Por Adriana Mattos
Rede antecipava a fornecedores recebíveis de faturas atrasadas e ganhava dinheiro por isso
Uma das principais dúvidas que ainda permanecem no mercado, vinte dias após o escândalo contábil na Americanas vir à tona, é sobre o sistema de compra de produtos e de pagamentos junto a bancos e indústrias. Como se davam as negociações e quais eram as vantagens de cada peça que integrava esse modelo?
Nos últimos dias, o Valor contatou atuais fornecedores, fundos creditórios, bancos e executivos do varejo para detalhar como esse sistema operava – inicialmente, dentro de uma lógica mercantil e depois, assumindo ganhos financeiros. A partir disso, é possível entender, ao se cruzar com avaliações de analistas setoriais, como pode ter se dado as baixas contábeis e eventuais fraudes nos números.
As fontes concordam que a corriqueira prática de atrasar pagamentos a fornecedores, em períodos acima da média do mercado – Americanas ia além dos 180 dias-, sustentou a adoção de financiamento do “risco sacado” – o centro do bilionário rombo de R$ 20 bilhões na companhia.
Esse sistema foi montado com indústrias, bancos e fundos, que tinham vantagens no modelo. Isso não quer dizer, com base nos dados apurados até o momento, que os parceiros tivessem conhecimento de possíveis práticas irregulares na varejista. Mas já havia sinais de que o bolo financiado no grupo ganhava proporções cada vez mais relevantes, e a operação já refletia essa movimentação.2 de 2
“Todo mundo ganhava, mas essa roda estava girando meio rápido demais. Emitíamos as faturas, eles atrasavam meses, e nós bloqueávamos as linhas. Era meio padrão. Aí as compras deles emperravam, e, a pedido deles, fechávamos contratos de risco sacado para a dívida, e destravávamos a linha para vender mais de novo. Um pessoal nosso que visitava estoques deles viam corredores abarrotados e continuávamos vendendo. Tinha algo que não batia”, diz uma fonte ligada a uma grande indústria.
Como o risco sacado financiava dívidas já vencidas com a indústria – aspecto hoje questionado por algumas fontes do mercado – isso fazia girar o modelo de crédito dos bancos aos fabricantes. E quanto maior o montante de atrasados, maior o volume de transações repassadas às instituições ou fundos de direitos creditórios. O Sistema Central de Riscos, do Banco Central, informa na Americanas valor três vezes maior em operações de crédito (R$ 14 bilhões), no início de 2022, versus 2020.
Em linhas gerais, o risco sacado (ou “fortfait” e “confirming”) na Americanas funcionava numa triangulação entre as partes.
Uma dívida de produtos já faturados, por exemplo, com 120 dias de prazo de pagamento, vencia, e semanas após a data, o fornecedor buscava uma negociação. “Atrasos lá eram bem comuns, você vendia e dizia: ‘na Americanas, senta e espera’. Por isso, fabricantes em geral já vendiam cobrando 10%, 15% a mais dela em relação às lojas de eletro ou supermercados, e ganhavam nesse ‘a mais’ ”, diz o vice-presidente comercial de uma rede.
A partir do contato da indústria, a área comercial da Americanas apresentava a proposta da antecipação dos recebíveis não pagos.
“A gente pressionava, eles ligavam e diziam: ‘vou te ajudar aqui e levar seu caso para o comitê de crédito aprovar alguma coisa’. Dias depois vinham com a proposta de fechar um risco sacado no valor total das faturas vencidas. Era pegar ou largar. Não era ajuda nenhuma, o pagamento já estava bem atrasado, e nem era uma antecipação. Mas aí você topava. Até porque todo mundo tem as suas metas de vendas, né?”, diz o diretor comercial de uma fabricantes de eletroportáteis.
Depois disso, dizem três fontes de diferentes fabricantes, a Americanas enviava por e-mail uma planilha de Excel com os números da faturas em atraso (digitadas uma a uma na planilha), mas sem a data atrasada e incluindo o valor a pagar e nova data de pagamento. Horas depois, o banco da operação encaminhava um contrato básico de risco sacado, com as mesmas informações do Excel. As partes davam “ok” por e-mail.
A liberação dos recursos do banco ocorria poucos dias depois, às vezes no dia seguinte – em linhas gerais, a operação envolvia, principalmente, o departamento comercial e diretoria financeira. Atualmente, essas linhas se reduziram drasticamente na rede.
Após o acerto do risco sacado, havia ainda dois ajustes posteriores. A Americanas relatava ao fabricante que arcaria com o reembolso dos juros do pagamento da dívida vencida, que deveria ser paga pela indústria ao banco. “Como era a Americanas que atrasava, ela pagaria (por meio de TED bancário) 24 horas após o acerto do risco sacado”, diz outra fonte. E ainda havia uma espécie de “rebate”, uma verba do banco para a Americanas, por ter indicado o contrato à instituição.
“Uma vez questionei um dos bancos sobre porque a fatura antiga já vencida tinha uma data nova no contrato do risco sacado, e o banco me disse que as informações eram passadas pela Americanas e estavam corretas. Que era uma operação regular, comum”, afirma um diretor de um fabricante de itens de papelaria.
Duas redes concorrentes da Americanas confirmam que a operação de risco sacado em dívidas atrasadas são prática do setor. E a renegociação da fatura vencida, para emissão de uma nova fatura de algo já vendido, tornaria a transação bem mais complexa.
“Vamos lembrar, que se a Americanas tivesse que abrir renegociação de fatura vencida, todos os atrasados iam virar dívida, e era exatamente isso que ela não queria, ter que contabilizar os atrasos como dívida em renegociação, porque pressionaria os indicadores financeiros, os ‘covenants’, e o resultado final”, afirma a fonte.
“Temos que lembrar que risco sacado é antecipação de um recebível do fornecedor. E no caso da Americanas, é um recebível já vencido. Não tem como antecipar algo morto”, diz a mesma fonte.
Um ex-diretor financeiro ressalta a questão da legalidade da transação e da validade do título. “Se todo mundo concorda, e o contrato de risco sacado assinado não proíbe, estão todos na mesma página. Há casos de fundos de direito creditório que não permitem isso pelo regulamento do fundo. Mas um contrato padrão de crédito, de ‘prateleira’, e regulado pelo Banco Central, isso não é vedado ”, diz.
Indústrias, bancos e a varejista se beneficiavam desse sistema. A indústria voltava a vender e a girar o seu estoque, e essa negociação era relevante em períodos em que os fabricantes precisavam repassar estoques para frente. Os bancos ganhavam na transação por meio dos juros, e a Americanas conseguia montar uma transação de pagamento de longo prazo.
“Ela ia estendendo o passivo dela ao longo do ano, e ao mesmo tempo, pelo que a própria Americanas já disse, ainda não fazia a contabilização correta do risco sacado”, diz o vice-presidente comercial de uma rede. No grupo das empresas que mais tem dívidas em aberto com Americanas hoje estão, nesta ordem, Samsung, Philco e Britânia (mesmo grupo), Nestlé, Motorola Mobility e Mattel.
Outra dúvida é como a Americanas computou em seus balanços os juros que reembolsava à indústria e o “rebate” da operação pago pelos bancos. “A empresa já informou que as despesas financeira com juros do risco sacado entravam como redutor da conta de fornecedores, o que é errado. Ou seja, ia descontando dessa linha. Com a alta nos juros no país, o risco era que, com os descontos, essa conta fornecedor ficasse negativa. Inclusive, pelo tamanho que sabemos que o risco sacado tomou lá dentro”, diz um professor de contabilidade. “Pagaram dividendos, impostos, bônus de executivos, com base nessas linhas, que não estavam certas”.
Procurada, a empresa diz que criou um comitê independente para apurar o caso. Também assumiu os compromissos de divulgar a apuração e o trabalho de retificação dos números.
Fonte: Valor Econômico