Há várias propostas sendo discutidas, e cada uma delas pode afetar positivamente ou negativamente os negócios online no país
Por Dinalva Fernandes e Gustavo Freitas
Desde que foi anunciado como o ministro da economia no governo de Jair Bolsonaro, o economista Paulo Guedes definiu três pilares para a recuperação econômica do Brasil: reforma da previdência, desestatização de empresas e reforma tributária. Passados dois anos desde que assumiu o cargo, o Planalto conseguiu a aprovação do primeiro pilar, mas, atingido pela pandemia do novo coronavírus que assolou o mundo, precisou frear as outras duas propostas perante medidas emergenciais, como o auxílio de renda e os incentivos fiscais.
Ainda assim, em agosto do ano passado, Guedes enviou a sua proposta de reforma do sistema tributário vigente. Entre os principais pontos destacam-se três: a unificação tributária do PIS Cofins, ICMS, IPI e ISS na chamada CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços); o aumento da alíquota do imposto de renda; e a criação de impostos sobre os pagamentos que acontecem no comércio eletrônico. Este último recebeu o apelido popular de “imposto digital”. Os críticos de Paulo Guedes foram além, intitulando o novo tributo de CPMF do e-commerce, alusão ao imposto criado no governo de Fernando Henrique Cardoso e que incidia praticamente em todas as movimentações bancárias.
Diante da crítica popular, o ministro chegou a chamar de ignorância a comparação da proposta do imposto digital. “As pessoas, inadequadamente, por maldade, por ignorância, falam que isso é nova CPMF, mas não há problema, o tempo é senhor da razão”, disse durante audiência da Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária, em agosto do ano passado.
A CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transação de Valores) chegou a taxar até 0,38% das operações bancárias e, ainda que provisória, perdurou durante dez anos, só sendo extinta em 2007.
Para Paulo Zirnberger de Castro, Country Manager da Sovos no Brasil, o que vai determinar se o imposto digital é uma nova CPMF ou não é a forma como ele será aprovado pelo Congresso. O especialista tributário lembra que há várias propostas sendo discutidas, e cada uma delas pode afetar positivamente ou negativamente os negócios no país. “Se aprovada a CBS, que consolida impostos federais, haverá aumento de tributos para setores como os de serviços, oferecidos por meios digitais. Se, adicionalmente, caminhar na intenção do governo, será criado um imposto sobre transações digitais ou até mesmo um tributo semelhante à CPMF”, explica.
Para tentar impedir a desaprovação da reforma tributária no Congresso, o Ministério da Economia já avalia o envio da proposta de imposto digital fora da reforma. Assim, esta seria votada posteriormente, sem atrapalhar a criação da CBS.
CBS: o lado ruim e o lado bom para o e-commerce
Pela proposta enviada pelo Ministério da Economia ao Congresso, o “imposto digital” sugere a cobrança de 0,2% em pagamentos realizados em lojas virtuais, marketplaces e serviços de streaming, como Netflix e Amazon Prime. “A cada venda realizada na Internet, deverá ser recolhido aos cofres públicos cerca de 0,2% do valor do bem ou serviço. Com isso, entendo que ocorrerá um impacto relevante, devido à oneração da operação via e-commerce, já que, com a incidência desse novo tributo, o comerciante irá repassar os valores aos consumidores, o que poderá resultar na diminuição das vendas e, consequentemente, desacelerar a evolução do comércio eletrônico brasileiro”, defende o advogado especialista em área tributária, Lucas Querido.
Guedes aponta que, como a economia é cada vez mais digital, é necessária e justa uma tributação específica ao setor. “O imposto digital é uma coisa para nós conversarmos à frente. Mas é claro que a economia é cada vez mais digital. Netflix, Google, todo mundo vem aqui, e o brasileiro usa o serviço. São muito bem recebidos, são belíssimas inovações tecnológicas, mas ainda não conseguimos tributar corretamente”, disse o ministro, defendendo que essa taxação será principalmente sobre os mais ricos. “O rico é quem mais faz transação, é quem mais consome serviço digital, serviço de saúde, serviço de educação, lancha, barco, caviar, e está isento, se escondendo atrás do pobre”.
O impacto maior deverá ser nos marketplaces, que costumam realizar mais transações interestaduais. “Com a instituição de tributos cumulativos, todos os setores serão afetados, já que haverá incidência por ocasião da realização dos pagamentos ou das transações bancárias. Ou seja, todos os setores estão interligados pelas transações comerciais e são responsáveis pelos custos e tributos envolvidos em tais processos. Sem contar com a responsabilidade solidária, por meio da qual todos efetivamente são responsabilizados caso haja algum desvio nas relações de pagamentos de tributos. Sob essa ótica, os marketplaces são grandes acumuladores de transações para múltiplos estados e, portanto, potenciais focos para fiscalização”, explica Zirnberger de Castro.
Por outro lado, a CBS pode gerar uma grande economia nos gastos com profissionais e tempo nas decisões tributárias. Segundo relatório do Banco Mundial (Doing Business 2019), o Brasil é o país onde mais se gasta tempo calculando e pagando tributos. A cada 200 funcionários, um trabalha na área contábil. A maior parte desse tempo é dedicada ao pagamento dos tributos sobre consumo, em especial do ICMS interestadual.
Hoje, para realizar a venda interestadual, o lojista online tem que conhecer a legislação e a alíquota do ICMS de 26 estados e do Distrito Federal, mais as regras da Emenda Constitucional 87/2015 e o Convênio ICMS 93/2015, que diferenciaram o recolhimento do ICMS quando as vendas interestaduais são destinadas a consumidor final, razão pela qual se aplicam especialmente ao e-commerce. A unificação de tributos e alíquotas acabará com essa multiplicidade de leis e alíquotas, reduzindo o tempo utilizado com cálculo e pagamento de tributos, o que permitirá ao e-commerce empregar mais recursos e pessoas na atividade de vendas, reduzindo multas e processos por recolhimentos equivocados, o que trará mais segurança ao empresário, como esclarece o advogado tributarista Ricardo Treu.
“O marketplace que apenas presta serviço de ligação entre vendedor e consumidor e, por isso, recolhe apenas o ISS ao município onde está localizado, se beneficiará somente da unificação dos tributos federais com o municipal. É a mesma simplificação que ocorre quando uma empresa adere ao Simples. Aquele que além de prestar o serviço de intermediação também realiza venda interestadual de mercadoria, tal como os lojistas, se beneficiará da simplificação do ICMS interestadual”, completa Treu.
E para quem também tem loja física?
Um dos principais argumentos de quem defende o imposto digital está na desigualdade de tributação entre varejistas físicos e online. O maior problema na questão, porém, é que cada vez mais o varejo é multicanal. Se o e-commerce já apresentava um crescimento acima de dois dígitos ano a ano, isso se solidificou ainda mais durante a pandemia, com o comércio eletrônico se tornando praticamente obrigatório para sobrevivência nesse meio.
Dessa forma, especialistas apontam para o risco de o imposto digital ter um efeito cascata que dificulte as ações de todo o varejo e, consequentemente, pese também no bolso do consumidor.
“Toda bitributação desestimula vendas ou qualquer outra operação econômica que esteja sujeita a ela. O melhor cenário seria não termos o imposto digital. Porém, se ele vingar, o governo deveria estabelecer a impossibilidade de tributar duas vezes o mesmo estabelecimento, quando ele disponibilizar o produto nas duas lojas, física e virtual. Caso contrário, as lojas que desejarem realizar vendas físicas e online deverão unificar seus estoques, a fim de evitar a circulação da mercadoria entre a loja física e a virtual e, consequentemente, a bitributação”, exemplifica o advogado Ricardo Treu.
Em julho de 2020, quando a ideia do imposto digital começou a circular no Congresso e na mídia, a ABComm (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico) emitiu uma nota de repúdio em que chama a atenção para o “efeito cascata” que essa nova tributação pode gerar.
Nas palavras da associação, um novo tributo deve gerar aumento nos custos de produção e, consequentemente, nos preços dos produtos . “Pertencemos a um setor que nunca recebeu incentivos fiscais e nem planos de investimentos volumosos do poder público, a grande maioria dos empreendedores do comércio eletrônico é formada por micro, pequenos e médios empresários, que pagam uma alta carga tributária, se esforçam diariamente para manterem seus negócios diante de uma legislação tributária complexa e desigual. Reconhecemos que algumas propostas de modernização econômica implementadas e debatidas pelo atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, podem promover o crescimento do setor, porém, se a proposta de criação do imposto sobre pagamentos eletrônicos se concretizar, nos posicionaremos contrários”, diz trecho da nota.
O ponto levantado pela ABComm faz sentido, segundo os especialistas ouvidos pelo E-Commerce Brasil. Para Paulo Zirnberger de Castro, por exemplo, a criação do imposto digital pode causar um problema inflacionário no online, mas longe de retrair o setor. “Entendo que pode haver uma certa desaceleração, principalmente na venda de produtos que não sejam de consumo, como materiais de construção, vestuário, entre outros. Creio que, do ponto de vista econômico, esse tributo poderá pressionar índices inflacionários, porque efetivamente será repassado no preço. No entanto, não vejo esse encargo como um fator de retração das vendas, apenas deve inibir a velocidade da alavancagem da venda por e-commerce, que continuará crescendo, mas em menor velocidade”.
Castro ainda lembra que é possível evitar o “efeito cascata” citado pela ABComm, desde que o imposto digital esteja diretamente ligado à redução de outras tributações. “Para evitar a incidência em cascata, seria ideal que o IBS fosse um tributo não cumulativo, conforme previsto em sua proposta. Cabe ressaltar que, adicionalmente, a redução do número de tributos e a simplificação são mandatórias”.
Ainda que o imposto digital já gere muita discussão e posicionamentos, ele ainda está longe de sair do papel. A reforma tributária sequer saiu do debate na Câmara dos Deputados. Depois, se aprovada, ainda precisa ser levada ao Senado e à sanção presidencial. Só depois a tributação online deve começar a ser debatida. As projeções políticas dão conta de que isso não aconteça antes do segundo semestre deste ano.
Fonte: E-Commerce Brasil