Muito do sucesso da Droga Raia é relacionado à automação de estoque e eficiência operacional. Mas nada disso faria sentido sem um elemento fundamental: o cuidado com as pessoas.
Minha atuação á frente da Droga Raia foi pautada por três fases distintas. Primeiro foi a “lógica”, de processos de automação de estoque. Depois, veio a “psicológica”, em que priorizamos a gestão de pessoas e por fim a “estratégica” com o objetivo da conquista de uma liderança verdadeiramente sustentável.
Recentemente, participei do Encontro dos Empreendedores da Endeavor. Foi uma bela oportunidade de trocar ideias e compartilhar experiências com os jovens empreendedores, que trazem uma energia e uma vontade de realizar contagiantes. De minha parte, procurei partilhar um pouco do que aprendi ao longo dos trinta e cinco anos que vivi à frente da Droga Raia.
Procurando soluções para um negócio difícil
Sou engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, mas desde cedo me envolvi no negócio de farmácias da minha família. Meu pai havia comprado a empresa, cujas farmácias em sua maioria levavam o nome Droga Pan. Naquela época, nos anos 70, o varejo de medicamentos no país passava por momentos difíceis, com rentabilidades muito baixas em função de controles de preços e forte presença do atacado na intermediação com a indústria.
Entrei na empresa em 1977. Cuidava das tarefas mais simples, mas o varejo era quase nada profissionalizado. Um dos nossos grandes problemas era o estoque: tínhamos produtos em excesso nas lojas, sofrendo com validades vencidas. Precisávamos aumentar o giro dos estoques. Os lucros da empresa apareciam sempre nas prateleiras e a empresa carecia de caixa para crescer.
Então, uma luz se acende quando os primeiros computadores passam a ser fabricados no Brasil. Ali, constatamos a oportunidade de transferir a inteligência da gestão de estoques das filiais para administração central. Era um processo de automação que se iniciava, e que marcou um turning point para a empresa.
O centro de distribuição, o primeiro que montamos, associado à reposição semiautomática dos estoques propiciou uma forte redução dos níveis de estoque de lojas, gerou recursos e trouxe crescimento.
Do lógico para o psicológico
Assim, entre 1980 e 1985, conseguimos triplicar a empresa, indo de 7 para 21 lojas. A partir de 1986, a automação se intensifica: com o surgimento dos terminais de PDV, pudemos reduzir o volume de estoque de 120 para 60 dias. Essa automação foi a grande estratégia da empresa na época, dando-lhe padrões e crescimento, além de ganhos de escala e um posicionamento mais sólido. Ao final da década tínhamos 35 lojas, cinco vezes o número com o qual havíamos iniciado a década.
Bem, você pode se perguntar o que isso tem a ver com gestão de pessoas. No nosso caso, tem tudo a ver, porque foi o processo de automação — essencialmente lógico — que nos permitiu dar início a um processo essencialmente psicológico, centrado nas pessoas.
Entendemos que não seríamos os melhores se buscássemos apenas ter o melhor preço. Estaríamos na ponta se tivéssemos os melhores funcionários, se fôssemos a marca mais querida. Constatamos a importância de nossas lojas serem “abraçadas” pelas comunidades em que estavam inseridas e que o importante era que os clientes viessem não pelos custos, mas pela oferta completa de valor.
Olhando o passado para entender o presente e projetar o futuro
Começamos então um longo processo dirigido à cultura organizacional. Estudamos o passado da empresa para entender os valores que haviam nos levado até ali, definimos o posicionamento da marca, elaboramos programas de treinamento para desenvolver funcionários e trouxemos jovens com segundo grau completo, com muitos sonhos, mas que não tinham dinheiro para fazer uma faculdade e nem experiência para ingressar no mercado de trabalho.
Nesse contexto, criamos um plano de carreira com regras muito claras. Isso surtiu ótimos efeitos para a marca, porque os jovens entravam com forte aderência à cultura focada no cuidado com as pessoas. Isso facilitou o envolvimento de quem entrava e fortalecia o de quem já estava lá.
Foi uma evolução natural do processo — como afirmei, do lógico para o psicológico. Com a automação dos anos 80, conseguimos reduzir custos e estoque; e com o resgate e disseminação da cultura nos anos 90 passamos a colocar as pessoas em primeiro lugar, tanto clientes quanto funcionários, dando assim um passo decisivo para o ingresso no grupo das empresas candidatas a consolidação do mercado.
O conceito de relacionamento antes da venda surgiu nessa época. E permanece até hoje. Explico: para nós, não importa o quanto será vendido, mas sim quantos relacionamentos teremos. Queremos encantar as pessoas.
O conceito da relação de troca com nossos colaboradores veio junto: não importava o tempo de permanência de cada colaborador na empresa (o varejo tem uma característica de alta rotatividade): importava sim que cada um saísse melhor do que havia entrado. E isso era uma responsabilidade que eu assumia em todos discursos que fazia junto a meus colaboradores.
O descompasso em relação ao sonho
Chegamos aos anos 2000 entre as três primeiras do mercado — e aí era o momento de enfrentarmos o grande desafio por que passam as empresas familiares: a sucessão.
Durante as duas décadas anteriores, eu havia conduzido a empresa tendo meus dois irmãos como sócios e parceiros de um grande sonho: o da construção de uma empresa líder e perene.
Passados mais de 20 anos, era natural que nossas prioridades sofressem mudanças. Entendemos que nesse instante seria fundamental que que sentássemos à mesa e discutíssemos os caminhos futuros com muita clareza e muita verdade, colocando sempre a empresa em primeiro lugar.
Ficou claro em nossas discussões que continuávamos a compartilhar de nosso sonho, porém com intensidade e disposição a sacrifícios diferentes, o que é perfeitamente natural em uma sociedade.
Poderíamos perfeitamente ter dito: “vamos parar por aqui?”. Mas, não; nós queríamos continuar a construção, ter o melhor negócio de farmácia do país, e até fora dele. Decidimos então pela saída de meus irmãos, abrindo espaços para uma nova geração, a de seus filhos, que chegava contaminada pela paixão dos pais e uma formação acadêmica muito forte.
Profissionais e familiares
Fixamos um conjunto rígido de regras que passava, entre outras obrigações, por trabalhar fora da empresa pelo período mínimo de três anos e concluir o mestrado fora do país. Um a um vários desses jovens foram aceitos por mim na empresa.
Veio então um dos maiores desafios de minha carreira à frente da empresa: compor o grupo de líderes, sem perder a competência dos profissionais que haviam ajudado a trazer a empresa até aquele patamar, mas sem perder a competência estratégica da nova geração, brilhante e avançada em seus conceitos.
Da saída de meus irmão em 2002 à tentativa frustrada de uma abertura de capital em 2007, posso dizer que, se de um lado tive com o jovens entrantes um aprendizado no plano estratégico maior que o que havia tido em toda minha carreira, por outro lado, minha incapacidade de lidar com a paixão e a motivação desse mesmo grupo me levou a cometer erros que por muito pouco não destruíram a empresa.
Hoje, dez anos após o término desse período, tenho claro que a mesma paixão que foi determinante para trazer nosso sonho até aqui foi a grande causa dos tropeços que sofremos nesse período. Avançamos a passos largos demais, promovemos movimentos de saída de nosso mercado de origem cedo demais, criamos um arsenal estratégico fantástico mas quase sempre descolados da capacidade de assimilação das nossas lojas, o verdadeiro palco do nosso negócio.
Um momento desesperador
A consequência de tudo isso foi uma tentativa acelerada de abertura de capital em 2007; assumimos pela primeira vez em nossa história recente em elevado endividamento para executar um plano de negócios por demais arrojado e com um plano de crescimento de lojas cujos impactos da operação foram totalmente desprezados.
O resultado foi que o IPO não saiu. E nos vimos com uma dívida enorme em uma conjuntura econômica que, em 2008, era bem preocupante. A saída foi realizar uma ampla reestruturação, e a partir daí trilhar o caminho que deveria ter sido trilhado antes.
Qual? Administrar a dívida, em primeiro lugar. Não conseguiríamos fazer isso sem fundos de investimento. E aqui também entram lições que considero importante para o campo da gestão de pessoas, sobre relações com fundos. Acabamos trazendo dois fundos. E o convívio foi de grande valia para nós.
Trouxemos fundos que acreditavam de fato na empresa e na gestão, não impuseram regra alguma e olhavam a gestão num horizonte de longo prazo, da mesma forma que nós olhávamos.
Ajustamos nossa governança, com a operação efetiva de comitês e consequente apresentação e discussão sistemática dos resultados e dos projetos de desenvolvimento.
Recolocamos o trem nos trilhos; alongamos e reduzimos gradativamente nossa dívida e, ao mesmo tempo, mantivemos um plano de crescimento ambicioso mas com impactos administráveis para a operação da empresa.
No final de 2010, dois anos após a entrada dos fundos, conseguimos abrir nosso capital numa arrojada investida se considerarmos o baixo apetite dos investidores à época, mas com muita segurança com relação às promessas que fizemos a cada apresentação por ocasião do road show de abertura do capital.
Seis meses depois, mesmo com toda a paixão que carregava e carrego até hoje, e mesmo com os abundantes recursos financeiros à mão para finalmente conduzir a empresa ao topo, entendi que a razão deveria prevalecer sobre a paixão. A possibilidade de uma fusão com a nossa principal concorrente elevaria em muito a rentabilidade pelos ganhos de sinergia e aumentaria as chances de perenização da empresa com uma robustez muito maior no mercado de capitais.
Assim, encerrei minha carreira de CEO na Droga Raia. Hoje, como Presidente do Conselho da nova empresa, continuo sonhando mais alto ainda, na busca de fazer da Raia Drogasil não só uma empresa líder como hoje ela é, mas uma empresa que acima de tudo seja referencia em desenvolver gente para cuidar de gente.
Fonte: Startupi