Ações judiciais movidas por sites de varejo e ‘streaming’ de vídeo aceleram durante a pandemia
Por Adriana Mattos
Levantamento do Valor no Tribunal de Justiça de São Paulo mostra que cresce o número de casos sobre direito de propriedade industrial no ambiente digital, com ações envolvendo plataformas de comércio on-line e de “streaming”. Advogados entendem que, com o forte avanço dos negócios nesses segmentos, e a acirrada disputa por fatias de mercado, o aumento desses litígios entre grandes marcas está apenas no começo.
Além dos casos antecipados pelo Valor no mês passado, em que Magazine Luiza e Via se processam mutuamente por questões relativas à propriedade das marcas, novas ações envolvem o KaBuM!, que acionou judicialmente a Amazon Brasil e também a Loja Integrada, uma das maiores administradoras de sites de pequeno porte no país.
Esse movimento está no começo, alavancado por forte avanço dos negócios e disputa por mais consumidores
Além disso, o instituto e escola argentina Mausi Sebess, que diz ser dono da marca MasterChef, abriu recentemente ação contra a Amazon no país pelo uso do nome em produto no “streaming” de vídeo.
A empresa mais atuante envolvendo ações sobre propriedade da marca no varejo digital é o Magazine Luiza. Há acusações mais duras surgindo, inclusive de uso de domínios na internet, no caso do KaBuM! – controlado pelo Magazine desde 2020 -, em sites de terceiros, já com indícios de ilicitude, segundo análise prévia da Justiça.
O Valor levantou, no site do TJSP, processos cujos réus ou autores, nos últimos dez anos, eram as principais plataformas locais – Mercado Livre, OLX, Amazon, AliExpress, Shopee, Magazine Luiza, Americanas e Via. Entre 2012 e 2018, há apenas um processo entre grandes plataformas relativos a uso de marca, da OLX contra o Facebook, de quatro anos atrás.
Mas desde 2020, já são cinco processos nos quais uma das partes são empresas líderes ou com forte presença local – Magazine contra Via, e vice-versa, as duas ações requeridas pelo KaBuM!, além do instituto e escola Mausi Sebess contra o Amazon Prime.
O KaBuM!, em ação de novembro passado, acusa a Amazon de usar o Google para atrair a sua clientela. Afirma que, quando o cliente pesquisa a palavra KaBuM! no Google, é o link patrocinado da Amazon que primeiro recebe destaque. Os links são comprados em leilões de palavras-chave do Google. O KaBuM! pediu liminar para que a Amazon retire todos os anúncios através dos links junto ao Google e a qualquer outra plataforma.
A Justiça atendeu ao pedido de tutela de urgência, solicitado no fim de 2021, pelo risco de dano imediato, justificando que o uso da marca, no buscador, tem conotação comercial, o que fere inciso do artigo 132 da Lei de Propriedade Industrial (LPI). Ainda não foi julgado o mérito do caso.
“Alguém paga o Google para, sempre que se realizar uma pesquisa no buscador por certas palavras [inclusive marca alheia], aparecer o seu site num anúncio antecedente a quaisquer outros, inclusive o site oficial da marca”, escreveu na ação o juiz Luis Felipe Bedendi, da 1ª Vara Empresarial de São Paulo. “Tem-se, aí, o uso de marca alheia numa espécie de publicação, que é a digital”. Procurada, a Amazon informa que não comenta ações judiciais.
É a mesma alegação dos processos atuais envolvendo Magazine Luiza e Via (dona das redes Casas Bahia e Ponto). A primeira processa a segunda desde o fim de novembro, alegando que a concorrente usa mecanismo de busca do Google para desviar tráfego para a Via. A dona da Casas Bahia faz a mesma acusação contra o Magazine em outra ação, aberta apenas alguns dias depois. Isso ocorreu às vésperas da Black Friday de 2021. Ambas obtiveram as liminares e os casos seguem na Justiça.
Quando um potencial cliente buscava as palavras “Magalu” ou “Magazine Luiza”, era a loja virtual da Casas Bahia ou do Ponto que aparecia inicialmente como links, diz a rede. A Via, por sua vez, diz em seu processo que o Magazine faz o mesmo, por meio de compra de palavras nos leilões de anúncios do Google.
Em outro litígio, em andamento há apenas três semanas na 2ª Vara Empresarial de São Paulo, o KaBuM! alega que sites foram sendo criados pela empresa Loja Integrada com o nome da sua marca neles. Na segunda-feira passada, a Justiça atendeu ao pedido de tutela de urgência para retirada dos anúncios.
Uma pesquisa sobre as críticas ao KaBuM! no site Reclame Aqui mostra consumidores afirmando ter comprado produtos em lojas com o nome do KaBuM! em endereços de sites, e solicitando ajuda da empresa para resolver problemas de entrega. “Tem um site falso se passando pelo Kabum! e usando inclusive o logo igual. Cuidado!”, escreveu um consumidor no Reclame Aqui, em agosto passado.
O site citado era kabu meirelli.lojaintegrada.com.br – hoje o endereço está bloqueado. Outro mencionado por clientes e fora do ar agora é kabumata cado.lojaintegrada.com.br/. Ainda há reclamações de clientes junto à própria Loja Integrada no Reclame Aqui. A empresa responde aos clientes informando que tira os sites do ar após tomar conhecimento do fato.
Segundo a juíza do caso, Renata Maciel, a liminar foi concedida porque o KaBuM! mostrou ser alvo de ações propostas por consumidores lesados pela página bloqueada. Em seu site, ao citar seus serviços a lojistas, a Loja Integrada diz que oferece gratuitamente endereço virtual para lojistas através do subdomínio temporário “sualoja.lojaintegrada.com.br”.
Procurada, a empresa informa, em nota, que segurança é prioridade. Diz que trabalha “incessantemente para impedir a criação de lojas fraudulentas”, com equipe para detectar fraudes, desligando lojas suspeitas antes das marcas mencionadas serem afetadas em menos de 24 horas. Afirma que, no termo de uso, há uma proibição sobre publicar ou transmitir conteúdo que infrinja patentes, marca ou dirito autoral, e que vem colaborando com as autoridades.
Esclarece também que a equipe de produto e engenharia aumentou em 400% em 2021, com progressos implementados e está “sempre testando e implementando novas formas de impedir violações”, e fala ser uma alternativa para evitar que empresários fechem suas portas, escreveu na nota Pedro Freitas, CEO da Loja Integrada.
Sobre o tema, o KaBuM! informa que as ações foram movidas pelo uso indevido e não autorizado da marca, e que “a solidez e referência” do nome foram utilizados para induzir erroneamente o cliente de que o KaBuM! seria o vendedor destes produtos em suas plataformas de “marketplace”.
No setor de “streaming” de vídeos – que, como os “marketplaces”, também se expandiram rapidamente durante a pandemia – há um caso em andamento, desde o fim de 2020, que tem como réu o Amazon Prime, e é requerido pela escola Mausi Sebess, da Argentina. Esta alega que tem o registro do nome “Master Chef” no país, e não autorizou exposição da série de culinária na plataforma. Em outro processo, mais antigo, da Mausi contra a Endemol Shine Brasil, esta alega ser a dona. O Amazon Prime não comenta o tema.
“A discussão da propriedade [ industrial] sempre existiu muito mais no ‘mundo real’, mas ela vem migrando, nos últimos anos, para o mundo virtual, com o avanço acelerado do mercado digital”, afirma o advogado Marco Antonio de Oliveira, da Matos & Associados, que representa a Mausi Sebess.
Advogados dizem que litígios na área digital tendem a crescer. “Por muitos anos, a discussão sobre propriedade e concorrência desleal era focada, principalmente, em produtos contrafeitos. Isso obviamente continua. Mas a maior concorrência entre as marcas e a busca por dados e tráfego de clientes aumenta a disputa nos tribunais”, diz José Eduardo Pieri, da comissão de direito digital e proteção de dados da Associação Brasieira de Propriedade Intelectual.
A ida à Justiça ocorre em meio a uma desaceleração do consumo, a partir do segundo semestre de 2021. Os sites sentem desaceleração após o quarto trimestre – esse mercado deve crescer na faixa de 10% a 15% neste ano, versus 27% em 2021, segundo consultorias. As plataformas de “streaming” vivem um período de competição acirrada – Brasil e México são os maiores mercados para essas empresas na América Latina.
Fonte: Valor Econômico