Num momento em que as maiores empresas de comércio eletrônico têm repetido o discurso a favor da racionalidade e do fim da disputa fratricida por vendas, o Mercado Livre, o maior “marketplace” do país (shopping virtual), decidiu subsidiar o frete grátis no Brasil. É uma mudança de postura num setor que, por anos, buscou retirar esse benefício do cliente para defender rentabilidade.
A companhia fará investimentos de R$ 1 bilhão neste ano, a serem aplicados em despesas discricionárias (não obrigatórias), como marketing e treinamentos – a empresa não revela o valor investido em 2016. A maior parte do montante deste ano deve ser destinada para a estratégia de frete zero. Segundo a empresa, os recursos sairão do caixa da subsidiária, que registrou vendas líquidas de R$ 1,6 bilhão em 2016, alta de 57%.
Ao ser mais competitivo, a intenção é ampliar escala, diz Stelleo Tolda, vice-presidente de operações do Mercado Livre. O investimento de R$ 1 bilhão equivale a pouco mais de duas vezes o lucro líquido do grupo no mundo no ano passado (e a cerca de 75% do caixa da empresa ao fim de 2016).
A nova estratégia começou a ser implementada em maio, com a liberação de frete grátis nas compras acima de R$ 120. Esse limite pode baixar para R$ 80 se o consumidor fizer parte de um novo programa de fidelidade, que permite que pontos somados possam se traduzir em benefícios. Até então, o frete grátis não tinha patamar definido, dependia da decisão de cada vendedor.
Ao “amarrar” o benefício ao programa de fidelidade, a empresa tenta estabelecer alguma contrapartida do consumidor. “Ele tem que fazer com que esse cliente que usa o frete grátis compre sempre. Para gerar a escala que precisa. Isso porque a empresa sabe que, a princípio, terá obviamente vendas maiores, mas com o passar do tempo, isso vai se estabilizar em níveis mais baixos”, diz Roberto Wajnsztok, co-fundador da consultoria Origin5. Como a companhia usa transportadoras terceirizadas, ela deve subsidiar o custo do transporte.
A mudança envolve uma operação percebida como referência no setor. O Mercado Livre passou a ter um tipo de modelo celebrado, discretamente, pelos maiores rivais do negócio. Nos bastidores, grupos como Magazine Luiza e B2W (Americanas.com e Submarino) veem nele um formato mais redondo de marketplace, com aspectos que podem ser copiados, como o oferecimento de uma cesta de serviços aos lojistas que vendem suas mercadorias pelo portal.
No marketplace, o site faz a intermediação da venda entre um lojista e o cliente, e cobra uma comissão por isso. Ainda oferece serviços (como veiculação de propaganda e desconto de recebíveis) para o vendedor hospedado em suas páginas.
O aspecto central é que o Mercado Livre vai na contramão da recorrente pregação das líderes do setor. “Para essas outras empresas, isso [frete grátis] é algo impensável, para nós não”, defende Tolda.
“Nós não somos varejistas, não temos problema de falta de rentabilidade. Temos escala e uma série de serviços que conseguem compensar e absorver um efeito na margem”, diz. “Isso não quer dizer que estamos fazendo algo irracional ou insustentável. É algo feito dentro de um planejamento, já considerando que poderemos ter a margem afetada, mas eu tenho maior capacidade de ir acomodando essa situação”, acrescenta. O Brasil responde por 54% das vendas do grupo, seguido por Argentina (31%) e México (5%).
Questionado sobre o efeito desse subsídio ao frete nos resultados, Tolda diz que pode se “resignar” com uma perda de um ponto de margem, mas que a operação terá que absorver isso, de maneira que não gere prejuízo para a subsidiária – que, diz ele, opera no lucro. O grupo não informa valores. Além da soma de R$ 1 bilhão, ainda há valor de capex da empresa no ano, que tem girado em torno de R$ 100 milhões.
Para o consultor Roberto Wajnsztok, ao retomar o frete grátis, algo que o mercado foi reduzindo nos últimos anos, a empresa deve enfrentar um dilema futuro. “Em algum momento, ela terá que começar a reduzir isso, o que é sempre muito difícil, especialmente depois que o cliente acostuma”. Segundo a empresa, não há prazo de validade para a ação.
Pelo que o Mercado Livre diz, há outra tática por trás da iniciativa: para se ganhar mais dinheiro, o comércio eletrônico no país precisa crescer mais rápido – 96% das vendas no Brasil ainda ocorrem em lojas físicas e só 4% por sites. “O meu maior concorrente hoje é o varejo tradicional. Precisamos trazer novos consumidores para a base”, afirma Tolda.
Dos 182 milhões de usuários do Mercado Livre na América Latina, cerca de 40 milhões são ativos (fazem ao menos uma operação por ano, como compradores ou vendedores).
Fonte: Valor Econômico