Os irmãos José Roberto Garcia e Paulo Garcia, sócios controladores da Kalunga, assinaram contrato para a venda, por R$ 106,2 milhões, da fabricante de material escolar Spiral para a própria Kalunga no fim de outubro – semanas antes de entrar com pedido de oferta pública inicial de ações (IPO, da sigla em inglês). Ambos são donos da Spiral, fornecedora de produtos de papelaria e escritório à varejista, e são os únicos sócios da Kalunga.
Os Garcia vão usar os recursos para pagar parte de uma dívida de R$ 481 milhões com a varejista, o que deve ajudar a reduzir a sua alavancagem atual – a dívida líquida da rede é de quase R$ 740 milhões. O restante do saldo a dever pelos sócios será quitado com montante da oferta secundária de ações do IPO, que deve ocorrer neste ano. As informações constam na minuta do prospecto preliminar da oferta publicado semanas atrás.
Com o IPO, o intuito é captar cerca de R$ 1 bilhão, dizem fontes, com emissão primária, para o caixa da rede, e secundária, para o bolso dos acionistas – a operação ainda está em andamento.
Pelo acordado, metade dos recursos da venda da Spiral (R$ 53,12 milhões) iria para Paulo e a outra metade (R$ 53,12 milhões) para José Roberto. Mas o pagamento sofrerá desconto de um crédito detido pela Kalunga contra os dois sócios, segundo contrato de mútuo (empréstimo) assinado anos atrás, com o saldo de quase R$ 481 milhões. Procurada, a empresa está em período de silêncio e preferiu não se manifestar. Os sócios também não comentaram.
O pagamento ocorre dentro de um cenário de busca de melhora da estrutura de capital da empresa. A varejista diz no prospecto que 45% dos recursos da oferta primária irão para reforço e adequação desses números na cadeia. Em setembro, a dívida líquida (já descontado o caixa) era de R$ 738,6 milhões, 20% acima do ano anterior. Desde 2017, a alta é de 50%. Em relação ao patrimônio, a alavancagem caiu no período.
Além de ser avalista da Spiral, e comprar toda a sua produção, a Kalunga contrata a Ka Solution, empresa controlada pelos dois sócios, para prestação de serviços de informática. Para se ter uma ideia mais clara, em 30 de setembro de 2020, o saldo de partes relacionadas da Kalunga somava R$ 543,9 milhões ante R$ 427,2 milhões um ano antes, aumento de 27,3%.
A empresa diz que o preço de aquisição da Spiral, que será descontado da dívida dos sócios, foi baseado em laudo de avaliação independente elaborado pela Padrão Consultoria, utilizando como critério de avaliação o método do fluxo de caixa descontado. A ideia é que a transferência da Spiral ocorra na data de publicação do anúncio de início da oferta.
A Spiral perdeu venda em 2020, por conta da pandemia, com queda de 22,5% na receita líquida, para R$ 69 milhões de janeiro a setembro. O lucro antes de juros, impostos, amortização e depreciação (ebitda, da sigla em inglês) caiu 93%, para R$ 1 milhão. Em 2019, atingiu R$ 20 milhões. A empresa tem uma fábrica na capital paulista que abastece de forma exclusiva a Kalunga. A fábrica representa 11% das vendas da varejista.
A operação digital, focada no “marketplace”, (shopping virtual), não era citada como uma prioridade na Kalunga até anos atrás. Em entrevista ao Valor em 2017, José Roberto dizia que não colocaria a rede nessas plataformas – a cadeia ainda não tem loja nos principais marketplaces. Ele afirmava que a Amazon, segundo maior “marketplace” do mundo, “vivia dando prejuízo” e que havia rejeitado um contrato de anúncios do Google, apresentado à rede naquela época.
“Devem achar que eu sou doido. Mas a gente só está protegendo o negócio”, afirmou. Hoje, a rival Gimba vende pelo Mercado Livre e a Amazon tem sua loja virtual de itens de escritório e avançou sobre esse setor nos últimos anos.
Hoje, o “marketplace” ainda não é um ponto mencionado em seus documentos sobre o IPO, mas o braço digital é abordado pela expansão e pelo peso maior na estratégia (foi a quase 25% das vendas em 2020, versus 11% em 2019). O grupo fala no canal como “grande alavanca de crescimento”, mas a operação on-line não é mencionada entre aquelas que receberá diretamente os recursos da oferta de ações. Sobre a destinação desse capital, 36% irão para novas lojas e expansão da gráfica, 19% em novos centros de distribuição e 45% para a melhorar a estrutura de capital.