Por Álvaro Campos
Desde o fim de 2021 a inadimplência vem subindo no sistema financeiro, concentrada principalmente em pessoa física e, dentro desse segmento, em linhas mais arriscadas e sem garantia, como crédito pessoal e cartão de crédito. Com os juros altos por mais tempo, e a inflação corroendo a renda, as classes mais baixas são particularmente afetadas – um desafio grande para as financeiras de redes varejistas, que operam linhas para esse público.
A Lojas Renner informou, no balanço do quarto trimestre, que sua financeira, a Realize, atingiu uma carteira de crédito R$ 6,324 bilhões no fim de 2022. O portfólio teve expansão anual de 32,2%. No entanto, a companhia disse que as perdas líquidas “seguiram impactadas de forma importante, em razão da continuidade do contexto macroeconômico mais difícil, de maior endividamento das famílias, resultando em maior provisionamento de perdas, bem como níveis de recuperação de crédito abaixo do esperado”.
Os créditos vencidos da varejista aumentaram em relação o trimestre anterior, refletindo o cenário de inadimplência do mercado. De acordo com a empresa, houve estabilidade nos atrasos acima de 90 dias, consequência principalmente de um volume menor que o esperado na formação de novos créditos.
Analistas apontam que, apesar de as financeiras terem apertado os padrões de concessão de crédito ao longo do ano passado, a situação ainda não está totalmente controlada. O consumo depende basicamente de duas variáveis: emprego, que até tem ido bem, e crédito – e a perspectiva de que os juros permaneçam elevados por mais tempo joga contra as varejistas, especialmente em um cenário de desaceleração da economia. Nesse sentido, acabam ficando entre a cruz e a espada, já que, se apertam muito o crédito, acabam prejudicando as vendas. Porém, se não o fazem, podem ter de lidar com calotes mais elevados.
Dados da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor, da Confederação Nacional do Comércio (CNC), mostram que 29,9% das famílias tinham dívidas em atraso em janeiro, ante 26,4% no mesmo mês do ano passado. Do total dos endividados, 18,6% tinham dívidas com carnês. “A inadimplência está crescendo em todas as cadeias e as varejistas não estão de fora disso. Essa situação deve permanecer este ano, ainda não tem uma tendência muito clara de redução, pelo contrário, os juros elevados devem fazer com que a inadimplência fique sim em um patamar mais alto este ano”, diz Izis Ferreira, economista da CNC.
Danniela Eiger, analista de varejo da XP, diz que o cenário macroeconômico ainda é muito adverso para as varejistas, com juros elevados e inflação alta. “Desde o ano passado as financeiras das varejistas vêm ajustando suas políticas de crédito, com modelos mais restritivos de concessão e reforçando a cobrança. Tem havido algum sinal de estabilização, mas ainda é incipiente”, afirma. “Se olharmos o caso da Renner, por exemplo, eles disseram que a inadimplência deve começar a melhorar no segundo semestre, mas isso vai depender da dinâmica macro ajudar.”
A Realize e a Midway, da Riachuelo, estão entre as maiores financeiras do país. A Midway tinha uma carteira de R$ 5,647 bilhões em setembro, com alta anual de 27,5%. A Riachuelo divulga seu balanço do quarto trimestre no próximo dia 8. No balanço do terceiro trimestre, a companhia dizia que a inadimplência no cartão era de 5,1%, ante 4,5% no trimestre anterior e 4% em igual período de 2021. Em empréstimo pessoal, o indicador era de 10,8%, ante 13,1% e 23,5%, respectivamente.
A Midway disse na ocasião que a queda na inadimplência em empréstimo pessoal refletia o posicionamento de melhora de risco que vinha sendo tomado nos últimos trimestres. No segmento de cartões, a financeira atribuiu o aumento do indicador a operações de cartão com bandeira e ao cenário mais difícil.
A Pefisa, da Pernambucanas, tinha uma carteira de R$ 2,834 bilhões em setembro, segundo disponíveis no Banco Central. Os créditos em atraso representavam 15,8%. Como não é listada em bolsa, a companhia não é obrigada a divulgar balanços trimestrais. Já a M Pagamentos, da Marisa, tinha um estoque de R$ 592,573 milhões em operações em setembro. O índice de perdas sobre a carteira no cartão private label era de 7,7%, ante 5,1% no terceiro trimestre de 2021. A empresa divulga o balanço do quarto trimestre no dia 15.
No trimestre passado, a Marisa informou que a queda na fatia das vendas feitas via cartão private label era “reflexo da política mais conservadora de concessão nesse período devido à alta nos níveis de inadimplência do consumidor em geral”. Na ocasião, o CEO da varejista, Adalberto dos Santos, disse que o aumento das provisões para perdas no crédito (PDD) já estava arrefecendo e os níveis já estavam muito parecidos com o pré-covid. “Ela opera em um nível já muito próximo, um pouquinho mais elevado, do que a gente considera normal. Mas já está bem melhor que o primeiro semestre”, disse.
Outras duas grandes varejistas, Via e Magazine Luiza, divulgam resultados do quarto trimestre na semana que vem. A Via tem a fintech banQi, mas ela é uma instituição de pagamento, não uma financeira. Quando disponibiliza crédito, na verdade opera como correspondente bancário da BMP Money Plus, que é quem fica com o risco. Já o Magazine Luiza tem a financeira Luizacred em parceria com o Itaú. Sua carteira é de R$ 20,076 bilhões, mas como entra no consolidado do banco, não há muitas informações específicas. A Americanas tem a carteira digital Ame, com 6,7 milhões de usuários ativos, mas não oferece empréstimos diretamente, atuando apenas como um marketplace de crédito.
Para Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), o pico do problema de crédito das varejistas parece ter coincidido com o auge da inflação, em meados do ano passado, mas é preciso acompanhar o desenrolar do cenário. “No momento, a situação do emprego é boa, mas o crédito é um ofensor ao consumo. O problema é que, olhando para frente, o cenário é de perda de ritmo da atividade econômica, de demissões”, diz.
Cláudio Felisoni, presidente do Instituto Brasileiro de Executivos de Varejo (Ibevar), tem uma visão semelhante. “A inflação recuou um pouco recentemente, mas ao custo de uma subida da taxa de juros, o que afeta o custo do crédito. No curto prazo, não vamos ter uma solução disso.”
Felisoni diz que as grandes varejistas operam de forma bastante alavancada e com margens estreitas, e que o aumento da competição nos últimos anos dificultou o repasse da inflação. Nesse cenário, pode ser tentador afrouxar um pouco a política de crédito para tentar amenizar a queda das vendas. “Sem dúvida há uma pressão para assumir mais riscos, mas já vimos no histórico recente várias situações complicadas. Foi isso que quebrou a [varejista Lojas] Arapuã”, lembra. Terra, da SBVC, diz que na verdade o momento é de tomar menos risco. “Se você erra a mão no crédito, isso pode se tornar outro componente a deteriorar o resultado do grupo lá na frente, em uma situação em que o varejo já está fragilizado.”
O executivo observa que há diversos tipos de financeiras de varejistas, desde as totalmente independentes até aquelas que são uma joint venture com um banco. “Em um momento mais conservador, se você tem uma parceria com um banco, ele não vai aprovar crédito nenhum. Por isso a C&A está desfazendo a parceria com o Bradesco”, afirma.
Apesar de terem mais tecnologia e modelos de risco mais aprimorados, para os bancos muitas vezes não faz sentido atender esses clientes com tíquetes pequenos, mas, para as varejistas, sim. “Para as varejistas, ter uma financeira é uma vantagem competitiva, pois atendem um público que não tem amplo acesso a crédito e ganham duas vezes, no crédito em si e nas vendas. Elas têm que colocar as duas equações junto e ver quanto risco estão dispostas a tomar”, acrescenta Eiger, da XP.
Na divulgação do balanço do quatro trimestre, o presidente da C&A, Paulo Correa, afirmou que a companhia recebeu uma licença de sociedade de crédito direto (SCD) – usada por fintechs – e estuda ofertar crédito por meio de um Fundo de Investimento em Direito Creditório (FIDC). “Apesar desse momento macroeconômico bastante instável que a gente viveu no final do ano passado e continua vivendo, a C&A conseguiu construir um desenho operacional bastante forte […] também com o avanço e o desenvolvimento do nosso modelo de crédito através do C&A Pay”, disse. O C&A Pay encerrou dezembro com uma carteira de crédito de R$ 562,6 milhões, alta anual de 472,91%.
Não bastasse o cenário já complicado para as varejistas, o setor ainda lida com a debacle da Americanas, que entrou em recuperação judicial após a descoberta de um rombo contábil de R$ 20 bilhões. Se, por um lado, a perda de participação de mercado da companhia pode beneficiar algumas rivais, as incertezas trazidas pelo caso são prejudiciais para a indústria como um todo. “Mais do que o problema de crédito ofertado para pessoa física, a grande crise que o varejo está passando é na pessoa jurídica, como tomador de crédito”, diz Terra, da SBVC. Após o problema na contabilização do chamado risco sacado na Americanas, os bancos estão olhando com lupa esse tipo de linha e, com o aumento de risco, os spreads subiram.
Segundo Terra, a crise de crédito para as varejistas deve ser aguda, mas de curta duração. “É um freio de arrumação, creio que os bancos vão voltar a conceder crédito tanto em risco-sacado como em outras linhas. Ao mesmo tempo, se o Banco Central não começar a reduzir os juros em breve, vai ser um ano perdido para o varejo”, diz.
“O alerta de uma potencial crise de crédito está acesso. Outras varejistas, como a Marisa, já buscam reestruturação de dívida, e não temos no horizonte uma possibilidade de melhora na dinâmica de juros”, afirma Ferreira, da CNC.
Fonte: Valor Econômico