Por Hugo Cilo | Tão popular quanto o croissant e o petit gateau, a varejista Leroy Melin se tornou quase um sinônimo de materiais para construção, reforma e decoração na França. A companhia criada em 1918 pelo casal Adolphe Leroy e Rose Merlin, logo depois da Primeira Guerra Mundial, nasceu com o nome de Au Stock Américain, vendendo produtos deixados para trás pelo exército americano. Depois de reformados, viravam símbolo de status, vitória e sucesso entre os cidadãos franceses.
Reformar, vender, construir e reconstruir. O plano deu certo. No ano passado, a Adeo — nome do conglomerado industrial que controla a marca e que opera 32 empresas independentes e mantém 89 mil funcionários em todo o mundo — atingiu faturamento recorde de 31,2 bilhões de euros, alta de 150% em uma década.
O enredo da Leroy Merlin no Brasil não inclui guerra, e muito menos ser um bazar de produtos de segunda mão, mas também se apoia na premissa original de reformar, vender, construir e reconstruir — não, necessariamente, nessa mesma ordem.
Sob comando do executivo espanhol Ignacio Sánchez Villares desde setembro de 2020, a empresa tem o objetivo de se consolidar na liderança do varejo da construção e se tornar tão popular quanto o pão de queijo e a goiabada.
Para isso, a meta é abrir de 15 a 20 novas lojas nos próximos cinco anos (hoje tem 48 unidades) e dobrar o faturamento previsto em R$ 9 bilhões neste ano.
Em 2022, a companhia fechou o ano com R$ 8,4 bilhões em vendas e respondeu por 4,3% do volume de negócios do grupo. “A operação brasileira é a que tem maior potencial de crescimento para a companhia no mundo”, afirmou Villares à DINHEIRO.
A estratégia para multiplicar os resultados e ampliar a fatia do Brasil no balanço global é driblar a concorrência — especialmente da vice-líder no País, a Telhanorte, do grupo compatriota Saint-Gobain — e não depender só da venda de materiais de construção.
O programa Leroy Merlin Instala é um pilar desse plano. Com ele, a empresa passa a oferecer mais de 130 serviços com 2,5 mil funcionários, desde reformas completas de banheiro e cozinha até instalação de móveis.
Todos os prestadores certificados precisam manter nota acima de 4,8 estrelas em uma escala de zero a 5 na satisfação do cliente. A receita da empresa com esses serviços agregados, segundo Villares, desde o ano passado cresce a um ritmo de 8% a 10%, enquanto as vendas de materiais avançam em 5%.
A meta é que o percentual do faturamento do grupo com serviços passe dos atuais 8% para 14% em dois anos. Na Europa, os serviços já respondem por 20% do balanço.
A meta de dobrar o faturamento da Leroy Merlin no País não será um feito inédito no currículo de Villares dentro da companhia.
Nos 11 anos em que pilotou a divisão Espanha-Portugal do grupo, a rede saltou de 42 para 90 grandes lojas e inaugurou outras 50 compactas.
Hoje a empresa possui 120 unidades grandes e 300 compactas nos mercado luso-espanhol, com população de 50 milhões de pessoas. “Se temos uma operação deste tamanho lá, imagine o que é possível crescer no Brasil, com mais de 200 milhões de pessoas e regiões com imensa demanda por serviços e produtos de qualidade”, disse o CEO.
Tecnologia
Parte desse crescimento virá dos canais digitais. Com orçamento de R$ 450 milhões por ano para investimentos em tecnologia, a companhia tem apostado em Inteligência Artificial para:
• gestão de estoques de suas lojas e centros de distribuição,
• eficiência logística,
• e redução do tempo de entrega.
Em parceria com a alemã DHL, a empresa quer estender para todo o País a proposta de entrega e instalação em 24 horas. “A experiência não pode ser boa no ato da venda e ruim no last mile, na hora da montagem.”
A Leroy Merlin tem seguido uma tendência mundial ao agregar produtos e serviços aos clientes que já estão dentro de suas lojas, na avaliação de Américo José da Silva Filho, sócio-diretor da Cherto Consultoria, especializada em varejo. “Como a marca da Leroy Merlin transmite uma imagem de muita seriedade, a ideia de diversificar a prateleira aos consumidores é uma decisão muito bem acertada”, afirmou. “E a empresa acerta também ao planejar seu crescimento num momento de retomada do setor da construção civil.”
Fintech da construção
Dentro do plano de diversificar a oferta de serviços está o lançamento, nos próximos 12 meses, do segmento de seguros residenciais, nicho ainda pouco explorado no País em comparação com países desenvolvidos.
A ideia é ofertar pelo app ou no caixa proteção para os produtos ou proteção para casas e apartamentos no caso de incêndio, inundação, vazamentos e diversas outras coberturas. Na Espanha, a Leroy Merlin mantém parceria com a seguradora Mapfre para cobertura de praticamente tudo da porta para dentro.
No Brasil, segundo o CEO, a empresa poderá firmar parcerias com diversas seguradoras e oferecer, com a estrutura que possui, sua própria cobertura. Uma oportunidade e tanto.
Pelos cálculos da Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg), o segmento está crescendo, mas ainda longe do ideal. Hoje 83% dos lares brasileiros não possuem nenhum tipo de cobertura. Mesmo assim, o mercado de seguro residencial atingiu R$ 4,48 bilhões em 2022, uma expansão de 16% em comparação a 2021 e de 45% em quatro anos.
Junto com os seguros, a rede planeja atacar como banco. Nos próximos meses, a empresa vai apresentar o Leroy Merlin Pay, um hub de serviços financeiros com conta digital, linhas de crédito para obras, empréstimos no formado CDC e cartões de crédito com acúmulo turbinado de pontos.
Outros exemplos bem-sucedidos na Espanha e que serão replicados no Brasil são os projetos de construção de imóveis pré-fabricados e instalação de sistemas de geração de energia fotovoltaicas.
No catálogo de casas modulares, na Europa a Leroy Merlin vende unidades de 10m² a partir de 4,5 mil euros. Uma casinha de 25m² sai por volta de 10 mil euros, já mobiliada e com possibilidade de autogeração de energia.
Além de oferecer uma nova família de produtos ao mercado brasileiro, essas divisões de negócio ajudarão a empresa a atingir suas metas internas de ESG, que incluem reduzir em 50% a pegada de carbono até 2035, aumentar de 75% para 90% a reciclagem de produtos e embalagens e ampliar de 75% para 90% o índice de nacionalização de seu portifólio.
Com tudo isso, Villares pretende transformar a operação brasileira em um hub de exportação de produtos para o rigoroso mercado europeu.
“Se ajudarmos nossos fornecedores a se enquadrarem nas melhores práticas globais, podemos ser parceiros deles nas vendas mundo afora.”
Ignacio Sánchez Villares, CEO da Leroy Merlin no Brasil
Reformar e formar
Um dos principais pilares do plano de expansão da Leroy Merlin é a formação de mão de obra. A empresa criou uma Universidade Corporativa para qualificar desde montadores e instaladores até MBAs, em parceria com a Escola Superior de Propaganda e Marketing, para seus cargos de liderança. Diretores, gerentes e coordenadores voltam às salas de aula para curso de gestão estratégica do varejo.
Para quem não é da chefia, a empresa banca bolsas de estudo de 50% a 100% para cursos variados que dialogam com o negócio da companhia, como:
• logística,
• administração,
• recursos humanos,
• gestão de pessoas,
• análises de dados,
• marketing,
• comunicação,
• contabilidade.
Só em 2022, mais de 500 colaboradores solicitaram e receberam este incentivo educacional. Para as funções mais operacionais, a Leroy tem formado em parceria com Sebrae e Senai cerca de 1,5 mil profissionais por ano, que podem ser recrutados para o Leroy Merlin Instala. Os investimentos em formação de equipes neste ano devem superar R$ 15,5 milhões. No ano passado, foram gastos R$ 13,8 milhões.
Todo esse plano de ampliação da Leroy Merlin no País tem como meta tornar a operação brasileira uma das maiores e mais rentáveis do mundo, segundo Villares, e consolidar a rede como um complexo de multiprodutos e multisserviços. Assim como teria planejado o casal Adolphe Leroy e Rose Merlin.
ENTREVISTA
“A queda dos juros e programas como o Minha Casa, Minha Vida vão dinamizar a economia.”
Ignacio Sánchez Villares, CEO da Leroy Merlin no Brasil
Por que a estratégia é crescer em serviços, em vez de produtos?
O aumento das margens está em serviços, não só em venda de itens para construção. Desde a pandemia, houve um boom de demanda no segmento de home improvement porque as pessoas ficaram em casa e enxergaram a necessidade de fazer pequenas reformas. Isso aconteceu no mundo todo. Mas a volta para a realidade, apesar de estarmos em patamares muito superiores aos de 2019, desacelerou esse crescimento. Nossas vendas em 2019 foram na casa de R$ 5,3 bilhões. Neste ano, devemos fechar em R$ 9 bilhões. Por isso, os números estão muito bons, mas as receitas em serviços são as que vão puxar nossos resultados.
Quais serão os serviços?
A proposta é oferecer um pacote completo. O mais importante é passar do produto à solução. Quem procura um novo revestimento para a cozinha, uma nova torneira para o banheiro ou qualquer outra melhoria no imóvel, pode escolher tudo na loja e já sair com o projeto na mão. Tudo desenhado, projetado e executado pelo nosso time. Pronto em 15 dias. Fornecemos o projeto para eles, com o melhor relacionamento, qualidade e preço.
Como crescer com modelo de hiperlojas em um setor com tanta loja de bairro?
Temos um modelo de unidade compacta, voltada a esse segmento. A loja Express tem só 1 mil m² para trabalhar o cliente de proximidade. Vamos inaugurar também, em Brasília, uma loja Compact, de 5 mil m². Mas nosso foco é desenvolver ferramentas para que o cliente de bairro possa comprar nossos produtos no digital, via website ou marketplace. Todas as nossas grandes lojas funcionam como centros de distribuição, que podem atender a cidades menores em um raio de até 400 km.
Quais são os maiores entraves?
Um dos grandes desafios é garantir que o produto comprado seja entregue no prazo combinado. Nos últimos anos, vivemos um período de contrastes. Muita gente em casa, fazendo pequenas reformas. Por outro lado, a economia fechada, com lockdown e fornecedores que não tinham como fornecer. Havia desafios na logística. Esses são pontos sensíveis e que temos que ficar atentos.
Qual a sua avaliação da conjuntura macroeconômica?
Existem algumas sinalizações muito positivas. O fortalecimento do Minha Casa Minha Vida pode ajudar a reaquecer o mercado em um momento de desaceleração do crescimento das vendas. Isso é muito bom. A queda dos juros também. Mas tem que cair mais, mesmo que o foco seja o controle da inflação. Preços em alta são muito ruins para o consumidor, para as empresas e para a economia. Mas, por outro lado, não dá para imaginar que a economia vai crescer com uma Selic dessa. Com 13,25% ao ano, as empresas não investem. Preferem deixar o dinheiro aplicado. E quem tem muito estoque, como é o nosso caso, com R$ 5,7 bilhões em produtos, juros altos é terrível. Mas olhando de forma positiva, acredito que a queda dos juros e programas como o Minha Casa Minha Vida vão dinamizar a economia.
O plano de expansão da Leroy Merlin no Brasil copia algum modelo no mundo?
Alguns pontos, sim. Nos mais de dez anos que comandei a empresa na Espanha e em Portugal, implementei iniciativas bem sucedidas que agora vamos trazer para o Brasil. A agregação de valor é um deles. Mas traremos também seguros residenciais, mais projetos de arquitetura, marcas próprias e até geração de energia solar e casas pré-moldadas. Na Europa tudo isso deu muito certo.
Por que a empresa decidiu criar uma universidade corporativa?
No Brasil e no mundo não há mão de obra qualificada. É um problema global. Criamos a universidade para ter controle sobre prazos e qualidade de instalação. A experiência não pode ser boa no ato da venda e ruim no last mile, na hora da montagem. Acaba com a nossa reputação. Por isso, aqui é formação, formação e formação…
Como a matriz enxerga o Brasil?
A operação brasileira é a que tem maior potencial de crescimento para a companhia nos próximos anos. Todos na empresa têm visão clara disso. Quando falo na França que a distância entre Porto Alegre e Fortaleza é equivalente a Madri e São Petersburgo, fica mais fácil de entender. O Brasil deveria ser a quarta ou a quinta economia do mundo entre 2035 e 2040. Se não for, não será por falta de oportunidades e de potencial.
Fonte: IstoÉ Dinheiro