Por Marina Spindola*
2023 mal começou e o Brasil se deparou com a quarta maior recuperação judicial da sua história. Um ano depois de registrar lucro recorde, a Americanas informou ao mercado sobre a identificação de inconsistências contábeis no valor de, pelo menos, R$ 20 bilhões. Depois, os números foram atualizados. São mais de nove mil credores e uma dívida total acima de R$ 42 bilhões. A empresa tem mais de 130 mil CPFs na sua lista de acionistas. Os 44 mil funcionários se sentem na corda bamba. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) instaurou processos administrativos para investigar executivos da companhia e também da PwC, que auditou e aprovou as contas da Americanas, de 2019 a 2022.
Uma questão chama atenção, para além do fracasso de uma empresa quase centenária, cujo controle acionário, até 2021 e durante praticamente 40 anos, esteve nas mãos da 3G Capital (Lemann, Sicupira e Telles, os três homens mais ricos do Brasil e líderes de impérios empresariais além-fronteiras). Fabio Alperowitch, da Fama Investimentos, analisa a situação não como um caso isolado e, sim, “como produto de uma cultura da fase mais hostil do capitalismo”. Ele se refere ao capitalismo de shareholder, o que busca o lucro a qualquer custo, em que o sucesso de uma empresa é medido apenas pela maximização dos dividendos aos acionistas.
Essa análise é essencial e proponho alargar um pouco mais a compreensão. As quatro maiores recuperações judiciais na história brasileira ocorreram nos últimos sete anos. E pelo menos três delas (Odebrecht, Samarco e Americanas) têm raízes e fortes conexões com valores e com a cultura empresarial pautadas pela visão de curto prazo e pela medição da performance organizacional, que leva em conta apenas o retorno ao acionista e os resultados econômico-financeiros.
A Odebrecht encabeça a lista, com dívidas de quase R$ 100 bilhões, quando pediu recuperação judicial em 2019. Em 2015, o Brasil e o mundo foram surpreendidos pelas operações policiais nas sedes das companhias e nas residências de executivos. A situação estimulou a discussão sobre a baixa efetividade das regras de compliance para inibir condutas ilegais. Foi um momento marcante nos entendimentos sobre governança e as melhores práticas para proteção dos ativos tangíveis e intangíveis das empresas.
A segunda da lista é a Oi, cuja recuperação judicial teve início em 2016, com dívidas de R$ 65 bilhões, e foi finalizada em dezembro passado. A novela ganhou novo capítulo, com o novo pedido de recuperação judicial da mesma empresa. No caso da telefônica, em síntese, a origem do fracasso cai na conta, principalmente, de uma má gestão financeira.
A terceira maior recuperação judicial brasileira, assim como no caso Odebrecht, também revela as consequências nefastas das decisões tomadas sem o devido equilíbrio entre curto e longo prazo e sem considerar a interdependência entre o negócio e os seus múltiplos stakeholders. A Samarco entrou em recuperação judicial, com dívidas de R$55 bilhões. A empresa foi a responsável pelo maior desastre ambiental do país, com o rompimento da barragem de mineração, que soterrou comunidades inteiras e impactou mais de 35 cidades de Minas Gerais e Espírito Santo. Na ocasião, o mundo passou a discutir gestão de risco sob múltiplas perspectivas. O poder público alterou legislação, e as empresas aprenderam a importância de dialogar e ouvir genuinamente os diferentes grupos de stakeholders, inclusive e, especialmente, seus colaboradores.
No caso da Americanas, quarta maior recuperação judicial, alguns dados surpreendem e alarmam. A companhia estava listada no ISE – Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3. No último relatório de sustentabilidade publicado, o então presidente comemorou o maior lucro da história da companhia, R$ 731 milhões, em 2021. E escreveu que foi um ano em que a Americanas acelerou a trajetória de atuação com impacto, seguindo pilares do ESG. Mais de sete mil jovens em vulnerabilidade foram contratados, por exemplo. O documento não traz, no entanto, que o principal executivo da companhia tinha uma remuneração 431 vezes maior do que a média da empresa. O dado é de uma pesquisa realizada em 2021, pelo especialista em governança corporativa Renato Chaves, em parceria com a FGV.
A queda da Americanas, portanto, não é mesmo um caso isolado. E ele nos revela muito mais do que falhas de gestão e de práticas empresariais. Ele joga luz no fracasso do jogo do capitalismo tal qual ele chegou até aqui e escancara as falhas sistêmicas. Expõe as próprias contradições do modo capitalista, que apontam a urgência de imaginar novas formas de fazer negócios para as empresas sobreviverem ao século 21. Alguns chamam de capitalismo de stakeholders, outros de capitalismo sustentável, capitalismo inclusivo ou consciente.
O lugar de chegada importa tanto quanto o caminho a ser percorrido. O futuro nunca esteve tão próximo e, ao mesmo tempo, tão incerto. Diante de tantas ambivalências e incertezas, a agenda ESG surge como capaz de guiar as empresas por melhores trilhas, e favorecer que lideranças equilibrem melhor o curto e o longo prazo, e persigam um propósito, uma razão de existir além do lucro. Já tomamos lições suficientes para aprender que essa jornada é tão boa para o negócio quanto para a sociedade.
* Marina Spínola é diretora de relações institucionais e sustentabilidade da FDC e conselheira do Pacto Global e Capitalismo Consciente.
Fonte: Época Negócios