2025 será 40%.
Confira algumas histórias de mulheres que conseguiram conquistar esse espaço, no varejo e indústria, algumas com mais ou menos dificuldades – ou talvez alguns desse desafios tenham passado despercebidos, escondidos na estrutura na qual a sociedade foi construída, tijolos que estão sendo recolocados pouco a pouco em um avanço contínuo. São trajetórias que inspiram e incentivam outras profissionais a lembrarem que podem ser o que quiserem.
As metas e propósitos falam mais alto
Dos 37 anos dedicados ao varejo, nos últimos quatro Van Fernandes passou a liderar o Grupo Vanguarda, rede do Piauí que nasceu da cisão com o Grupo Carvalho e segue os moldes da governança corporativa produtiva.
“Iniciei as atividades junto com o meu marido, na época, em um pequeno armazém, vendendo somente no atacado. Aquilo era para ser apenas mais um negócio voltado para a sobrevivência do lar, mas com muito trabalho fomos crescendo e abrimos outras portas. Em menos de dez anos já estávamos no varejo concorrendo com as grandes redes nacionais, nos tornando líderes na região, classificados como o maior da capital”, relembra a presidente do Grupo Vanguarda.
O fato de ser uma mulher à frente dos negócios é algo que Van costuma não levar em consideração no dia a dia porque acredita que os grandes desafios costumam aparecer para todos, independente do gênero. Mas nem por isso a executiva foi poupada dos preconceitos.
“Não vou mentir, ouvi de muitas pessoas algumas palavras que pareciam ser ditas para me tirar do chão, inclusive do meu ex-marido (ex-sócio), que falava coisas terríveis para mim. Procurei ignorar tudo porque eu já esperava por isso. Ou seja, me preparei para tudo de ruim que podia acontecer porque acredito que quando você tem um propósito precisa se preparar para dar a vida por ele”, analisa.
As experiências que a presidente do Grupo Vanguarda passou, após todas essas fases da sua trajetória, lhe renderam algumas conquistas como a admiração, respeito e sucesso que sonhava. Por isso, ela costuma dizer que por mais difícil que seja uma situação, mais energia e dedicação será preciso destinar para que isso seja concluído.
“Os desafios são inerentes no mundo dos negócios, principalmente no varejo de alimentos. E ter a consciência que na vida cada um de nós carrega a sua missão, nos dá motivo para buscarmos o melhor caminho”, defende.
A mais jovem empreendedora do setor na Bahia
Aos 7 anos de idade Daniela Lacerda montou uma barraca de doces e brinquedos em frente à sua casa. Aos 19 passou a vender semijoias e roupas, e aos 22 anos tornou-se a CEO do Grupo Corujão, ao lado seu marido e sócio, há 8 anos.
Apesar da sua trajetória de sucesso dentro da rede de supermercados da Bahia, composta por 10 lojas e mais de 640 colaboradores, a “mais jovem empreendedora do setor”, como passou a se definir, explica que sofreu muito preconceito.
“No varejo alimentar ainda predomina a hereditariedade. A indústria quer saber de quem você é filha ou esposa, por isso encontrei muita dificuldade por ser uma jovem, começando do zero, sem ter nenhum parentesco”, relembra ao contar que quando realizava as compras para o armazém costumava ouvir dos fornecedores: “cadê o seu marido”?
Hoje Daniela conquistou o seu espaço, mas ainda enxerga gargalos nas contratações do setor. É como se as mulheres tivessem que realizar apenas os trabalhos mais leves ou delicados, quando na verdade são capazes de desempenhar qualquer tipo de função.
Uma prova disso é o que vem ocorrendo no Corujão, onde o púbico feminino já ocupa 54% do quadro de colaboradores, “não por causa do gênero, mas pelo talento”, defende.
Além disso, ela acredita que a cultura machista é propagada pelas próprias mulheres. “Certa vez contratei uma funcionária muito bonita e tive que ouvir o seguinte comentário: ‘eu não teria a coragem de contratá-la. E se ela seduzir o seu marido?’. A única coisa que consegui responder é que o talento independe da aparência e que a responsabilidade profissional de cada um está acima de qualquer gênero”.
Para a CEO é como se o machismo estrutural ainda se sobressaísse, apesar de todo o crescimento e disrupção da cadeia do varejo ou da maior percepção do shopper do supermercado ao reconhecer que é preciso haver mais mulheres nos cargos de liderança.
Lição de casa para o varejo alimentar
Para Evelyn Gonzalez, diretora de marketing da Puratos – empresa global que atua nos setores de panificação, confeitaria e chocolates -, na América Central, Sul e Caribe, os principais desafios que as mulheres enfrentam se deve a resistência, por parte de alguns, em não aceitarem a quebra de paradigmas.
É como se para essas pessoas fosse mais fácil se manter na zona de conforto, trabalhando, dando feedbacks ou seguindo o ritmo de sempre, sem espaço para novas possibilidades. “Muitas ainda são resistentes às mudanças, prazos, mas as posições de liderança que ocupei me ensinaram a lidar com o desconhecido e ter uma visão clara e inspiradora, com um plano detalhado, seguido da companhia das pessoas certas. Tudo isso me ajudou a crescer e a ser ouvida”, afirma.
Atualmente na Puratos a maioria dos cargos gerenciais, incluindo o comitê executivo da empresa, são ocupados por mulheres. Isso representa o dobro do quadro que havia em 2016. E o segredo, de acordo com a executiva, envolve três lições básicas que o varejo precisa considerar:
– Construir uma mudança de cultura que priorize a inclusão.
– As regras de contratação precisam criar oportunidades mais claras e abertas, realizando recrutamentos que considerem a perspectiva de gênero.
– Promover equipes de trabalho igualitárias.
“No meu caso precisei ter persistência, foco, disciplina, empatia e resiliência para enfrentar essas barreiras. Com respeito e ações qualquer pessoa consegue deixar a sua marca e mostrar como quer ser tratada”, defende.
Segredos de uma liderança feminina de sucesso
Liderar uma equipe também requer autoconhecimento, inteligência emocional e estar pronta para ouvir. Foi com essas ferramentas que Flávia Passos passou de engenheira de alimentos à gerente de negócios da Vitalin, empresa que atua no mercado nacional de alimentos sem glúten.
“Os desafios são diários, mas busco ouvir meus instintos, atrelados ao conhecimento e as intenções positivas. Ao invés de aceitar o ‘não sei’, tenho vontade, interesse e busco meios para que o desconhecido se torne um aprendizado”, revela.
Apesar de liderar uma equipe composta por homens e mulheres de todas as idades, Flávia acredita que sempre foi ouvida e respeitada porque procura retribuir da mesma forma para que as metas sejam atingidas e sejam capazes de garantir o desenvolvimento estruturado do negócio.
Além disso, ela acrescenta que a sociedade está mudando, ao ponto de haver mais respeito e confiança em mulheres na liderança. Porém, isso não anula as barreiras que ainda é preciso ultrapassar.
“É preciso saber lidar com os diferentes perfis comportamentais e percepções sobre você, conduzindo as pessoas de acordo com as suas necessidades, sem que isso impacte no seu eu e no seu lado profissional. Trata-se de um desafio diário, mas possível”, defende.
À frente de seu tempo trazendo inovações para o varejo
Fernanda Dalben começou a atuar muito cedo no varejo alimentar. Desde criança esteve inserida no negócio da família e já aos 14 anos passou a ter responsabilidades dentro da rede Dalben Supermercados.
Foram quatro anos atuando no recebimento de mercadorias e mais quatro no departamento de Recursos Humanos, esse último período em paralelo à formação em Administração com ênfase em Marketing.
Além do desafio de ser mulher em um setor majoritariamente masculino, Fernanda enfrentava preconceitos por ser jovem e herdeira, os quais tratou de rebater. “Sempre tive na cabeça que não queria sentar em uma cadeira porque sou filha do dono. Queria provar que tinha capacidade e não parecer que eram privilégios”, compartilha.
Aliás, a zona de conforto não foi um lugar concedido a ela, que teve que se dedicar muito para abrir seu espaço dentro da empresa e do mercado. Filha do meio de três mulheres, sempre teve incentivo de seu pai para participar do negócio, mas encontrou resistência ao propor a criação de um departamento de marketing que a rede ainda não tinha, apenas agência terceirizada.
Foi preciso mergulhar na área por alguns meses para apresentar uma proposta mais detalhada e ganhar o voto de confiança, mas sem nenhuma verba no setor em que atuou sozinha no início, sem qualquer ajuda ou verba.
Entretanto, foram nas adversidades que seus talentos se desenvolveram mais. “Na escassez que eu criei a habilidade de negociar, especialmente com a indústria, em uma época em que nem se falava em trade, ainda mais em empresas de pequeno e médio porte”, lembra a profissional.
A área de marketing e trade, criada há 13 anos, foi aos poucos mostrando resultados nos números e feedbacks positivos dos clientes, assim como ganhando mais estrutura. Hoje são seis pessoas na equipe, além das agências contratadas.
Com apenas 34 anos, Fernanda acumula 20 anos de experiência no varejo e oferece palestras e workshops para compartilhar seus conhecimentos através da SMKT – Soluções de Marketing para Varejo, empresa que fundou há três anos. A empresária também atua como vice-presidente de comunicação do Instituto Mulheres do Varejo.
Nascido, em outubro de 2018, da indignação com uma profissional que sofria violência no lar, o instituto hoje busca trazer apoio e acolhimento para mulheres que enfrentam barreiras como assédios moral e sexual, diferença salarial, preconceito e rejeição com a maternidade, entre outros. O grupo está criando um canal para receber denúncias e oferecer suporte legal e psicológico.
Fonte: S.A. Varejo