Desafio é administrar uma grande operação on-line e a reabertura de lojas físicas que devem ter ritmo mais intenso
Por Adriana Mattos
Os próximos meses serão o primeiro grande teste de fogo do varejo digital brasileiro pós-pandemia. A crise que vem quebrando negócios físicos pelos país fez o comércio on-line “viver dias de Copa do Mundo”, para usar uma expressão de Frederico Trajano, presidente do Magazine Luiza. O problema é que aqueles dias acabaram e as empresas estão tendo que encarar agora uma realidade fora da “expertise” da maioria dos CEOs: ter que administrar uma operação on-line em grandes proporções e, ao mesmo tempo, lidar com a volta das lojas físicas num ritmo (pelos dados preliminares) acima do que se previa.
Criou-se o cenário ideal para as empresas terem que encarar uma realidade dura: quem será realmente multicanal hoje? Entre aqueles que repetem (sem cansar) aos investidores que operam com seus sites e “apps” integrados às lojas, como se estivessem em uma só sinfonia, a prova está dada.
Com a reabertura das lojas, há duas questões centrais: quem efetivamente vai operar a loja como se fosse um organismo dentro da operação digital, alimentando e sendo alimentada pelo on-line? Ou quem cederá a óbvia tentação de turbinar a venda física — na ânsia de retomar a força do canal após o baque de 2020 — com o digital apenas a reboque?
Vai ser preciso achar um ponto ideal entre os dois canais. Deve levar tempo, mas é algo que está acontecendo agora, dentro das empresas.
Obviamente que ninguém vai admitir daqui a alguns meses, em teleconferência de resultados, que deixou (só) um pouco de lado os investimentos digitais. Mas os números e certos discursos podem entregar um caminho errado sendo tomado.
Investidores terão que olhar dados da operação “retira em loja” — que mede o volume de vendas feitas on-line e retirada nos pontos. Se ela avança, é porque a base de lojas com estoque integrado ao digital está melhorando. Será preciso ver se ela cresce no mês contra mês anterior — não vale comparar com 2020.
Terão que verificar ainda como anda o projeto de unificação do marketplace (shopping digital) das empresas com as lojas. Há muitos marketplaces por aí, e parte deve desaparecer porque gerenciar isso custa ao “seller” (vendedor). Só ficarão de pé aqueles que colocarem a loja à disposição da empresa que vende no marketplace.
Outros bons indicadores são o custo de aquisição do cliente (CAC) e o NPS, que mede satisfação do cliente, ou seja, a qualidade do serviço.
O custo de aquisição do cliente precisa continuar caindo, num sinal de que loja e digital estão funcionando juntos. E o indicador de satisfação do cliente unificado dos dois canais tem que ser apresentado com mais transparência e abertamente. Se desacelerar, pode ser ruído na condução dos projetos no dia a dia das empresas.
É bom frisar que isso que não é algo para alguns anos: os consumidores e os sellers dos marketplaces estão decidindo agora onde pôr o seu dinheiro. O avanço da vacinação e o fim da pandemia só aceleram isso.
O que torna tudo mais complexo é que esse é um desses ‘chips’ de comportamento difíceis de mudar. Não só porque demanda muito investimento, mas porque exige mudança de cultura. Passa a valer a regra de que “a loja não é mais minha, é de todo mundo”, ou seja dos lojistas do meu site, dos aplicativos que passeiam pelos corredores retirando mercadorias e do cliente que exige retirar o que comprou no site na hora marcada.
Há redes falando há meses que avançaram na multicanalidade digital, mas poucas usaram a pandemia para montar esse modelo ou, pelo menos, colocá-lo em teste. Elas terão que reorganizar o desenho interno da própria loja — além de mudanças em “back office” e sistemas de armazenamento dos itens da empresa e do marketplace. E com as unidades agora operando “full time”.
“Com as equipes de loja voltando em 100% do tempo integral, como vai ficar o foco de atenção das equipes? Que projeto do on-line vai ser tocado na mesma velocidade? Será que a venda pelo WhatsApp se mantém ou volta toda para a loja de novo e no fim só vai migrar de um canal a outro?”, pondera Fernando Lunardini, diretor e sócio do Boston Consulting Group.
Isso tudo fica muito mais urgente porque, com a vida voltando ao normal, o cliente abre o app no seu celular e volta a frequentar a loja com outra cabeça. Se esse consumidor comprou no app certo número de itens e marcou de retirar o produto às 10h em determinada loja, ele quer passar e retirar exatamente o que pediu na hora acertada e em poucos segundos. Ele não quer saber se a rede agora precisa gerenciar mil lojas abertas e uma digital que vende o dobro.
A pandemia deu uma mãozinha àqueles que queriam parecer digitais, mas nunca o foram de fato. Ela deu de graça milhares de consumidores ao on-line, “batendo na porta” dos apps atrás de TV, geladeira, roupas e alimentos. Não foi preciso se mexer tanto — apesar de, sejamos justos, muita gente ter tirado pó daqueles projetos no digital guardados na gaveta.
Só que a pandemia vai trazer a conta dessa chance dada lá atrás. As varejistas terão que provar que conseguem administrar o boom do digital e as lojas físicas ao mesmo tempo, com equilíbrio e eficiência. Se achavam que a crise de 2020 havia ficado para trás, para alguns, essa crise pode estar só começando.
Fonte: Valor Econômico