Por mais que o e-commerce venha crescendo a largos passos no Brasil, as vendas no mundo físico ainda respondem pela maior parte do varejo do País. Por isso, o Mercado Livre está investindo em logística para entrar de vez nessa briga e conseguir oferecer aos seus clientes produtos que são consumidos todos os dias – e não apenas esporadicamente, como celulares e tablets. A ideia de Stelleo Tolda, cofundador da companhia, é entregar itens em poucas horas ou até em minutos, o que possibilitaria, inclusive, receber em casa produtos perecíveis. Na entrevista a seguir, o executivo conta os planos da empresa, como encara a concorrência com a Amazon e até como vê o uso de drones no transporte de mercadorias. Confira:
NOVAREJO: Qual foi o objetivo da captação de US$ 800 milhões, em agosto?
STELLEO TOLDA: Fizemos captação de US$ 800 milhões e, no dia 31 de agosto, nós anunciamos que íamos exercer a opção de mais US$ 120 milhões. Os recursos estão sendo usados para recomprar os bonds que estão no mercado com vencimento de 2019 e os adicionais vão ser usados para projetos de logística, que tem sido o foco da companhia, permitindo que o produto chegue cada vez mais rápido ao consumidor final principalmente no Brasil, mas não apenas. Vamos alocar os recursos de acordo com as necessidades. Para se ter uma ideia, metade dos produtos no Brasil são entregues em até 48 horas. No México, esse cenário é de 80%. Então, aqui no Brasil estamos atrás. Por que no México estamos na frente? Pois lá somos atendidos por empresas que têm investido [em logística] e aqui ainda não temos esse tipo de serviço. A gente trabalha muito ainda com os Correios, que cresceram muito conosco mas têm suas limitações. Por isso, parte dos investimentos vai ser direcionada para a nossa malha, que conta com alguns centros de distribuição que hoje estão concentrados em São Paulo. Mas, no futuro, pensamos em expandir para outras regiões do País.
Existe mais alguma frente em que pretendem aportar os recursos?
Sim, o segundo objetivo é a área de pagamentos digitais. O Mercado Pago, que nasceu dentro do Mercado Livre, hoje já tem uma vida própria fora do marketplace.
Poderia detalhar melhor como isso está operando?
No aplicativo do Mercado Livre, você pode acessar a sua carteira digital e usar o dinheiro que você acumulou, caso tenha vendido algo no Mercado Livre. Mas não só. É possível alimentar a carteira com cartão de crédito e com boleto bancário e, com isso, pagar por produtos e serviços com código QR, recarregar celular pré-pago, pagar contas de concessionárias (luz e gás), recarregar vale-transporte e até comprar créditos on-line para usar em games, por exemplo. Isso é a inclusão financeira: incluir pessoas que não trabalham com conta bancária e trabalham com dinheiro em espécie em um sistema de mais segurança. O pagamento é instantâneo, o dinheiro sai da conta e reflete na conta de quem recebe. Isso é poderoso porque a gente está criando uma rede em torno disso. É quase um segundo marketplace: temos agora o marketplace transacional, que é o Mercado Livre com compradores e vendedores, e o marketplace que transcende o mundo físico.
Então vocês estão atentos a esse momento de transformação dos meios de pagamento
As maquininhas de POS estão com os dias contados, mesmo os cartões estão virtualizados, tokenizados, o que permite pagar por meio de um cartão virtual. Essa rede de maquininhas também aceita código QR. Então, para cada um dos nossos lojistas ou vendedores que tem maquininhas, a gente disponibiliza o código QR. No futuro, não será mais necessário que ele receba por meio da maquininha, pode ser apenas diretamente pelo código QR.
E qual tem sido o crescimento do Mercado Pago dentro desse cenário?
Está crescendo a três dígitos. Por ora, vai conviver com as duas tecnologias. A nossa visão é sempre voltada para a tecnologia, de modo a usar a forma mais eficiente dos produtos. Às vezes, é necessário investir em maquinário e em centros de distribuição. Mas trabalhamos também com operadores logísticos que conhecem esse mercado e estamos participando de uma rede que inclui transportadoras, Correios e empresas privadas, que vão ficar cada vez mais descentralizadas, especialmente no que se refere a ambientes urbanos. Mas o elemento que conecta tudo isso é tecnologia. Sempre estamos contratando desenvolvedores, pois é um recurso escasso que parece nunca acompanhar a quantidade de ideias e de iniciativas que a gente tem.
O Mercado Pago é o vetor de crescimento de vocês ou é o ecossistema como um todo?
É o ecossistema como um todo. O Mercado Pago é um marketplace de pagamentos que pode vir a ser uma fonte de receita para a gente. Já a questão logística é uma ferramenta: pode ser que no futuro a gente ofereça serviços para terceiros. Não é nosso foco ainda, mas pode ser fonte de receita no futuro.
Sobre as entregas, o que quer dizer com descentralização?
A nossa visão é que não existe uma única solução para logística e disponibilizamos para os vendedores e compradores diferentes opções. Não vai ser uma única solução que vai resolver tudo. Nós temos – literalmente – milhões de vendedores que, às vezes, vendem algo em um mês e só voltam a vender muito tempo depois e temos grandes varejistas como a Saraiva. Então, uma solução única não resolve o problema desses dois tipos de vendedores. Para os vendedores individuais, há o drop ship, em que o vendedor leva o produto até um determinado local e passa a fazer parte do sistema logístico. Em geral, esse local são os Correios, que estão espalhados pelo Brasil inteiro. Mas não apenas: podemos usar outras empresas e serviços. É o caso de lockers. Pode ser um local para disponibilizar o produto como vendedor e retirar como comprador. Isso é algo que estudamos, sim. Nos locais onde a gente já entrega fisicamente, podem também ser locais que vão receber.
A parceria com a Saraiva tem a ver com essa visão [agora, as pessoas podem comprar itens da livraria pelo Mercado Livre e retirar os produtos em uma das suas lojas]?
O que fizemos com a Saraiva já fazíamos com vários outros varejistas menores. É que a gente está dando mais visibilidade no Brasil para o caso da Saraiva. Eles disponibilizam o local físico, mas – mais importante – eles ofertam o acervo deles de forma digital para que a gente possa vender. Então, funciona da seguinte forma: você quer comprar um celular. Então, entra no site do Mercado Livre, dentro da área da Saraiva, e consegue visualizar o quanto tem em estoque da loja. Não quero que ele perca a viagem: chegue ao local e não tenha mais. Preciso que tenha essa conexão dos sistemas. Isso é algo que já está acontecendo. Nós temos um exemplo na Argentina de uma empresa varejista chamada Fravega [que seria o equivalente a Casas Bahia] que vende pelo Mercado Livre e 60% do que ela vende ela entrega na loja. No caso da Argentina, a gente tem uma concentração geográfica na região de Buenos Aires, o que facilita esse tipo de negócio. Além disso, temos feito o que chamamos de fullfill – a gente armazena produtos que não são nossos, sempre dos vendedores. Conforme a gente recebe a ordem de compra, a gente faz o trabalho de manuseio, coloca na caixa e disponibiliza para a transportadora entregar. Isso é uma coisa que nasceu no ano passado e cresceu muito. Estamos muito contentes, pois gera um nível de fidelização com nosso vendedor muito grande. Também fazemos coletas. Funciona assim: se um vendedor que não quer colocar os produtos no nosso centro de distribuição, mas vende um volume grande, podemos mandar um caminhão ou uma van diariamente para fazer retiradas. Aí levamos os pacotes a um dos nossos centros de triagem e depois distribuímos para o consumidor final.
Como vê a concorrência com a Amazon que recentemente anunciou que vai vender roupas e artigos esportivos no Brasil?
Temos concorrência há 19 anos, desde que nasceu. A Amazon é uma das empresas líderes, fica atrás do Alibaba, e a gente acompanha os movimentos que todos os concorrentes fazem. Aqui no Brasil estão há bastante tempo – tanto uma como a outra- , mas de forma bastante tímida. O que para nós é ótimo. O comércio eletrônico está crescendo muito, mas de forma ainda embrionária, eu diria. Tem apenas 5% de penetração e um potencial enorme de crescimento. Os desafios de operar no Brasil são os de infraestrutura, pagamento, relacionamento com vendedores, fabricantes e provedores. Estamos caminhando para oferecer itens do dia a dia das pessoas, não queremos que comprem apenas um celular uma vez por ano. Queremos que as pessoas comprem toda semana, todos os dias. Não podemos prever os planos da concorrência, enquanto isso estamos com os nossos e estamos crescendo bastante.
Como vê o uso de tecnologias, como drones, para realizar entregas?
Hoje, efetivamente, ninguém está entregando com drones em escala. Esses anúncios servem mais como ferramenta de marketing do que qualquer outra coisa. A única empresa que sei que entrega – com mais volume, mesmo que ainda limitado – é a JD.com, que é chinesa, número 2 na China. Lá, os drones fazem uma rota pequena, pois eles não têm autonomia muito grande. Levam itens do centro de distribuição na periferia para locais com difícil acesso. O resto é só marketing. O grande desafio é nos locais mais densos e hoje a legislação ainda não permite pilotar um drone comercialmente. Você não vê drones em Londres, Nova York, Tóquio, Xangai. Acho que ainda demora para vermos drones em escala comercial.
O que falta para as pessoas comprarem mais pela internet? Existe uma cultura no País de comprar em lojas físicas?
Não acho que o Brasil seja muito diferente de outros países, acho que a cultura foi se desenvolvendo ao longo do tempo. Estamos aí há 19 anos e tivemos que enfrentar vários desafios como conexão dial-up, penetração de internet de apenas 3% da população… então, essas barreiras não são novas. Mas enfrentávamos também um desafio de as pessoas não entenderem o que era o comércio eletrônico. Adiante o relógio quase duas décadas e hoje temos uma geração de nativos digitais, que nasceram com internet e não fazem a pergunta se a vida delas está exposta na internet ou se devem comprar pela internet. Compram pelo celular. Hoje, 55% do volume de compras vêm do celular. Há seis anos era zero. Isso dá a dimensão de como o hábito muda e pode mudar rapidamente. Não acho que a questão está no consumidor em não querer comprar. Tem a ver com as experiências que oferecemos para o consumidor. Por isso temos de oferecer a melhor experiência. Eu disse que metade das nossas entregas no Brasil acontecem em até 48 horas. Mas, quando se trata de compras de supermercado, 48 horas é muito tempo. Não é uma questão de dias, como consumidor, quero os produtos em questão de horas ou até de minutos. É por aí que o comércio eletrônico vai conquistar uma penetração maior no Brasil.
É diferente comprar um celular e fazer a lista de supermercados, por exemplo. A lista de compras exige que você tenha efetivamente uma tecnologia que permita que você tire coisas do carrinho e mantenha o carrinho aberto. Também temos que resolver a questão logística. É só tudo isso (risos). Resolvendo tudo isso, veremos o comércio eletrônico crescer.
Como fica a questão da tributação?
A tecnologia ajuda a resolver os problemas. Quando o produto sai, precisa ter uma nota fiscal e, se for devolvido, precisa de outra nota. É um desafio, é complexo, pois trabalhamos com vários vendedores em um mesmo centro de distribuição. Quando a gente expede um produto, a gente expede com o nome do vendedor e não do Mercado Livre. Esse sistema demorou a ser desenvolvido, pois requer a chave de faturamento individual de cada um dos vendedores.
A compra é uma só. Então, quem arca com isso?
Atualmente, a gente arca com esse custo. Estamos incentivando a compra por meio do frete grátis. Mas, na verdade, não existe frete grátis: alguém paga: comprador, vendedor ou o Mercado Livre. Tirando o consumidor, o frete é pago pelo vendedor, Mercado Livre ou usualmente pelos dois.
Fonte: Novarejo