Por Adriana Mattos | Em meados de março, a gerência de um mercado de bairro de Piraí do Sul, município com 25 mil habitantes no interior do Paraná, percebeu que o valor e a quantidade de produtos que passavam pelo caixa de uma das funcionárias não “batia” com a soma arrecadada no fim do dia. Na dúvida, o gerente foi checar os vídeos no circuito de monitoramento, e viu que a atendente, em diversos dias, digitava uma senha (que era de uma supervisora, após investigações da empresa) para cancelar as vendas.
Discretamente, ela pegava o dinheiro do caixa logo depois e enfiava dentro da calça, ainda com a loja em funcionamento. A funcionária foi demitida por justa causa e uma ação criminal foi aberta.
Não se trata de um fato isolado, ou em comércios de pequenas cidades. Em Campinas (SP), a atendente de um caixa de supermercado de médio porte, com 20 pontos de venda, ficou devendo o aluguel de R$ 300 ao proprietário, e os dois combinaram que ela iria pagá-lo simulando compras de produtos nesse valor, pelo caixa da loja onde trabalhava, para liquidar a dívida.
Temos percebido um aumento impressionante de furtos”
— Carlos Santos
“Ela fingia que passava a mercadoria pelo leitor de código de barras, mas isso não acontecia na verdade. A questão é que, ali na hora, eles acabaram fazendo uma compra bem maior, de R$ 3 mil, e isso deu uma diferença no caixa e disparou o alerta na empresa”, diz Juliano Camargo, CEO da Nextop, que tinha a rede vítima do golpe como cliente. Camargo atua desde 1996 na área de combate a furtos no varejo.
Simular compras para ficar com o produto, ou para liquidar dívidas, e mesmo usar a senha de chefes para “apagar” vendas, e ficar com o dinheiro, é prática comum entre os furtos no setor. Supermercados e drogarias são destaques para esse tipo de crime. Mas há novas modalidades na praça, envolvendo o pix, e também outros canais de pagamento, como os caixas automáticos, que abriram brecha para o aumento dos golpes.
Cálculos estimados pela Associação Brasileira de Prevenção de Perdas (Abrappe), com apoio da KPMG, mostram que, em 2023, os furtos internos e externos (de clientes, funcionários, fornecedores e promotores) representaram, somados, 31,7%, em média, das perdas, o maior nível desde 2019.
O índice de perdas totais do comércio (que inclui erros, furtos e fraudes) também acelerou, e registrou o maior patamar da pesquisa, feita desde 2016. A taxa atingiu, em média, 1,57% da venda em 2023, alta de 0,9% sobre 2022.
Parece pouco, mas o varejo brasileiro movimentou R$ 2,23 trilhões em 2023, segundo o IBGE, então, trata-se de uma perda estimada em cerca de R$ 35 bilhões. Ao se considerar apenas a fatia projetada dos furtos (31,7%) dentro do bolo total, eles representaram pouco mais de R$ 11 bilhões.
É mais da metade do valor faturado pelo GPA, dono do Pão de Açúcar, no ano passado (R$ 20,6 bilhões) e equivale a quase a toda a venda bruta da Renner em 2023.
“Temos percebido um aumento impressionante dos furtos. É algo que anda incomodando bastante”, diz Carlos Eduardo Santos, presidente da Abrappe. Pela estimativa, esses crimes cometidos por empregados passaram de cerca de 6,8% do total de perdas em 2022 para 9,8% em 2023, e os furtos causados por pessoas de fora das redes subiram de 16,6% para 22%.
“Isso está exigindo uma atenção muito maior das lojas sobre o tema de alguns anos para cá, porque há questões sociais e raciais envolvidas, além de econômicas, e o varejo está no centro desse debate, que é complexo e difícil”, afirma.
Quando é preciso cortar, esse departamento é o primeiro a sentir”
— Juliano Cardoso
Para chegar nos números, fornecidos por associados, as redes se baseiam em dados como monitoramento de imagens por vídeo de clientes e funcionários, e evidências, como embalagens violadas logo após o manuseio de empregados. A entidade considera que são estimativas, já que os casos nem sempre geram estatística, por meio de inquéritos ou processos. Em certas situações, redes evitam processar clientes e empregados.
Isso ocorre, em parte, pelos riscos envolvidos. “Há certos furtos que criam um desgaste evitável, como os casos de clientes em situação vulverável. E a empresa não quer correr o risco de acabar exposta com toda essa visibilidade que há hoje no tema da discriminação e das questões raciais”, diz um diretor de sindicato do setor.
Pelos dados, o furto só foi menor que as perdas estimadas com “quebras” de produtos no ano passado, que atingiram 43% do total, e lideram há anos o ranking geral. Nessa conta entram itens danificados e fora do prazo de validade, duas das principais fragilidades do setor.
Ainda é preciso considerar a necessidade de as redes revisarem projetos internos de controles de perdas, incluindo os furtos, pós a pandemia. Houve cortes profundos de despesas, que afetaram o departamento de controles, e podem ajudar a explicar a alta hoje.
Como o volume vendido no varejo em geral sentiu o baque após a pandemia, e a taxa de juros subiu depois de 2021, foi preciso adequar as operações a outro nível de despesas e de dívidas, e a área de prevenção às perdas sentiu os cortes. “É aquela história, quando é preciso cortar, esse departamento é um dos primeiros a sentir, e depois a conta vem”, diz Camargo.
Outro dado do setor confirma esse cenário. Segundo levantamento da Nextop, foram 41 mil casos de furtos e fraudes no varejo alimentar de janeiro a junho, 55% acima de 2023, e o maior índice desde pelo menos, 2019, ano inicial do levantamento solicitado pelo Valor.
É mais que o dobro do verificado, por exemplo, em 2021, ano de pandemia, quando a taxa de desemprego foi a segunda maior da série do IBGE. Participam das análises 3,5 mil pontos de supermercados, parceiros da Nextop.
Outro aspecto que afeta os números são os lançamentos da indústria, e neste ano, já há expectativa que os furtos e roubos nas drogarias cresça versus o ano anterior, por conta da venda do Ozempic, para tratar diabetes. O medicamento, vendido a R$ 1,1 mil a caixa, virou uma febre entre os que querem emagrecer rápido. Neste caso, o produto tem sido mais alvo de roubo, do que furtos de funcionários, pelo aparatos de segurança em torno da Ozempic.
Para os especialistas, o avanço dos caixas automáticos nos supermercados e nas varejistas de moda, que vão ocupando as lojas ainda com controles precários em certos casos, tem pressionado as perdas das varejistas.
“As empresas falam que está indo tudo bem, que o furto é baixo, mas não é bem assim”, diz Camargo. “Já atuei em redes grandes com perda de 15% no caixa rápido, sendo que o normal seria 2%, 3%”.
Segundo ele, parte das cadeias, como o Pão de Açúcar, usa o sistema de leitura por bandeja. Nele, o cliente põe todos os itens de um lado do caixa, passa todos pelo leitor, e deposita tudo na outra bandeja. Só depois disso, o cliente pode pagar e embalar.
Outras cadeias, como a Renner e a Zara, fazem a leitura imediata de toda a compra depois que ela é depositada na bandeja. “Quanto mais difícil é fazer a compra, quanto menos amigável é o processo, maior é o risco do furto para a rede. A loja faz isso para se proteger”, afirma o CEO da Nextop, empresa com mais de 400 mil vídeos arquivados de clientes relativos a furtos.
Os dados ainda mostram como os furtos se espalharam no setor, para além de supermercados, historicamente os mais afetados.
Em 2021, nas redes de moda, as perdas não identificadas, que consideram furtos e fraudes, eram 1,10% das perdas totais, estima a Abrappe, e foram a 1,54% em 2023. Em varejo de construção, foi de 0,66% para 0,93% e no atacarejo, de 0,47% para 0,54%.
O avanço das operações de pix tem obrigado as lojas a melhorar os seus controles. A compra por meio de aplicativos, com o pagamento à distância, levou a um forte aumento de comprovantes falsificados entre mercadinhos de bairro, dizem os especialistas.
Uma desses golpes envolve o pagamento usando a conta do operador do caixa na hora de efetuar o pix. Nesse momento, o empregado fornece a sua chave, em vez de indicar a da rede. Por isso, as empresas já têm amplamente divulgado nos balcões de pagamento a sua chave do pix.
Um desses casos ficou conhecido no interior paulista, pelo abuso do comprador. Em abril, o cliente de um açougue em São Carlos (SP), comprou R$ 7,1 mil em carnes e cervejas pelo número de WhatsApp da loja. E enviou um comprovante falso de pix como pagamento. Como já tinha aplicado o golpe seis vezes, no mesmo lugar, sem nada acontecer, ele arriscou e foi retirar a compra no local. Uma funcionária desconfiou, foi checar a operação e viu o golpe. O cliente, que revendia os produtos por fora, foi preso em flagrante na retirada do pedido, segundo a Delegacia Seccional de São Carlos.
A profusão de novas modalidades desses crimes tem pesado no balanço do varejo – e no final, quem paga essa conta é o próprio consumidor. Em um ambiente de forte concorrência e de custo de dinheiro elevado, as empresas acabam repassando o baque ao comprador, ou, então, “tiram” da própria margem. Ocorre que a rentabilidade do varejo já é baixa, o que acaba sendo inevitável algum repasse para a conta do consumidor.
Esse aumento envolve um cenário mais amplo, de perdas de mercadorias em geral. O número tem crescido. As perdas incluem, por exemplo, as “quebras”, fraudes, erros administrativos e de inventário, além dos furtos
Fonte: Valor Econômico