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A possibilidade de receber ganhos estratosféricos por meio de jogos simples que estão ao alcance de um clique no celular já transformou milhões de brasileiros em adeptos das apostas on-line, as populares bets. Legalizado de forma precária desde 2018, esse novo mercado alcançou rapidamente um patamar tão expressivo que já causa preocupação tanto na iniciativa privada quanto no poder público. Levantamento da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), de junho, mostra que mais de um terço (38%) dos brasileiros já se arrisca nessa prática e 63% comprometem o seu orçamento por conta do novo hábito (veja o quadro). A rápida expansão e suas consequências negativas assustam porque o fenômeno, ao que parece, ainda está longe do seu ápice.
Um exemplo da efervescência do setor pôde ser visto na terça-feira 20, quando terminou o prazo do governo para que empresas manifestassem interesse em explorar o jogo de forma regulamentada no Brasil a partir de janeiro de 2025. Nada menos que 113 companhias, incluindo a Caixa Econômica Federal, fizeram pedidos de outorga. Cada uma terá de pagar 30 milhões de reais ao governo pela licença, o que significa mais de 3 bilhões de reais aos cofres da União. A permissão para jogos de cota fixa no Brasil — aqueles em que o apostador sabe quanto vai ganhar se acertar — foi dada em 2018 pelo presidente Michel Temer, mas a lei precisava de regulamentação, o que só ocorreu com Lula, no final de 2023. Até hoje, as bets que atraem brasileiros — e inclusive investem pesado em propaganda na TV e apoio a grandes clubes de futebol — têm sede fora do país, não pagam impostos e não cumprem exigências mínimas de responsabilidade com o usuário. Algumas modalidades, inclusive, são ilegais, como o popular “Jogo do Tigrinho”, que mesmo assim aparece com frequência assustadora nos celulares dos brasileiros.
Diante do sucesso inegável das bets, o governo caminha na linha tênue entre permitir a expansão da atividade e estabelecer limites a ela. A nova regulamentação vai exigir que o apostador informe sua renda mensal, para que, a partir disso, seja fixado um comprometimento máximo com jogos. Também haverá um mecanismo de controle de tempo do usuário no aplicativo. Em outra frente, os ministérios da Fazenda e da Saúde estão criando um grupo de trabalho conjunto para propor medidas que reduzam os efeitos colaterais do envolvimento com bets, em especial o desenvolvimento de dependência mental em relação à prática. “O limite para a doença é a perda do controle”, diz o médico Rodrigo Machado, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP. O protocolo de tratamento para uma pessoa viciada em jogos de azar é semelhante ao de um dependente químico: exige a intervenção multidisciplinar de equipes da psicologia e psiquiatria, frequentar grupos de apoio e, às vezes, fazer uso de medicação controlada. Um ponto a ser discutido é a absoluta falta de estrutura da rede pública para lidar com o novo problema.
Mais sensível à pressão de grupos organizados, o Congresso ensaia forte resistência à tentativa de uma expansão ainda maior da jogatina. O principal alvo é o PL 2234/2022, que libera cassinos, bingos, corridas de cavalos e outros jogos de azar. O tamanho da oposição ficou claro na votação na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em junho, onde a proposta foi aprovada por 14 votos a 12. A reação mais enérgica vem da bancada evangélica, incentivada por líderes religiosos como o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, que esteve na votação da CCJ para pressionar os parlamentares. “Qual é a cadeia produtiva do jogo? O jogo legal não vai inibir o ilegal. Vão usar para lavar dinheiro”, questiona Malafaia. A resistência, no entanto, vai além da bancada da fé. “Não sou puritano nem religioso, mas quem joga vai perder, e muito, até ganhar”, diz Plínio Valério (PSDB-AM), que votou “não” na CCJ. O diagnóstico do senador encontra respaldo nos dados. Economistas do Itaú divulgaram um estudo, no último dia 13, mostrando que os brasileiros já gastaram 24 bilhões de reais com esse tipo de aposta, mas receberam em prêmios apenas 200 milhões de reais.
O impacto das bets no mercado é avassalador. A estimativa do setor de consumo é de que as apostas movimentem 130 bilhões de reais por ano, o que dá 5% de tudo o que circula no varejo brasileiro. O percentual já equivale ao de setores importantes, como os de materiais de construção, lojas de departamentos e food service. “Esse segmento das bets ainda não cresceu tudo o que pode crescer. E tem nos assustado pelo volume”, afirma Eduardo Terra, presidente da SBVC.
O Brasil tem uma relação de amor e ódio com as apostas. Nos anos 1930 e 1940, o país viveu a era de ouro dos cassinos. Estima-se que, do Rio de Janeiro, capital nacional, a estâncias turísticas no interior, havia mais de setenta em operação. Tudo acabou em 1946, quando o presidente Eurico Gaspar Dutra, influenciado pela primeira-dama, Dona Santinha, fervorosa católica, proibiu os jogos de azar. Desde então, as apostas ilegais só avançaram, como o jogo do bicho, tão popular que deu origem à expressão “deu zebra”. Agora, o setor ganha novo impulso, e a legião de milhões de adeptos que arrastou em pouco tempo mostra que a expansão está longe do fim. A regulamentação e a contenção dos excessos, mesmo que tardias, virão em boa hora. Essa, sim, é a melhor aposta.
Fonte: Veja