Por Adriana Mattos | O Brasil começa a implementar um novo modelo de importação de remessas postais com varejistas de moda pressionadas por receita em queda, altos estoques e necessidade de mostrar a investidores alguma reação antes do fim do ano.
Desde 1º de agosto, empresas podem pedir isenção da tarifa de importação de 60% para produtos importados de até US$ 50. Para isso, precisam aderir ao plano Remessa Conforme e fornecer várias informações à Receita Federal. Este regime, que deve beneficiar plataformas estrangeiras, na visão das redes locais, causou protestos de varejistas nacionais, cujas vendas têm sido fracas neste ano.
O desempenho abaixo do esperado no segundo trimestre se espalhou pelo varejo, atingindo principalmente o segmento de vestuário, além de itens esportivos e eletrônicos. Neste momento, as cadeias estão em fase de negociação ou recebimento de parte da compra de produtos para a Black Friday, que ocorre dia 24 de novembro, e é a principal data do comércio on-line – operação que está no centro da disputa por mercado entre grupos locais e internacionais.
Segundo empresários e analistas ouvidos pelo Valor, há expectativa de que, mesmo nesse cenário complexo, em meio a mudanças nas regras de importação, as redes nacionais consigam recuperar a demanda e reverter os números do primeiro semestre.
“O cenário ainda é meio nebuloso para o resto do ano”, afirma Eduardo Terra, diretor da BTR Educação e Consultoria e membro do conselho de administração de varejistas. “Existe, inclusive, uma possibilidade de que as novas regras de remessas até melhorem o ambiente, pela expectativa de maior fiscalização da Receita, e pelo temor maior do consumidor de ser pego e ser taxado. Já há novos sinais de entrada de mercadorias da China num ritmo mais lento.”
De acordo com um empresário do setor têxtil, “o primeiro semestre foi bem difícil, o varejo têxtil caiu 8%, e ainda há um fator de preocupação com essas indefinições relativas ao novo programa de importação”, diz. “Por outro lado, existe um ambiente positivo com os juros menores gerando maior confiança, temos a iniciativa do ‘Desenrola’, que libera alguma renda, e não temos eleição e Copa do Mundo, que afetaram muito a base de vendas de 2022. Então ainda tem algum otimismo no ar, apesar das incertezas”, acrescenta.
Ainda há recuperação lenta, e isso joga pressão maior nas redes após setembro”
Plataformas estrangeiras e transportadores que aderirem às regras do programa Remessa Conforme, de envio de mercadorias de até US$ 50, podem oferecer ao consumidor o benefício do imposto federal zero, mas terão que pagar ICMS de 17% sobre o valor total da compra. Quem paga o imposto de importação é o consumidor.
A isenção nos envios de até US$ 50 passou a valer a partir de 1º de agosto, segundo portaria do governo, mas na prática, ainda não está sendo aplicada. É que o pedido de adesão das plataformas ao programa tem de ser analisado pelo Fisco antes de as empresas receberem um selo que garante desembaraço mais rápido dos produtos. Enquanto essa liberação não ocorre, continua em vigor a alíquota de 60%. Não há prazo para essa análise – algo que tem gerado, inclusive, críticas de operadores logísticos e de plataformas ouvidos pelo Valor.
“O Fisco tem basicamente pedido mais informações, e pelo menos mais quatro portarias sobre funcionamento desse sistema foram publicadas neste mês. Enviamos tudo, ligamos lá e eles só dizem que está sob análise”, afirma o CEO de uma empresa que pediu adesão ao programa.
As cadeias de moda são particularmente afetadas por esse cenário de mudanças regulatórias, e ao mesmo tempo, pelo avanço da chinesa Shein no país.
Renner, Lojas Marisa, Riachuelo (Guararapes) e Centauro (SBF) fecharam o segundo trimestre com vendas em queda, prejuízos maiores ou lucros menores, e sendo obrigadas a cortar preços para conseguir desovar estoques. Todas ainda perderam margens.
Apenas a C&A teve desempenho mais positivo – aspecto de destaque entre investidores e analistas.
“Vimos medidas como o fechamento de lojas deficitárias e demissões em algumas cadeias de moda no segundo trimestre, assim como novos ‘markdowns’ [remarcações]. Julho e agosto já estão dados, e houve uma melhora bem gradual. As informações são de que ainda há recuperação lenta, e isso joga pressão maior nas redes após setembro”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores.
Segundo ela, o foco agora são as negociações com fornecedores para as vendas de outubro, novembro e dezembro, ou seja, Black Friday e Natal. “E trata-se de um período que poderemos ter ainda uma indefinição sobre o ambiente competitivo com as alterações do programa de importações”, afirma.
Apesar da definição do imposto zero a partir de agosto, o governo, pressionado por varejo e indústria local, estuda adotar uma alíquota intermediária nos próximos meses. O Valor antecipou que há uma discussão para que fique em torno de 20% e suba em etapas.
“Estamos naquele estágio em que tudo pode melhorar e tudo pode piorar. Podemos chegar no quarto trimestre com a isenção definida na portaria, com os 60% válidos atualmente, ou até com uma alíquota nova”, diz Terra, da BTR.
O diretor de uma rede de moda nacional afirma que, por conta desse quadro, o caminho é trabalhar com o pior ambiente para as redes locais, ou seja, de imposto zero. “Por enquanto, a gente trabalha com o cenário mais retraído, ainda de manutenção de entrada de produtos importados sem controle”, diz.
Estudos mostram que são as tradicionais cadeias de moda brasileiras que mais sofrem com o avanço da Shein. Fontes próximas às plataformas ressaltam que o aumento da importação não é fator de impacto único, e há efeito de ações das próprias redes, como a demora em investir mais pesadamente na venda digital. “Elas só tiraram mesmo os projetos da gaveta no on-line após o começo da pandemia”, diz o gerente-geral de um marketplace asiático.
Dados de um relatório do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) mostram a Shein com 16,1% da receita total do mercado das redes de capital aberto, em 2022. Ou seja, em apenas três anos de atuação no país, a participação da companhia só é inferior à da líder Renner.
Quem mais “doou” mercado a ela foram Marisa, Riachuelo e C&A, nessa ordem. A perda de 2019 a 2022 varia de 33% (C&A) a quase a metade da fatia (Marisa) que tinham antes da entrada do marketplace asiático. O relatório considera a venda de mercadorias das redes e a receita estimada da Shein em R$ 8 bilhões em 2022.
Um dos aspectos positivos é que parte das grandes varejistas de moda já está buscando trabalhar com estoques menores e situação de caixa mais ajustada do que o que se viu no primeiro semestre.
Além disso, há sinais de que a importação de produtos de baixo valor pelas plataformas perdeu algum fôlego, como possível reflexo de uma maior cautela do brasileiro em importar num momento de mudança de regras.
Segundo dados do Banco Central, o total de importações de pequeno valor via encomendas internacionais caiu 9,9% de abril a junho, para US$ 2,6 bilhões (após início das alterações nas regras).
Nas últimas semanas, o comando de Renner, Riachuelo, C&A e Marisa falaram com o mercado sobre seus números do segundo trimestre, sem citar especificamente o efeito “Shein”. Mas analistas já vêm há meses considerando esse impacto em suas projeções.
A maioria das cadeias mencionou temperaturas não tão baixas no inverno, além de efeitos macroeconômicos, como deterioração na renda e inadimplência alta.
Líder em moda no país, a Renner teve queda de 6% na venda de mercadorias (algo nunca visto num trimestre desde que virou uma “corporation”, com ações pulverizadas, em 2005), a margem bruta caiu 2,2 pontos, para 53,9%, e os estoques estão, em valor, 4% acima de um ano atrás. O lucro líquido caiu 36%, para R$ 230 milhões.
Em teleconferência de resultados neste mês, Daniel Martins, diretor financeiro, cobrou que o “problema” da cobrança de impostos seja resolvido de forma “correta e rápida”. Ainda reforçou a necessidade de a Renner ser mais competitiva já no segundo semestre.
A rede está aumentando a oferta de itens com preços na “faixa de entrada”, ou seja, mais baratos. Segundo balanço da empresa, inflação acumulada, juros elevados e inadimplência em alta afetaram o setor de moda, e por isso está sendo preciso atuar na mudança de percepção de preço – a medida tem surtido efeito após junho.
A diretoria também afirmou que suas remarcações ocorreram antes de outras redes, e isso ajuda a recuperar a margem. Questionada pelo Valor sobre o impacto da Shein na operação e a sua perda de mercado, a Renner informa que “tem se manifestado junto a entidades representativas do setor”.
Na Marisa, voltada mais à classe C, a concorrência pressiona o negócio num momento em que a cadeia enfrenta uma reorganização desde março, com fechamento de lojas e corte de despesas, e precisa voltar a gerar caixa. A varejista teve recuo de 12% na receita com mercadorias de abril a junho, e estoques caíram, em valor, pela metade sobre 2022, após fechamento de 25% das unidades, como parte da reestruturação.
João Nogueira, CEO da Marisa, em entrevista após publicação do balanço, disse que não dá para fazer uma relação direta entre a situação da empresa e o avanço das plataformas estrangeiras, mas entende que a importação ilegal “rouba market share” das redes num cenário de “total desigualdade de condições”.
“A gente espera que até o fim do ano o governo resolva essa questão da alíquota [de importação]. O consumidor pode não perceber, mas isso afeta a empresa nacional, tira empregos e fecha lojas”, disse.
A Riachuelo também citou em seu balanço a necessidade de mais promoções e de reduzir estoques em volume e qualidade (está em R$ 1,5 bilhão em junho, R$ 100 milhões acima de um ano atrás).
Perguntada sobre redução em sua fatia de mercado e as ações para reagir à concorrência mais forte da Shein, a Riachuelo não se manifestou e enviou um posicionamento da Abvtex, a associação de vestuário, que critica a falta isonomia entre estrangeiros e locais, e que isso “beneficia empreendimentos produtivos internacionais”.
Procurada para comentar o avanço de sua participação no país, a Shein afirma em nota que a vantagem da empresa não está nas regras tributárias, mas em seu modelo de negócios, que opera sem estoques, e sua capacidade de “desenhar e fabricar peças em menos de sete dias, diferente do negócio tradicional do varejo que precisa de maior antecipação”, afirma.
Informa ainda que as ações que sustentam a sua expansão são o aumento de infraestrutura (são cinco armazéns no país), criação do marketplace com itens de terceiros, acordos com influenciadoras e abertura de lojas temporárias.
Fonte: Valor Econômico