Classe média recorre cada vez mais aos atacarejos, que já respondem por 40% das vendas de alimentos no país
Por Jéssica Marques
A inflação nas alturas e o aperto crescente no bolso abalam a fidelidade do brasileiro às marcas nos supermercados. Consumidores trocam o casamento com produtos favoritos por uma espécie de “relacionamento aberto”, no qual experimentam outras opções de uma mesma categoria de acordo com o preço, em segmentos como alimentos, higiene e limpeza. E esse match acontece em um novo canal de vendas: o atacarejo.
Segundo consultorias especializadas, esses hipermercados, cada vez mais procurados pela classe média ávida por descontos nas compras em quantidade, já somam 40% das vendas de alimentos. Neles a variedade é maior, o que dá mais chance ao flerte com produtos mais baratos.
— Há uma variável muito impactante nesse movimento atual de troca por marcas que não estava nas crises anteriores, que é o atacarejo. Permitiu que as pessoas fizessem o trade down (troca por itens de baixo custo) com muitas opções para escolher — diz Rodrigo Catani, head de Potencializar Vendas da AGR Consultores.
O atacarejo, continua ele, permite ao consumidor transitar entre as marcas pelas quais tem preferência e outras que não conhecia ou não via no mercado de bairro.
— É uma troca que ocorre principalmente na classe média. É um grupo mais aberto a testar outros produtos de menor preço. Elege uma cesta de itens dos quais não vai abrir mão e compensa economizando no restante — acrescenta Catani. — Nas classes baixas, que já compram de forma seletiva e restrita, essas trocas são mais difíceis porque a pessoa não pode errar.
Troca de fraldas
No Grupo Mateus, rede presente em todo o Nordeste em que o atacarejo é 50% do negócio, o faturamento saltou de R$ 4,1 bilhões em 2019, antes da pandemia, para R$ 8,7 bilhões em 2021.
Aliada à estratégia dos supermercados, o grupo verticalizou quatro marcas próprias voltadas para frios e padaria. Nesta última, sua etiqueta supera 50% das vendas.
— O atacarejo é um formato definido pelo consumidor final há alguns anos. Ganhou tração na pandemia, e os efeitos inflacionários continuam direcionando esse movimento — diz Marcelo Korber, gestor da área de Relações com Investidores da rede.
Fernando Gambôa, sócio-líder de Consumo e Varejo da consultoria KPMG no Brasil, explica que, além do atacarejo, desponta neste cenário de salários que não conseguem repor a inflação a volta da venda à granel e das marcas próprias das varejistas.
— Os supermercados costumam trabalhar com 40 a 50 marcas de arroz e biscoito, por exemplo, e agora têm 100. Ampliaram a quantidade de marcas disponíveis e mais baratas para caber no bolso.
Pais de primeira viagem, Helder Martins, de 35 anos, e Ariana Leal, de 33, fizeram algumas mudanças no mercado para ajustar o orçamento familiar às necessidades do filho, Henrique, de pouco mais de um ano. Uma das trocas foi a marca de fraldas descartáveis.
Quando viu o pacote Pampers Premium Car subir de R$ 62 para R$ 82, diz Martins, o casal abandonou a preferência e começou a experimentar marcas mais baratas que não comprometessem o bem-estar do filho. Eles acabaram aderindo à ZeuKids, de R$ 13,99. Já encontraram a marca em promoção a R$ 9, economia de quase R$ 70 por embalagem.
O leite Aptamil, indicado pela pediatra, que custa R$ 80, também foi trocado. O novo amor da família é o Ninho Nutrigold, de R$ 38.
— Testamos várias marcas até achar uma que fosse barata, mas de boa qualidade. Minha maior preocupação é chegar a um ponto em que eu não consiga mais substituir a marca e tenha que abrir mão de algo importante ou essencial para o meu filho — diz Martins.
Despensa revista
Segundo Allan Hock, diretor de marca própria do Carrefour, fralda é um produto de difícil entrada pelas marcas populares, por conta do reconhecimento daquelas já existentes. Ainda assim, a marca própria da varejista, lançada em 2020 com 5,4% das vendas do item infantil em suas lojas, atingiram 24,2% em 2021, liderando a categoria.
Ao todo, 22 produtos da etiqueta Carrefour são os mais vendidos da rede, como arroz, molho de tomate, açúcar, leite condensado, ervilha e milho em lata, algodão, papel higiênico e água sanitária. As vendas gerais de marca própria de alimentação no Carrefour, que correspondiam a 12,7% em 2018, hoje são 20%.
Hoje, nenhum produto nosso performa abaixo de 8%. Isso acontece por causa da reformulação dos produtos. A qualidade também mudou. Investimos e reduzimos margem (de lucro) para não perder a qualidade — diz Hock.
Trocar as marcas dos alimentos foi a saída adotada pelo empresário Paulo Carvalho, de 65 anos, para não fechar as portas do seu restaurante em Olaria, na Zona Norte do Rio.3 de 3 Paulo Carvalho (à direita) e o filho Léo Motta no restaurante Rango Forte, que mantêm na Zona Norte do Rio: troca de marcas foi a saída para não repassar preços — Foto: Fábio Rossi
Paulo Carvalho (à direita) e o filho Léo Motta no restaurante Rango Forte, que mantêm na Zona Norte do Rio: troca de marcas foi a saída para não repassar preços — Foto: Fábio Rossi
Para não tirar carnes do cardápio nem aumentar o preço das refeições (R$ 16), ele trocou o pacote do tradicional arroz Tio João, de R$ 24,89, pelo Camil (R$ 19,99). O feijão Combrasil (R$ 9,98) deu lugar ao Máximo (R$ 8,99), e o óleo Lisa (R$ 10,05) foi substituído pelo Soya (R$ 9,99), ainda que com pouca diferença.
— Costumava vender 220 refeições por dia. Com a pandemia, passei a vender 60. Tive que fazer mudanças. Consumia no restaurante 20 quilos de carne apenas no almoço. Hoje, trabalho com sete quilos. Abri mão das marcas porque foi preciso — diz Carvalho, que, sem poder repassar o custo maior aos clientes, vê a própria renda encolher.
‘Bandeira branca’
As marcas próprias de varejistas chegam a custar entre 15% e 30% menos que as mais conhecidas, o que fez com que a presença delas saltasse de 40% para 66% dos domicílios brasileiros nos últimos cinco anos, estima Fernando Baiafuna, diretor da consultoria GFK para a América Latina:
— A pandemia e a crise econômica aceleraram a experimentação (de novos produtos). O mercado está mais competitivo. Uma vez que se prova e vê a qualidade, desistir da marca própria não é tão simples como antes, em que o consumidor voltava para as líderes depois da crise.
No GPA, dono das redes Extra e Pão de Açúcar, suas seis marcas próprias passaram de 13,5% em 2018 para 21,5% do total de vendas no primeiro trimestre de 2022. Segundo o diretor de Marcas Exclusivas, Eduardo Finelli, a participação dos itens dessa espécie de “bandeira branca” aumentou 27% nas vendas de óleo de soja, 10% nas de feijão e 20% nas de farinha. Em algumas categorias, as etiquetas do GPA representam até 40% das vendas, como o açúcar. Em um ano, o gasto médio dos clientes com esses produtos subiu 22,5%, diz o executivo.
Alguns itens, como xampu e condicionador, são difíceis de o consumidor abandonar. Mas outros têm rápida adesão, como a Taeq, linha de produtos saudáveis. Com isso, o GPA ampliou de 100 para 150 os lançamentos de marca própria por ano.
Fonte: O Globo