Varejista sediada em Brusque (SC) iniciou processo para abertura de capital na B3; objetivo é ser avaliada em valor de mercado próximo ao do Magazine Luiza
De algumas semanas para cá, a rede varejista Havan tem causado certo rebuliço no mercado financeiro. Em apresentações recentes a gestores, a empresa de Brusque (SC), comandada com punho de ferro por Luciano Hang, apresentou um ambicioso plano para sua oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês). A maior companhia de lojas de departamentos do país quer amealhar 10 bilhões de reais e estrear na bolsa de valores de São Paulo, a B3, com valor de mercado próximo a 100 bilhões de reais.
Os dígitos deixaram investidores e instituições financeiras atônitos. A título de comparação, a capitalização de mercado do conglomerado varejista mais valioso listado na B3, o Magazine Luiza, equivale a 153,2 bilhões de reais, ao passo que o valor das Lojas Americanas está estimado em 59 bilhões de reais e o da Via Varejo, dona das Casas Bahia e do Ponto Frio, é avaliado em 32,3 bilhões de reais. Outra rival, mas do ramo da moda, a C&A Brasil estreou na bolsa de valores em 2019 com captação de 813,7 milhões de reais, 91,8% a menos do que a Havan almeja levantar. No entanto, diferentemente dos pares já consolidados, a varejista catarinense ainda engatinha quando o assunto é transformação digital e governança corporativa – segundo prospecto preliminar para o IPO da empresa, publicado no último dia 27, ainda se estuda a criação de comitês e a implementação de um conselho de administração. Embora os números apresentados sejam robustos, sobretudo o lucro e a geração de caixa, analistas e especialistas assistem à movimentação com certa desconfiança.
Os números saltam aos olhos. Em 2019, a companhia apresentou receita bruta de 10,5 bilhões de reais, com lucro líquido de 428,4 milhões de reais e geração de caixa assombrosa: 1,1 bilhão de reais. Além disso, o crescimento do faturamento de suas lojas maduras, que possuem mais de doze meses de operação, foi de 32,5%, e sua receita por metro quadrado de área de venda não foi menos impressionante: 2,3 bilhões de reais. Chama atenção, no entanto, a ínfima penetração do e-commerce na receita da rede: apenas 0,7% em 2019. O grupo viu, ainda, sua receita do primeiro semestre deste ano diluir-se drasticamente em decorrência das medidas restritivas para conter a disseminação do novo coronavírus. Nos seis primeiros meses de 2020, a queda na receita bruta foi de 10,3%. E, mais importante, em vez de seguir uma tendência de suas concorrentes, a participação das vendas virtuais na receita total da empresa no mesmo período também brecou, recuando 0,8 ponto porcentual, para 0,3%.
Para quem quer chegar à bolsa com o “pé na porta”, avaliada em 100 bilhões de reais, o atraso na agenda digital certamente será um entrave. Para ser cotada em tal patamar, a empresa teria de obter um múltiplo de 90,4 vezes sua geração de caixa, algo acima do que é alcançado hoje pelo Magazine Luiza – lembrando que a avaliação exclui os impactos do coronavírus no negócio. “Pode-se dizer que, no mundo, a Amazon é o caso de maior sucesso entre as empresas ligadas ao varejo, conseguindo um múltiplo de 123 vezes no seu auge. Em 2019, o múltiplo do Magalu foi de 77 vezes. Para uma empresa que não entrou numa jornada de transformação digital como suas principais rivais, me parece que a ideia de valuation trabalhada pela Havan está agressiva demais”, analisa Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).
Mais do que olhar para o presente, os investidores vão analisar o potencial de crescimento da varejista no futuro. Embora o modelo de negócios seja altamente rentável, ainda há pouca tecnologia empregada. Isso deve mudar. De acordo com a minuta do prospecto, a empresa desenvolveu a Havan Labs, um laboratório de inovação formado por 163 profissionais que estão criando soluções digitais e ferramentas de apoio ao cliente, como o lançamento de um super app, o suporte de vendas pelo WhatsApp e o programa de retirada na loja. Na área financeira, a companhia almeja, ainda em 2020, iniciar um banco digital que seria chamado Havan Bank. Hoje, 4,3 milhões de brasileiros têm o cartão de crédito da rede.
“O que muda o múltiplo de uma empresa de varejo para começar a colocar ela mais próxima de uma empresa de tecnologia é a percepção de que o modelo de negócio está mudando”, afirma Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail. “O Magazine Luiza se valorizou tanto nesses últimos anos não por sua potência como varejista, e sim pelo potencial de se tornar um ecossistema completo. A companhia conseguiu se desgarrar de um modelo econômico de negócio de varejo, que é de baixa margem e alto volume, para um modelo de serviços e tecnologia que é de pouco ativo, pouco nível de despesa fixa e muita margem. A Havan ainda está muito longe dessa agenda.”
Em entrevista concedida a VEJA em meados de maio, o polêmico Luciano Hang se mostrou incomodado com as medidas de restrição impostas pelos governos estaduais. “Queimaram a largada. Anteciparam muito o fechamento do país. Isso causou um desastre na economia”, afirmou. O empresário, no entanto, elogiou a Medida Provisória 936, que permitiu com que a Havan suspendesse o contrato de 11.000 funcionários e mitigasse os danos da pandemia ao caixa da empresa. “É uma medida para proteger o emprego. O trabalhador que ganha um salário mensal de até 3.000 reais não perde quase nada. O governo acertou na veia”, disse. Sobre o plano de expansão da rede, que conta hoje com 149 unidades físicas, Hang foi categórico: “Nós íamos inaugurar 25 lojas este ano. Esse número caiu para sete. O restante será suspenso. Tínhamos um planejamento de crescimento até 2022. Isso já não existe mais. Vamos dançar conforme a música.” Com o avanço das tratativas para a abertura de capital, a Havan entrou em período de silêncio.
Numa estratégia similar à utilizada no IPO recente da XP Investimentos, um dos bancos que assessoram a varejista brusquense no processo, Hang escreveu uma carta aberta aos investidores, contando sobre sua trajetória à frente da empresa, fundada por ele e Vanderlei de Limas em 1986, como uma pequena loja de tecidos. Hang revela que é filho de operários e disléxico, e que sua loja não tem clientes, e sim fãs. “Hoje, com 34 anos de história, começamos uma nova fase e nos sentimos prontos para abrir o nosso capital. Olhando para trás, percebemos que tivemos grandes feitos, mas, olhando para o futuro, vemos que estamos ainda no começo e podemos ir muito, muito mais longe”, diz um trecho do texto.
Dentre os fatores de risco listados no prospecto, alguns chamam a atenção. Por ter sua gestão centralizada na figura de Luciano Hang, foi avaliado que a exposição política e citação em processos judiciais e inquéritos por parte do controlador poderia afetar negativamente a reputação da companhia. Além disso, a empresa ainda não tem uma governança corporativa bem estruturada. Fala-se, por exemplo, em uma eleição de membros para o conselho de administração da empresa. Hoje, o conselho tem caráter consultivo, em que Hang é o responsável por dar as cartas.
“Para buscar uma abertura de capital, a empresa precisa mostrar que tem uma governança implantada e uma autogestão baseada nas melhores práticas, de acordo com as normas do mercado, com um conselho independente, com comitês e responsabilidades bem definidas. A proposta de governança apresentada pela empresa é muito embrionária ainda”, analisa Luiz Marcatti, CEO da consultoria Mesa Corporate Governance. “Vejo poucas chances de isso ser bem avaliado por investidores e analistas”, complementa. Espanta ainda a possibilidade de a varejista não conseguir atingir o percentual de ações em circulação (free float) mínimo exigido pelo regulamento do Novo Mercado dentro do prazo estabelecido.
Demais fatores de risco alertados no documento são a dificuldade de se adaptar rapidamente às transformações digitais exigidas pelos clientes e pelo setor, a competição predatória no âmbito online, a dependência de acesso a linhas de crédito para continuar crescendo, a incerteza em relação ao momento atual da economia brasileira, a possibilidade de inadimplência do consumidor e a inviabilidade eventual de pagar quaisquer dividendos ou juros sobre o capital próprio aos titulares de suas ações. “A Havan não é uma empresa com cultura de governança. É uma empresa de dono, de um único acionista. Isso acaba sendo uma desvantagem”, diz Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores. “A cultura de governança parte do princípio de divisão de números, decisões e responsabilidades. Ao captar qualquer bilhão que seja na abertura do capital, a empresa vai estar atrelada a uma meta de crescimento. E um crescimento de uma organização não se dá em cima da figura de um homem só.” A julgar pelo sentimento do mercado, a intenção de ser avaliada em 100 bilhões de reais parece ser mais um desejo do que uma proposta viável por parte da Havan.
Fonte: Veja
Essa notícia também foi publicada em: