“Quando veio março e eu vi que teria que fechar as portas, pensei, e agora?” Variações dessa frase vêm saindo da boca de um monte de livreiros. Pegas de surpresa pelo coronavírus, livrarias que estavam em ascensão tiveram seus planos interrompidos, lojas que estavam com a corda no pescoço agravaram sua crise e quem soube se adaptar a um mercado digital se deu melhor.
Isso porque a demanda por livros, mesmo sofrendo um baque, não esmoreceu —o que se atesta pela última pesquisa de mercado da Nielsen com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, que mostra um aumento real no volume e no faturamento de livros vendidos de 15 de junho a 12 de julho, em comparação com o mesmo período do ano passado.
Os números parecem indicar que a reabertura das livrarias, permitida em São Paulo desde junho, trouxe alívio ao setor. Mas é preciso cautela. Samuel Seibel, presidente da Livraria da Vila, diz estar tirando cerca de 30% do faturamento normal nas lojas reabertas, e Rui Campos, dono da Travessa, afirma que o movimento gira em torno de um quinto da média.
É um reflexo de leitores ainda temerosos em sair às ruas enquanto a pandemia mata mais de mil brasileiros por dia. “Se houvesse um suporte financeiro suficiente, talvez fosse melhor manter fechado”, diz Seibel. “Mas seria uma atitude quixotesca, porque você vai ser o único.”
O dono da Vila ressalta que o cuidado na reabertura foi muito grande —e, de fato, uma visita à unidade da rua Fradique Coutinho faz o leitor encontrar um funcionário medindo temperatura na porta, livros encapados em plástico para facilitar a limpeza e um cartaz orientando a formar uma fila na porta quando já houver 12 visitantes lá dentro.
Se as compras caíram para um quinto do total no começo da pandemia, uma atividade intensa de entregas e de abordagem por mídias sociais fizeram com que a Simples fechasse julho vendendo 20% a mais do que o mesmo mês do ano passado.
Dono de uma editora e duas lojas que levam seu nome em São Paulo, Alexandre Martins Fontes também conta uma história que, segundo ele, o confirma como feliz exceção à crise. Já em maio, o ecommerce da livraria quadruplicou as vendas. Somado a encomendas por WhatsApp e retiradas na porta, a Martins Fontes viu seu faturamento subir.
Mas, pensando na sobrevivência de lojas com menos estrutura e capital de giro, o livreiro mobilizou o projeto Retomada na Câmara Brasileira do Livro, que quer arrecadar R$ 500 mil até 31 de agosto para distribuir a 50 pequenas livrarias —mais da metade do dinheiro já foi reunida.
Aquelas que puderam se reinventar rápido amorteceram um possível desastre. A Mandarina, que tinha poucos meses de idade em Pinheiros quando a quarentena a obrigou a fechar, se segurou na venda por redes sociais e na oferta de cursos online. As próprias sócias, Daniela Amendola e Roberta Paixão, passaram a pegar o carro para fazer entregas.
“Quando você tem uma estrutura muito grande, a flexibilidade é mais lenta”, afirma Paixão. “É mais difícil uma empresa com 200 lojas conseguir fazer essa virada rápida, como nós fizemos. A gente é um veleiro, eles são um transatlântico.”
Para ficar na metáfora marinha, os dois maiores navios do mercado ainda estão no meio de uma forte tormenta. Tanto a Livraria Cultura quanto a Saraiva, que não quiseram fazer comentários, se veem enredadas em processos de recuperação judicial.
As duas suspenderam o pagamento a editoras no início da pandemia, e a Justiça decidiu que a Saraiva deveria devolver a elas metade do seu estoque. Desde o início da pandemia, a rede fechou 13 das 75 filiais que tinha pelo Brasil —e, no último desdobramento do processo, propôs dividir suas lojas restantes em dois grupos e vender um deles. Um relatório mostrou que, em maio, o faturamento da Saraiva foi 85% menor que no mesmo mês do ano passado.
Presidente da Associação Nacional de Livrarias, Bernardo Gurbanov diz não ter identificado um cenário de quebradeira assolando o setor, como se temia quando a pandemia começou. E celebra a inclusão de pequenas livrarias e editoras na Lei Aldir Blanc, que vai destinar R$ 3 bilhões para o setor cultural.
Gurbanov aponta que a emergência mostrou que as grandes plataformas online “correm com vantagem muito grande”. Ou, nas palavras de Alexandre Martins Fontes, “a Amazon é inquestionavelmente a grande beneficiada desta pandemia”.
“Hoje a Amazon se converteu no principal cliente das editoras, até porque não trabalha com consignação”, diz o presidente da ANL. “E claro que políticas comerciais mais agressivas acabam prejudicando as pequenas, porque a competição não é em condições minimamente equitativas.”
Alexandre Munhoz, gerente-geral de livros na Amazon, afirma que a empresa se esforça “para que o setor livreiro continue pulsando, com incentivos para todas as pontas”.
Ele diz que a plataforma tem “uma obsessão” por ampliar as opções de livros para os clientes, inclusive aqueles só disponíveis em lojas menores, mais especializadas. “Milhares de livrarias e sebos vendem pelo site da Amazon no modelo de marketplace, que dá segurança para quem não tem condições de ter um site e atrair tráfego. Reconhecemos um valor enorme nas livrarias pequenas e queremos que continuem prosperando.”
É difícil de contestar que a pandemia acelerou um modelo de venda mais híbrido, em que a livraria física se alicerça em outros meios de alcançar seu leitor.
“A minha loja virtual dobrou o movimento, mas é paradoxal”, comenta Rui Campos, da Travessa. “Porque o mercado não vive sem a livraria. O desejo pelo livro não é entrar num site, é conviver, tocar, ver a capa. O dia em que não tiver mais livraria, não tem mais online também, porque o livro vai ter se tornado dispensável.”
Fonte: Folha de S. Paulo