Depois de anos de especulações e negativas, o Facebook coloca em prática hoje suas ambições no mundo dos serviços financeiros. A estratégia, que inclui o lançamento de uma carteira digital e o financiamento a uma nova moeda lastreada em uma reserva central e baseada em blockchain – o sistema de registro de informações por trás do Bitcoin – cria uma nova fonte de crescimento de receita para a companhia, além da publicidade, e também pode ser tornar uma outra frente de atrito com órgãos reguladores ao redor do mundo.
Batizada de Calibra, a carteira do Facebook vai funcionar dentro de seus aplicativos de mensagens, o WhatsApp e o Messenger e também como um aplicativo separado. A companhia não deu informações sobre integração com o Instagram. Ainda não está definido qual será o percentual que o Facebook vai tirar para si nas operações, mas a ideia é que as tarifas sejam baixas para estimular o uso do serviço. Inicialmente, a Calibra permitirá apenas transferências entre indivíduos. Mas o objetivo é adicionar, com o tempo, outros tipos de serviços como pagamentos de contas, compras usando QR Code, pagamento de transporte público e até empréstimos.
Estabelecida como uma subsidiária separada do Facebook, a Calibra não vai compartilhar dados financeiros de seus usuários para uso na venda de publicidade, disse David Marcus, vice-presidente de produtos de mensagens do Facebook, em teleconferência com o Valor. “Esse é um compromisso muito forte que estamos assumindo, porque vamos ter que ganhar a confiança das pessoas para ser uma opção competitiva”, disse o executivo, que deixou o comando global do PayPal em 2014 para ir para o Facebook. A separação não deve, entretanto, reduzir a temperatura das discussões sobre regulação ou divisão dos negócios da companhia que tem ganhado força nos últimos meses.
A carteira digital Facebook será lançada em 2020, depois que entrar em circulação uma nova criptomoeda proposta pela companhia: a Libra, que tem como missão ajudar na inclusão de 1,7 bilhão de adultos que estão fora do sistema financeiro global. A iniciativa, que vinha sendo desenvolvida internamente, foi convertida em um projeto aberto a outras empresas. “Se você realmente quer construir uma rede que servirá ao propósito de inclusão no mundo, não dá para ser controlado por uma empresa. Não é possível”, afirmou Marcus.
Segundo ele, até o primeiro semestre do ano que vem, quando a moeda entrar em circulação, a ideia é fazer os ajustes necessários na tecnologia para que ela não represente apenas o que foi feito pelo Facebook. “Não estamos prontos para lançar ainda, o que temos é um protótipo de blockchain que está pronto. E queremos que a comunidade ajude a construir isso”, diz.
A Associação Libra será baseada em Genebra, na Suíça, e começa a operar com 28 membros. Na lista, estão a própria Calibra e nomes como as bandeiras Visa e Mastercard; os serviços de pagamento PayPal, Mercado Pago e PayU; Uber, Spotify; os fundos de investimento Andreessen Horowitz e Ribbit Capital, e a operadora Vodafone. A meta é chegar a 100 membros em 2020. Para se associar, as empresas precisam fazer um investimento mínimo de US$ 10 milhões. Organizações sem fins lucrativos que promovem inclusão financeira estão isentas desse pagamento.
De acordo com Marcus, a maior parte dos cerca de US$ 250 milhões captados para o lançamento da associação (em torno de 90%) será usada para conceder descontos aos consumidores como forma de incentivar o uso da Libra.
Além de promover o uso da moeda e trabalhar nos avanços tecnológicos necessários para sua manutenção, a associação será responsável por uma reserva de ativos que dará lastro à Libra, a Reserva de Libra. “Pense nisso como uma cesta de ativos e moedas do FED, do Banco Central europeu, do Banco da Inglaterra, do Japão. Os melhores ativos do mundo pra prover baixa inflação baixa volatilidade e uma ótima forma de dinheiro digital para o mundo”, afirmou Marcus. Segundo ele, a reserva só atenderá a oferta e a demanda da Libra e não será capaz de transferir recursos. Sua composição exata será definida ao longo dos próximos meses.
De acordo com o executivo do Facebook, a companhia tem falado e vai continuar a conversar com os órgãos reguladores até que a Libra e a Calibra sejam lançadas ano que vem. “Seja reguladores ou bancos centrais, eles estão alinhados com a iniciativa de permitir que mais gente tenha acesso a serviços financeiros.”
As investidas de grandes empresas de tecnologia como Facebook, Google e Apple no setor financeiro têm deixado o mercado em estado de atenção por conta da escala, da percepção de marca e da frequência com que os consumidores usam os serviços dessas companhias – atributos que podem levar à substituição de nomes tradicionais por essas novas ofertas.
Em entrevista ao Valor em junho de 2018 durante o Ciab, congresso de tecnologia financeira organizado pela federação brasileira dos bancos, a Febraban, o diretor global de estratégia de serviços financeiros do Facebook, Neil Hiltz, disse que a companhia não tinha ambições de prestar serviços financeiros.
A ideia, segundo ele, era colocar os produtos da companhia como um canal de interação dos bancos com seus clientes, não replicar as atividades do setor financeiro dentro da companhia. “Nosso modelo de receita está baseado na venda de publicidade. Acredito que ainda haja muito espaço para crescer nessa área para financiar nossas ambições. Bancos são amigos”, disse Hiltz na ocasião.
De acordo com um executivo de um grande banco brasileiro que preferiu não ter seu nome revelado, a negativa do Facebook nunca convenceu. “É um movimento inevitável para as Big techs”, disse. Para ele, a escala que a companhia alcançou com seus serviços (um total de 2,7 bilhões de pessoas no mundo) lhe dá uma grande vantagem, mas não é garantia de sucesso. “Uma coisa é você oferecer um serviço em um segmento novo, desbravado. Outra coisa é você entrar em um segmento no qual as pessoas já são atendidas de alguma forma”, avalia.
Ele também diz acreditar que as diferenças culturais podem ser um empecilho para o Facebook, que costuma ter produtos com características globais e não faz muitas adaptações para atender realidades país a país. “Um sistema de pagamento que funcione nos EUA não necessariamente vai funcionar no Brasil.”
Fonte: Valor Econômico