O ano era 1999. Após concluir um MBA na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, o argentino Marcos Galperin retornou a Buenos Aires. Na bagagem, um plano ambicioso: fundar o “eBay da América Latina”, em uma alusão ao site americano, um dos precursores do comércio eletrônico mundial. Alguns meses depois, nascia em solo portenho o Mercado Livre que, logo na sequência, desembarcou no Brasil. Enquanto em países mais maduros os carrinhos de compra virtuais já atraíam volumes consideráveis de produtos e consumidores do varejo offline, por aqui, a vertente ainda era praticamente inexplorada. Pioneira, a companhia sobreviveu à bolha da internet, no início dos anos 2000, e se consolidou como o principal nome do e-commerce latino-americano, com operações em 18 países, capital aberto na Nasdaq e um faturamento de US$ 1,39 bilhão em 2017, alta de 65,6% sobre 2016. Acostumada a superar barreiras, a empresa tem agora o desafio de se manter no topo. De um lado, defender suas fronteiras da ameaça crescente das gigantes globais Amazon e Alibaba. Ao mesmo tempo, B2W, Magazine Luiza e outras brasileiras começam a ganhar terreno no segmento que fez a fama e a fortuna do Mercado Livre: os marketplaces, como são conhecidos os “shopping virtuais” que reúnem ofertas de diversos varejistas em uma única plataforma.
Responsável por cerca de 60% da receita do grupo, o Brasil é o palco das principais iniciativas da companhia para reagir à concorrência. A ideia é encorpar sua plataforma com uma ampla gama de serviços, reforçar a presença em todo o ciclo de venda dos produtos e atrair mais varejistas e consumidores. Para isso, a empresa traçou um plano de investimentos de R$ 2 bilhões na operação local. O montante vem sendo aplicado no decorrer de 2018 e representa o dobro dos recursos injetados por aqui no ano passado. “O e-commerce é um jogo que requer muito investimento”, afirma Cristina Farjallat, diretora de marketplace do Mercado Livre. “Essa é uma lição que aprendemos nesses 20 anos e que temos reforçado para nos mantermos na liderança.” Leandro Bassoi, diretor da divisão de logística Mercado Envios, acrescenta: “O cenário atual nos força a executar com maior excelência e mais rapidez do que os outros.”
Nessa direção, o movimento mais recente do Mercado Livre veio à tona na semana passada. A empresa anunciou a ampliação de sua malha logística, com um novo centro de distribuição que será instalado em uma área de 111 mil m2, em Cajamar (SP), no primeiro trimestre de 2019. O projeto inclui ainda quatro hubs intermediários. As novas estruturas serão somadas ao centro já em operação em Louveira, no interior do Estado. Essa unidade, por sua vez, passou por uma expansão recente, de 17 mil m2 para 51 m2, e será alvo de uma nova ampliação até o fim desse ano, o que triplicará a sua capacidade. Com essas iniciativas, a projeção é de que o número de funcionários diretos e indiretos salte dos atuais 1,3 mil profissionais para 3,5 mil vagas no decorrer do ano que vem. Por trás dessas medidas, está a corrida do Mercado Livre ao encontro de um modelo disseminado pela Amazon e que está em crescimento no setor. A partir de estruturas próprias de logística, os marketplaces oferecem aos lojistas parceiros serviços que vão desde a coleta, o armazenamento, a separação e o empacotamento até a entrega final dos produtos. Os benefícios são amplos. As companhias que até pouco tempo mantinham esses ativos extremamente caros para atender apenas as suas próprias operações conseguem diluir custos. O formato também assegura a manutenção de um padrão de qualidade. E, ao centralizar esses processos, favorece a redução nos prazos para que as mercadorias cheguem até as mãos dos consumidores. “Nossa meta é entregar, em até dois dias, boa parte das nossas vendas no Brasil”, diz Bassoi.
Uma das grandes dores de cabeça do comércio eletrônico, a última milha, como é chamado o trecho final para que uma encomenda chegue até o consumidor, é mais uma ponta dos investimentos do Mercado Livre. No início de 2019, a empresa lança um aplicativo que irá oferecer aos varejistas a alternativa de entregas por meio de parceiros especializados em diversos modais, incluindo a pé, bicicletas e motos. O serviço estará disponível em São Paulo e região metropolitana. E será estendido, gradativamente, a outras capitais. A companhia também prepara a expansão de outra iniciativa: a possibilidade de os consumidores retirarem os produtos adquiridos online em lojas físicas de parceiros. Lançada no terceiro trimestre de 2018, a estratégia inclui pontos de venda de doze varejistas, entre eles, Saraiva e Livrarias Curitiba. “Esse modelo reduz os custos na última milha, que podem representar até 40% de todo o custo logístico no e-commerce”, afirma Mauro Schluter, professor de logística do Mackenzie. Cristina ressalta outros benefícios. “O consumidor ganha mais conveniência e o varejista a chance de oferecer outros produtos”, diz a executiva. A aposta é mais um esforço para combater o avanço da concorrência. Outros rivais, como a Via Varejo e a Magazine Luiza, já investem nessa frente há mais tempo, a partir de suas próprias redes no varejo físico.
Os investimentos em logística e na velocidade das entregas também não estão restritos à companhia. A Amazon ampliou, recentemente, seu centro de distribuição em Barueri (SP), de 12 mil m2 para 48 mil m2. A expansão acompanha o aumento de suas ofertas no Brasil. Só em 2018, a gigante americana adicionou categorias como moda e esportes; e móveis e eletrodomésticos de linha branca às suas “prateleiras virtuais” no país. Dona de bandeiras como Americanas.com e Submarino, a B2W é outra concorrente com uma série de iniciativas em curso. Em março, o grupo criou a Let’s, braço de gestão compartilhada dos ativos de distribuição e logística de suas operações online e da Lojas Americanas. Hoje, essa estrutura inclui 11 centros, com uma capacidade de 500 mil m2.
Da mesma forma, a empresa vem reforçando o pacote de alternativas à disposição dos clientes, com opções de entrega de produtos no mesmo dia, no dia seguinte à compra e retirada em loja. Um dos destaques é o projeto Last Mile, realizado em parceria com o Massachussets Institute of Technology (MIT). O programa desenvolveu uma plataforma para simular, analisar e racionalizar a estrutura logística disponível, incluindo os meios de transporte mais adequados, de acordo com os volumes e tipos de encomendas. A argentina OLX, que centraliza os esforços na venda de produtos usados, também integra a lista das empresas que disputam uma fatia desse mercado. Em fevereiro, a companhia anunciou investimento de R$ 200 milhões em tecnologia só para esse ano, um salto de 21% sobre 2017. “Estamos investindo em inteligência artificial e ciência de dados para entender as necessidades dos usuários”, diz o CEO Andries Oudshoorn. O plano é dar um salto ainda maior em 2019, mas não detalhou quanto deve desembolsar.
Se as estratégias do Mercado Livre guardam pontos em comum com a de seus rivais, uma frente da empresa destoa da concorrência: a oferta de frete grátis. Para atrair mais compradores, o grupo passou a reforçar esse modelo há cerca de um ano. “Nós estamos eliminando uma das principais barreiras para que as pessoas comprem no comércio eletrônico”, diz Cristina. O resultado da medida pode ser atestado na base de usuários da plataforma. De janeiro a setembro, a companhia alcançou 36,7 milhões de novos clientes, contra os 27 milhões adicionados em igual período, um ano antes. Esse crescimento veio acompanhado, no entanto, de um prejuízo líquido de US$ 34 milhões no mesmo intervalo, algo incomum para uma operação que, na contramão de boa parte do setor, sempre registrou lucros anuais. “Tomamos uma decisão consciente quando iniciamos esse programa. E essa estratégia de acelerar o crescimento da operação tem se mostrado acertada”, afirma. A busca por ampliar a recorrência das compras realizadas pelos consumidores é outra frente que ganhou corpo nos últimos doze meses, com o lançamento do Mercado Pontos, programa de fidelidade que oferece benefícios como descontos exclusivos.
O pacote de conveniências disponíveis no marketplace inclui ainda segmentos como publicidade e ferramentas para a criação de lojas online. Um dos grandes destaques é o Mercado Pago, fintech que oferece soluções de pagamentos digitais e móveis para varejistas, além de conceder empréstimos para o capital de giro de lojistas. A operação também está no mundo offline, com máquinas de cartão. No terceiro trimestre, a divisão superou cem milhões de transações e movimentou US$ 4,6 bilhões, um crescimento de 24,1% sobre o mesmo período, em 2017. A vertente começa a ganhar escala entre outros rivais. Em setembro, a Via Varejo anunciou uma parceria com a GetNet para desenvolver um portal de produtos financeiros para os seus parceiros. A B2W também possui soluções de empréstimos para lojistas e lançou, em junho, uma conta digital que oferece aos clientes vantagens como parcelamento diferenciado. O aplicativo já tem 800 mil contas cadastradas e, em outubro, passou a ser aceito como meio de pagamento em seis pontos de venda das Lojas Americanas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Para 2019, o plano é estender o benefício para todas as unidades da rede e também para outros lojistas.
Todos esses esforços têm como ponto central o crescimento do comércio eletrônico no Brasil. Mesmo com uma pequena desaceleração diante da crise do país nos últimos anos, o setor segue reportando índices invejáveis. Em 2017, o e-commerce movimentou R$ 47,7 bilhões, alta de 7,5% sobre 2016, segundo a consultoria Ebit/Nielsen. Para esse ano, a projeção é crescer 12%. As perspectivas são ainda mais positivas quando se constata que o segmento representa apenas 5% das vendas totais do varejo. Para as fontes ouvidas pela DINHEIRO, o Mercado Livre está bem posicionado para capturar uma boa parcela desse mercado em potencial. O fato de a companhia estar presente em outros 17 países e de oferecer em seu marketplace produtos que dificilmente são encontrados em outras plataformas são alguns dos pontos fortes destacados. Os especialistas ressaltam, porém, alguns desafios. “O frete grátis é válido para oportunidades pontuais, mas não pode ser uma regra do negócio”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da AGR, consultoria de varejo. Ela acrescenta: “A empresa precisa se comunicar melhor com seus clientes. Muitos deles não conhecem todas as opções que ela oferece.”
A ausência de uma estratégia que passe pelo investimento em pontos de venda físicos é outra questão para o Mercado Livre. Depois de revolucionar o varejo com suas estratégias digitais, a Amazon e o Alibaba, por exemplo, vêm apostando nessa frente nos últimos anos. “Há uma tendência mundial de se pensar a loja física, seja como um canal de experiência e de contato com o consumidor ou mesmo como uma solução para as restrições logísticas”, diz Flávio Souto Boan, especialista em varejo e diretor-executivo da consultoria Falconi. Para Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, há outro componente crucial. “O Mercado Livre está no caminho certo, mas ainda precisa provar sua competência em logística, que é um elemento ainda novo para eles e essencial nessa equação”, afirma. Ele observa que há dois roteiros distintos, mas totalmente factíveis para a companhia no médio e longo prazos. Um deles é uma eventual incorporação por nomes como Amazon e Alibaba, consolidando a entrada definitiva dessas empresas na região. “A outra opção é liderar uma grande iniciativa de e-commerce a partir da América Latina, para brigar com esses gigantes.” A conferir.
Fonte: IstoÉ Dinheiro