Exclusivo a candidatos negros, trainee do Magazine Luiza atrai elogios, ódio e reflexão
Por Ernesto Londoño
Foi uma conversa casual que levou Luiza Trajano, uma das mulheres mais ricas do Brasil, a meditar sobre o racismo em seu país, a reconhecer sua parte nele e fazer algo a respeito.
Trajano contou que alguns anos atrás ouviu uma mulher de negócios preta, jovem e realizada, dizer que nunca ia a happy hours com os colegas a menos que seu chefe a convidasse explicitamente. Anos de sentimento de rejeição que muitos brasileiros pretos vivenciam em ambientes predominantemente brancos haviam lhe ensinado a esperar por convites expressos, explicou a mulher.
Trajano, que é branca, sentiu um golpe de tristeza. Então um pensamento incômodo atravessou sua mente: “Nas minhas festas de aniversário não há mulheres pretas”, ela se lembra de ter pensado. “Isso é racismo estrutural, que, no meu caso, não é causado por rejeição, mas por não as procurar.”
Esse momento de introspecção de Trajano, que havia transformado uma pequena empresa familiar numa gigante do varejo, ajudou a semear uma ousada ação afirmativa corporativa, que atraiu elogios, revolta e muita reflexão no Brasil.
Nos últimos dois anos, a empresa de capital aberto, chamada Magazine Luiza, ou Magalu, limitou seu programa de treinamento de executivos para recém-formados na faculdade —um canal para cargos sênior bem remunerados— aos candidatos pretos.
O anúncio, em setembro de 2020, provocou um dilúvio de cobertura na imprensa e de comentários. Grande parte deles era crítica.
O hashtag #MagaluRacista foi tendência no Twitter durante dias. Um deputado próximo a Jair Bolsonaro, o presidente conservador do Brasil, pediu que o Ministério Público abrisse uma investigação da companhia, afirmando que o programa violava as proteções constitucionais.
Mas o Magazine Luiza disse que era uma medida necessária e atrasada para diversificar suas equipes executivas e para atenuar o brutal legado de racismo no Brasil, onde a escravatura só foi abolida em 1888.
Trajano foi a mais visível e veemente defensora da política de sua companhia.
“Além dos aspectos sociais e econômicos, a escravidão deixou uma marca emocional muito forte, que é uma sociedade de colonizadores e colonizados”, disse Trajano, 70. “Muitas pessoas nunca sentiram que esse país é delas.”
Trajano causou agitação muito além das esferas corporativas, ao falar francamente sobre questões como raça, desigualdade, violência doméstica e as falhas do sistema político. Partidos de todo o espectro político a convidaram para disputar eleições, ao ver nela uma rara mistura de pragmatismo, carisma e inteligência.
“Em um mundo onde os bilionários queimam fortunas em aventuras espaciais e iates, Luiza se dedica a um tipo diferente de odisseia”, escreveu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em setembro passado, na revista Time, que escolheu Trajano como uma das cem pessoas mais influentes do mundo. “Ela assumiu o desafio de criar um gigante comercial enquanto constrói um Brasil melhor.”
Trajano foi a única filha de uma família de Franca, cidade de médio porte no interior de São Paulo, onde uma tia, também chamada Luiza, abriu uma pequena loja de presentes em 1957.
Conforme o negócio se expandiu para um pequeno grupo de lojas, a adolescente Trajano assumiu um cargo de vendedora numa delas. A experiência a fez se apaixonar pelo atendimento ao consumidor e a cultura do local de trabalho.
“Quando eu tinha 17 ou 18 anos, inventei uma pequena revolução para valorizar o investimento nos empregados”, disse ela. “Comecei a levar um psicólogo à loja.”
Desde então, ela contou que ficou fascinada pelos fatores que tornam os funcionários motivados e dedicados —e os que fazem o contrário.
Ela assumiu o leme da empresa em 1991 e supervisionou uma enorme expansão nacional conduzida pelo mantra corporativo “Tornar acessível a muitos o que era privilégio de poucos”.
Enquanto o Magazine Luiza —que vende um pouco de tudo, incluindo eletrodomésticos, eletrônicos, roupas e produtos de beleza— se tornava um gigante, com 1.400 lojas, Trajano disse que se esforçou para construir uma cultura em que os trabalhadores fossem comprometidos com o sucesso da marca.
Quando as vendas no varejo começaram a migrar para a internet, Trajano investiu pesado para criar um marketplace digital e um sistema de distribuição enquanto preparava seu filho, Frederico Trajano, para assumir a gestão diária da companhia em 2016, como executivo-chefe. Ela continua presidente do conselho e sua figura mais visível.
Frederico Trajano, 45, disse que aprendeu com a mãe a assumir riscos e confiar em sua intuição.
“Ela gosta de dizer: ‘Toque na banda, e não apenas a veja passar'”, disse ele. “Isso significa aprender a ser o protagonista de minha própria história.”
Luiza Trajano atribui a seu filho a ideia do programa de treinamento só para pretos, em 2020, mas comentou que isso veio depois de ela apontar durante anos que as classes de estagiários eram majoritariamente brancas. O programa não sofreu processos legais nem ações do governo.
A companhia redobrou a aposta na iniciativa ao divulgar um documentário de 23 minutos sobre o processo de seleção, que mais parece um reality show do que uma promoção corporativa. Ele apresenta os candidatos falando sobre as barreiras que enfrentaram para fazer suas carreiras decolarem e mostra alguns chorando ao saber que foram aceitos no programa.
Raíssa Aryadne de Andrade Lima, 31, uma analista de sustentabilidade do estado de Alagoas que foi admitida na primeira classe para estagiários negros, disse que o cargo a transformou, pessoal e profissionalmente.
“A melhor coisa no programa foi que ele abriu meus olhos para o número de oportunidades que estavam ao meu alcance”, explicou ela.
Trajano disse enfaticamente que não pretende concorrer a cargos públicos. Mas ela se tornou cada vez mais ativa em levar debates políticos a um grupo de mulheres líderes que fundou em 2013, com o objetivo de avançar a paridade de gêneros em todas as esferas de poder. Hoje o grupo tem mais de 101 mil membros.
As líderes do grupo estão preparando planos políticos de longo prazo para abordar problemas crônicos em saúde, educação, habitação e no mercado de trabalho. Elas também defendem a paridade de gêneros na política eleitoral, o que, segundo Trajano, transformaria o sistema disfuncional e polarizado do Brasil.
No início de 2021, quando o governo brasileiro lutava para adquirir vacinas contra a Covid-19 e o presidente Bolsonaro semeava dúvidas sobre sua eficácia, Trajano se tornou uma defensora incansável da vacinação, mobilizando sua rede de mulheres para pressionar o governo a agir rapidamente e eliminar a desinformação sobre as vacinas.
Houve especulações acaloradas nas redes sociais de que Trajano poderia ser um curinga nas eleições presidenciais deste ano, talvez como companheira de chapa de Lula, o preferido nas pesquisas. Ela descartou categoricamente esse papel, mas está claro que Bolsonaro passou a vê-la como uma ameaça a suas perspectivas de reeleição.
Em novembro, ele pareceu apreciar que o preço da ação do Magalu havia caído nos meses anteriores, em meio a especulações de uma parceria política entre Lula e Trajano, a quem Bolsonaro chamou de “socialista”.
Mais tarde naquele dia, quando Trajano foi questionada sobre o comentário do presidente, ela disse que não achava o rótulo ofensivo.
“Acho que a desigualdade social tem de ser enfrentada”, disse. “Se isso é ser socialista, então eu sou socialista.”
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves
Fonte: Folha de S.Paulo