O último Censo demográfico divulgado pelo IBGE revelou que 45.606.048 milhões de pessoas declararam ter pelo menos uma das deficiências investigadas na pesquisa (visual, auditiva, motora, mental ou intelectual), número que corresponde a 23,9% da população brasileira[1]. O maior contingente de população com pelo menos uma deficiência tem entre 40 a 59 anos, correspondendo a um total de 17.435.955 pessoas.
Uma das questões latentes no Direito do Consumidor envolvendo as pessoas com deficiência é como viabilizar o seu acesso ao mercado de consumo, especialmente no âmbito do comércio eletrônico, de uma forma segura. Rompendo o antigo sistema das incapacidades, o artigo 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) assegurou a todos a plena capacidade civil. Nos casos mais graves, quando há relevante comprometimento intelectual, a legislação estabelece como remédios os institutos da curatela ou da tomada de decisão apoiada.
O consumidor é reconhecido como um agente vulnerável nas relações de consumo, por força do disposto no artigo 4º, I, do CDC. A vulnerabilidade é um conceito multifacetado complexo para o qual não existe uma definição amplamente aceita[2], mas é uma concepção axiológica, ou seja, ela orienta e conforma todo o sistema de proteção e defesa formado, principalmente, com o Código de Defesa do Consumidor.
Ao consumidor com deficiência é acrescida uma segunda camada de vulnerabilidade que acentua a necessidade de sua proteção, considerando-se o conjunto de características da sua personalidade e a sua condição socioeconômica. O campo legislativo é, então, profícuo no estabelecimento de obrigações aos fornecedores de produtos e serviços, reconhecendo que a intensidade dos deveres de cuidado dos fornecedores aumenta na medida em que a pessoa do consumidor apresenta camadas múltiplas de vulnerabilidade.
Com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, também passou a ser obrigatória a acessibilidade nos sites mantidos por empresas com sede ou representação comercial no Brasil, assim como por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência[3]. É prevista, igualmente, a garantia de acesso a produtos, recursos, estratégias, práticas, processos, métodos e serviços de tecnologia assistiva (ou “ajuda técnica”) e que respeitem o desenho universal visando promover a participação da pessoa com deficiência com autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social. Com efeito, uma das primeiras formas de proteção desse consumidor especialmente vulnerável é a adoção do desenho universal de produtos e serviços, consistente na “concepção de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto específico, incluindo os recursos de tecnologia assistiva” (artigo 3º, II, Lei 13.146/2015)[4].
O Código de Defesa do Consumidor estabelece como direito básico do consumidor a obrigatoriedade de que toda informação sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem seja acessível à pessoa com deficiência (artigo 6º, III e parágrafo único, CDC)[5]. A tutela do consumidor com deficiência é acentuada também no que concerne aos crimes tipificados no CDC, uma vez que são circunstâncias agravantes à sua prática em detrimento de pessoas com deficiência mental, sejam elas interditadas ou não (artigo 76, b, CDC).
O Decreto 7.962/2013 regulamenta o CDC para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico e estabelece uma série de requisitos para os sites. São elencadas as informações mínimas que devem ser prestadas pelos fornecedores nas suas páginas na internet, tais como nome empresarial, número de inscrição no CNPJ, endereços físico e eletrônico, além dos dados relacionados à oferta do produto ou do serviços etc.
No campo do Direito Civil, as disposições sobre a invalidade dos negócios jurídicos asseguram a possibilidade de anulabilidade dos contratos eivados de vícios de consentimento. São anuláveis por erro ou falso motivo os negócios cujas declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal (artigos 138 e ss, CC); por dolo, quando há emprego de um artifício com vista a obter uma declaração de vontade que não seria emitida se o declarante não tivesse sido levado a crer em um quadro irreal dos fatos (artigos 145 e ss, CC); por coação, que vicia a declaração de vontade ante o fundado temor de dano iminente (artigos 151 e ss, CC). Também o instituto da lesão serve como uma salvaguarda aos direitos das pessoas com deficiência que contratam assumindo uma prestação manifestamente desproporcional sob premente necessidade ou por inexperiência (artigo 157, CC).
Há, portanto, uma multiplicidade de ferramentas legislativas de proteção aos consumidores com deficiência, especialmente no âmbito do comércio eletrônico. O problema é que elas não são implementadas pela maioria dos fornecedores — e a fiscalização pelos responsáveis pela defesa dos agentes vulneráveis no mercado não tem sido suficiente para reverter esse quadro. O primeiro desafio consiste, justamente, em garantir o acesso das pessoas com deficiência ao mercado, especialmente ao comércio eletrônico, que ignora as diferenças e algumas das dificuldades enfrentadas por essas pessoas. Uma pesquisa conduzida pelo movimento Web para Todos, realizada em parceria com o consórcio W3C Brasil (World Wide Web Consortium), revelou que os 15 sites de vendas mais acessados no Brasil possuem graves obstáculos para as pessoas com deficiência[6], muitos dos quais são impeditivos do acesso ao bem de consumo.
É preciso aliar aos instrumentos legislativos os instrumentos tecnológicos de proteção a esses mais de 45 milhões de consumidores. O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação) desde 2004 divulga, com atualizações regulares, o Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico[7] visando orientar os desenvolvedores de páginas na internet acerca dos cuidados necessários para assegurar a acessibilidade das pessoas com deficiência. São providências tecnicamente simples que possibilitam a navegação universal[8].
As diretrizes de acessibilidade recomendam a adaptação das páginas para, por exemplo: disponibilizar todas as funções da página via teclado, não utilizar redirecionamento automático de páginas, fornecer alternativa para modificar limite de tempo, identificar o idioma principal da página, informar o usuário sobre sua localização na página, oferecer uma alternativa em texto para as imagens do sítio, disponibilizar documentos em formatos acessíveis (inclusive para possibilitar a conversão em áudio por softwares de leitura), oferecer contraste mínimo entre plano de fundo e primeiro plano e possibilitar o aumento da letra sem prejuízo da visualização da página, possibilitar que o foco e o áudio sejam ajustados, dentre outras providências. Os atalhos de teclado, o mapa do site, a compatibilidade com os recursos de acessibilidade, a inexistência de estratégias de segurança inacessíveis (Captcha, por exemplo), o controle do tempo de permanência da página, são imperiosos para assegurar a inclusão dos consumidores com deficiência no mercado de consumo.
É espantoso que, apesar da facilidade de implementação dessas orientações técnicas, o número de plataformas na internet não adaptadas às pessoas com deficiência seja tão elevado. As benesses para os fornecedores que se atentarem para a pluralidade de consumidores, muito mais do que evitar a aplicação das sanções legais, incluem o desbravamento de um expressivo mercado de consumo que é hoje praticamente ignorado, apesar de representar quase 24% da população brasileira. E com o aumento da faixa etária da população esse número tende a crescer. Além de uma atitude de cidadania, a efetiva abertura do comércio eletrônico para os consumidores com deficiência é uma relevante oportunidade para novos negócios.
[1] BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas – IBGE. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em: . Acesso em: 1.nov.2018.
[2] KAPROU, Eleni. Protecting vulnerable consumers from aggressive commercial practices: The case of the European Unfair Commercial Practices Directive. 16th Conference of the International Association of Consumer Law (IACL Conference), Porto Alegre, 2017.
[3] Lei nº 13.146/2015, Art. 63. É obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no País ou por órgãos de governo, para uso da pessoa com deficiência, garantindo-lhe acesso às informações disponíveis, conforme as melhores práticas e diretrizes de acessibilidade adotadas internacionalmente. § 1º Os sítios devem conter símbolo de acessibilidade em destaque.
[4] Na redação do Art. 8º, IX, Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004, o desenho universal consiste na “concepção de espaços, artefatos e produtos que visam atender simultaneamente todas as pessoas, com diferentes características antropométricas e sensoriais, de forma autônoma, segura e confortável, constituindo-se nos elementos ou soluções que compõem a acessibilidade.” (BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004, regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências).
[5] “Art. 6º São direitos básicos do consumidor: […] III – a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; (Redação dada pela Lei nº 12.741, de 2012) […] Parágrafo único. A informação de que trata o inciso III do caput deste artigo deve ser acessível à pessoa com deficiência, observado o disposto em regulamento. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015).”
[6] Veja mais em: . Acesso em 1.nov.2018.
[7] BRASIL. Modelo de Acessibilidade em Governo Eletrônico. E-MAG. Versão 3.1. (2014) Disponível em: . Acesso em: 1.nov.2018.
[8] Em 2007, a Portaria 3, de 7 de maio, institucionalizou o eMAG no âmbito do sistema de Administração dos Recursos de Informação e Informática – SISP, tornando sua observância obrigatória nos sítios e portais do governo brasileiro.
Fonte: Panorama Farmacêutico