Companhia fundada por executivo português vê ainda potencial para crescer 35% na região da América Latina este ano, segundo vice-presidente para a América Latina
Por Karina Souza
Jacquemus, Bottega Veneta, Céline, Gucci, Prada, YSL. Todas essas marcas de luxo carregam algo em comum: fazem parte do portfólio de 1.400 empresas disponíveis no maior e-commerce de luxo do mundo, a Farfetch. Fundada em 2008 por José Neves, executivo português, a empresa tem 14 escritórios ao redor do mundo, entrega produtos para mais de 190 países, tem 6,4 mil funcionários e viu, na pandemia, as vendas triplicarem. A receita com produtos vendidos (GMV) passou de US$ 1,2 bilhão em 2018 para US$ 4,2 bilhões em 2021. Agora que o pior já passou em termos sanitários, a companhia quer continuar com o pé no acelerador para manter o ritmo do último ano. No Brasil, a meta é crescer 45% em 2022, além de 35% na América Latina.
Antes de entender como a empresa pretende chegar lá, é necessário entender como cresceu tanto até aqui. A Farfetch opera, globalmente, em um sistema de parcerias com marcas de luxo: as empresas integram os sistemas de estoque à plataforma do e-commerce, que disponibiliza os itens no site e aplicativo. Pode parecer algo simples, mas ganha um aspecto de prioridade diante do fato de que nem todas as marcas de luxo têm e-commerce – e do fato de que as vendas de luxo representavam apenas 10% do mercado em 2018 e chegaram a 22% em 2021. Com presença nesse mercado desde 2008, a empresa concentra 6% das vendas do mercado de luxo global.
Além disso, a Farfetch tem, a seu favor, o baixo número de promoções ou de produtos vendidos com desconto. Hoje, 93% do que é vendido na plataforma é a preço cheio. Isso para uma base de 3,7 milhões de consumidores ativos, o que representa um aumento de 22% sobre 2020 — ano em que a base de clientes cresceu 46% em relação a 2019.
Esses são pontos-chave que formam as bases para o crescimento futuro, segundo Renato Guerra, vice-presidente da Farfetch para a América Latina. Hoje, ambos os locais (Brasil e demais países da região) ainda representam uma fração pequena de vendas da companhia, não sendo apresentados separadamente nos relatórios anuais da Farfetch. Hoje, os maiores mercados em termos de localização de consumidores são EUA e Reino Unido, que, juntos, somam 30% da receita da companhia, segundo informações do relatório anual. Analisando a receita por localização das lojas, o mercado de onde mais sai mercadoria é o Reino Unido (região que vendeu US$ 1,3 bilhão no último ano), seguido pela Itália, com US$ 624 milhões em 2021.
Para ultrapassar essa barreira e tornar a região mais representativa no bolo geral, o executivo destaca, sem dizer valores, que o Brasil e o México serão os principais pólos de expansão. Em 2021, o país vizinho aos Estados Unidos ultrapassou, pela primeira vez, a receita gerada por aqui, “ainda que tenha um ‘teto’ mais baixo de crescimento em longo prazo”.
No Brasil, a Farfetch trouxe em 2021 mais de 18 novas marcas para a plataforma – refletindo a maior busca por produtos nacionais – e ampliou as equipes de branding, focada em construir uma relação melhor com o consumidor local. Em plataformas digitais, especialmente no TikTok, a marca ganhou exposição por causa do trabalho com influenciadores parceiros e também pela febre do Get Ready With Me, em que criadores de conteúdo acabam mostrando as caixas da marca e mencionam como é o atendimento na plataforma digital.
Olhando para dentro de casa, um dos pilares para crescer tanto no Brasil quanto no México estará em ampliar o relacionamento com fornecedores locais (hoje, metade do que é vendido no Brasil vem do próprio país, enquanto esse percentual é de 5% no México). O esforço também condiz com o momento macroeconômico atual – petróleo mais caro, afetando o preço dos combustíveis e, consequentemente, os custos com logística.
Hoje, a Farfetch consegue trazer para o Brasil qualquer produto que esteja em um dos 190 países em que a companhia opera, num prazo de 3 a 7 dias. E, caso os clientes se arrependam ou queiram trocar o produto, a companhia também faz a coleta dos produtos diretamente na casa dos consumidores – uma raridade entre varejistas on-line de moda no Brasil.
Sustentar tudo isso não é, exatamente, tarefa fácil, do ponto de vista financeiro. A companhia tem um índice de apenas 10% de taxa de devolução, mas trabalha com um prazo de 14 dias para devolução com reembolso total (o dobro do que o direito do consumidor prevê no país). Além disso, tem 250 pessoas na equipe de atendimento ao consumidor.
“Queremos proporcionar uma experiência premium para os consumidores, à altura do que eles esperam. Sempre controlamos os custos com logística e, recentemente, também colocamos a sustentabilidade dentro desse pilar. Hoje, de 10% a 12% das entregas feitas no Brasil são com veículos elétricos”, diz Renato.
Diversificar para crescer
O cuidado em manter os custos alinhados também condiz com a venda de uma gama maior de produtos dentro do e-commerce. A partir deste mês, a Farfetch passará a entregar produtos de beleza aos consumidores nos Estados Unidos. A ideia é seguir o conceito das maisons, que têm produtos de moda e de maquiagem à disposição das consumidoras – como Dior e Chanel.
Por enquanto, a nova linha de produtos ainda não está disponível no Brasil, mas a ideia é trazê-la em um ano, segundo Renato. “Estamos estruturando a operação primeiro antes de trazer ao Brasil, mas já pensamos em formas de procurar esses fornecedores localmente também”, afirma.
No país, descontando as operações próprias das marcas para vender esses produtos on-line, a Sephora é a principal competição no mercado de luxo, também por reunir marcas famosas no ambiente on-line e em lojas físicas.
Questionado a respeito de planos para pontos físicos – afinal, maquiagem e experimentar ao vivo têm tudo a ver – Renato afirma que o público-alvo da Farfetch busca cada vez mais por experiências omnichannel, mas que ainda não há nada público a ser divulgado sobre possíveis lojas no país.
Pensando em longo prazo, a Farfetch também pode trazer para o país a vertical de tecnologia do grupo, chamada Farfetch Platform Solutions (FPS), dedicada a desenvolver operações digitais para marcas de luxo. Globalmente, a vertical teve receita de US$ 1,3 bilhão em 2021, aumento de 34% em 2021 — que veio em seguida de um aumento de 47% em 2019.
Este ano, inclusive, a FPS fez um investimento de US$ 200 milhões para uma parceria com o Neiman Marcus Group (NMG), com foco em construir o sistema omnicanal da marca e, em troca, ter os produtos comercializados no próprio e-commerce.
Também nos EUA, um exemplo do que a FPS faz está na nova flagship da Browns – com bastante tecnologia no processo de compra, em provadores e caixas, por exemplo – contribuindo com a visão que a Farfetch quer disseminar para o consumo omnicanal e que pode ser replicada na América Latina em longo prazo.
Foco em sustentabilidade
Pensando nos efeitos da operação em longo prazo, a empresa divulgou, em 2020, um conjunto de metas de sustentabilidade para os próximos dez anos. Os objetivos se concentram em quatro áreas principais: zerar ou negativas todas as emissões de carbono, promover produtos que são certificados como sendo “conscientes” e melhores para as pessoas, o planeta ou os animais; permitir que os clientes estendam a vida útil de suas roupas e reduzam o desperdício por meio de novos modelos de negócio, como revenda, doações, reparos ou feitos sob encomenda, além da compra de produtos usados; por fim, incorporar uma cultura anti-discriminatória e inclusiva na empresa.
Entrando especificamente no terceiro pilar, a empresa adquiriu em 2018 a Stadium Goods, principal marketplace de sneakers no mundo, por US$ 250 milhões. O foco desde então tem sido explorar o chamado “aftermarket”, ou seja, edições de colecionador compradas por pessoas físicas e revendidas na plataforma por algum tempo depois com uma margem alta.
No fim do ano passado, a empresa também adquiriu a Luxclusif, plataforma de venda de artigos usados. “Acreditamos no second hand, sem dúvida, mas seria necessária uma atualização tributária para importar produtos usados e entregá-los no país, ao contrário do que é feito em outros países da América Latina”, diz Renato.
São pilares que buscam certa diferenciação entre a companhia e os demais e-commerces (mesmo os proprietários das marcas de luxo) para continuar avançando ao longo o tempo. Unir o luxo à tecnologia e, mais recentemente, à sustentabilidade, não é tarefa simples — mas encarada com muito bom humor pelo executivo, que chegou à Farfetch na pandemia, depois de uma longa trajetória na Privalia.
A experiência se une ao novo momento global enfrentado pelos varejistas digitais — que enfrentam um período difícil no Brasil, especialmente os que têm capital aberto — com o foco de mostrar que a companhia portuguesa tem, sim, muito a fazer em terras brasileiras.
Fonte: Exame