Por Talita Moreira e Nelson Niero | No fim de janeiro de 2017, um executivo de um grande banco recebeu um pedido inusitado de um diretor da Americanas. A companhia de varejo queria que fossem retiradas as referências a operações de risco sacado de uma carta mandada pela instituição financeira a seus auditores externos no contexto da elaboração do balanço de 2016.
Ciente da importância do relacionamento com a empresa, mas diante da situação pouco usual, o executivo do banco foi consultar colegas de outras áreas. Por e-mail, ele afirma que a varejista havia feito duas sugestões para que não precisasse “reclassificar as operações de risco sacado como endividamento bancário”. Uma delas era retirar da carta aos auditores a menção ao risco sacado. A segunda alternativa era que o banco, caso mantivesse as informações, afirmasse que tais operações não se enquadravam nas situações descritas em um documento da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), publicado em 2016. A resposta foi não, de acordo com a troca de mensagens.
Foi nas operações de risco sacado que a companhia admitiu em janeiro deste ano rombo de R$ 20 bilhões
A varejista bateu na porta de pelo menos outros dois bancos com pedido semelhante, segundo apurou o Valor ao longo de dois meses em conversas com fontes do setor financeiro corroboradas por documentos. Os relatos ajudam a reconstituir um dos pontos mais nebulosos na relação entre a companhia, seus credores e auditores.
Foi nas operações de risco sacado – modalidade em que a empresa se financia para pagar fornecedores – que a Americanas admitiu “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões em seu balanço. A crise levou à recuperação judicial.
O caso ganhou novos lances há duas semanas, quando os administradores judiciais da Americanas publicaram um extenso relatório que, entre outros assuntos, tratava das chamadas “cartas de circularização” enviadas pelos bancos aos auditores da varejista.
A carta de circularização é um documento emitido pelo banco a pedido das firmas de auditoria para checar a veracidade de informações prestadas por seus clientes. Empresas de capital aberto, como a Americanas, são obrigadas a ter um auditor externo, que emite um relatório que acompanha as demonstrações financeiras trimestrais e anuais – a principal fonte de informação do mercado. Em 2017, a KPMG, uma das quatro grandes firmas do setor, era a responsável por atestar a confiabilidade dos números da varejista.
De acordo com o relatório produzido pelos escritórios Zveiter e Preserva-Ação, documentos fornecidos pela Americanas mostram que, em 2016, a KPMG informou que recebeu de duas instituições financeiras – Itaú Unibanco e Santander – respostas às cartas de circularização com saldo de operações de risco sacado que foram posteriormente retificadas/substituídas por outras cartas. Segundo a auditoria, a nova versão “não apresentava uma linha para operação de cessão de crédito à fornecedores (forfait)”. Essa situação foi tratada numa reunião entre os auditores externos e a administração, em que a diretoria teria reiterado a inexistência dessas operações.
No dia seguinte à publicação do relatório da administração judicial, o Itaú contestou a informação de forma contundente. “A realidade dos fatos é que a carta enviada continha todas as informações usuais, inclusive as relativas a risco sacado. No entanto, ao receber a carta, a Americanas pediu ao banco que a substituísse, excluindo as informações relacionadas ao risco sacado, o que foi prontamente negado”, disse o banco em nota.
Segundo o Itaú, a empresa pediu por escrito o detalhamento de algumas operações de crédito citadas na carta, mas a solicitação não abrangia dados sobre o risco sacado. O banco afirmou que então mandou essas informações adicionais, mas manteve em anexo a carta de circularização.
Não fica claro o que aconteceu dali em diante – se a KPMG só recebeu as informações complementares ou a carta de circularização original também.
Também citado no relatório dos administradores judiciais, o Santander afirmou, por meio de nota, que as cartas de circularização “são apenas uma entre muitas fontes de auditoria da companhia, e que eventuais inconsistências ou fraudes contábeis são de responsabilidade exclusiva da empresa, bem como de seus administradores, conselho de administração e órgãos internos de controle”. Para o banco, “as alegações da companhia e de seus advogados não passam de uma tentativa de desviar a real responsabilidade dos administradores e conselho de administração da empresa”.
A KPMG e a PwC, que assumiu a conta no fim de 2019, fizeram recomendações de melhoria nos controles internos da Americanas, especificamente em relação a fornecedores. Em um alerta, que consta do documento publicado pelo administrador judicial, a PwC aponta a “ausência de relatório por idade de vencimento de fornecedores e dificuldade na determinação da incidência dos encargos financeiros sobre saldos em atraso”.
O Valor conversou com dois auditores, na condição de anonimato, sobre a possibilidade de um banco excluir dados da carta de circularização a pedido do cliente. Um ex-sócio sênior de uma grande firma do setor considera altamente improvável que um banco aceitasse uma proposta desse tipo, dado o enorme risco legal. Um auditor sênior de uma firma de médio porte diz que uma fraude desse tipo só seria possível se um funcionário do banco também estivesse envolvido na tentativa de enganar o auditor, sem o conhecimento de seus superiores.
O risco sacado estava no foco, no início de 2017, devido a um ofício emitido pela CVM no ano anterior com diretrizes sobre a contabilização dessas operações – se na conta de fornecedores ou de empréstimos do balanço das empresas.
Também conhecido como “forfaiting” ou “confirming”, o risco sacado é uma modalidade de financiamento comum no varejo e em outros setores em que há cadeias de suprimento. Por meio dela, um fornecedor antecipa seus recebíveis junto a um banco com o qual a varejista tem relacionamento. Assim, a empresa passa a dever para a instituição financeira e não mais para o fornecedor.
Havia um debate sobre a natureza contábil desses contratos, mas o ofício da CVM tentou dar alguma clareza ao assunto: as operações poderiam ser mantidas na conta de fornecedores do balanço das empresas desde que não houvesse alteração nas características delas, como taxas e prazos, por exemplo.
Depois da orientação do regulador, relatam fontes de três bancos, diversas varejistas – Americanas, entre elas – bateram na porta das instituições financeiras para dizer que manteriam a contabilização de boa parte das operações de risco sacado na conta de fornecedores, já que não costumavam alterar as características delas. Esse não era um problema para os bancos, de acordo com os interlocutores, porque do ponto de vista do credor o importante era que os contratos aparecessem no passivo da companhia, em uma conta ou em outra. “Houve um pedido de várias empresas de combinar como fazer”, diz uma dessas fontes sem citar o nome das demais empresas.
Porém, segundo esse e outros interlocutores, a Americanas foi além e pediu expressamente que se retirasse o risco sacado das cartas de circularização.
O Valor conversou com um executivo de banco que recebeu a solicitação. Ela teria partido de Fabio Abrate, então diretor de relações com investidores da B2W, a empresa de e-commerce do grupo. Na época, as companhias eram separadas. Uma fusão juntou B2W e Lojas Americanas em 2021.
Segundo a fonte, apesar de Abrate ser da companhia de comércio eletrônico, falava pelo grupo e o pedido se referia também à então Lojas Americanas. Procurado pelo Valor, o executivo não se pronunciou.
Naquele momento, segundo uma fonte ligada a essa instituição financeira, não houve a desconfiança de que o pedido poderia estar relacionado a alguma possível fraude. Como a Americanas era considerada uma empresa “agressiva” nas negociações com fornecedores e até com os bancos, o caso foi interpretado como “mais um pedido esdrúxulo” da empresa, diz.
Uma fonte de outro banco que recebeu a solicitação da varejista para ocultar o risco sacado da comunicação com os auditores aponta outro problema. Segundo ele, a varejista enviava à instituição financeira um arquivo com os recebíveis que poderiam ser antecipados pelos fornecedores, mas não informava que algumas dessas operações já haviam sido prorrogadas – o que as tornaria uma operação financeira. “Aparecia que o fornecedor José tinha a receber em 120 dias, mas ela não dizia que aquela nota tinha sido emitida 180 dias antes”, diz. “O banco não via que aquela era uma operação já prorrogada.”
Uma questão que tem sido feita aos bancos é por que não viram que o volume de operações que a Americanas reportava em seus balanços não bate com o endividamento que aparecia no Sistema de Informações de Crédito (SCR) do Banco Central. Nesse sistema, as instituições financeiras conseguem ver o todo das operações de crédito de um determinado cliente, embora não consigam saber quanto ele deve a cada credor.
Nesse ponto, as versões se dividem. Um executivo afirma que os dados do SCR não são perfeitos, muitas vezes são incompletos. No entanto, para um ex-diretor de crédito de uma instituição relevante, há outros fatores. Primeiro, os volumes da Americanas nesse tipo de operação eram inicialmente pequenos, e só cresceram nos últimos anos. Segundo, e talvez mais importante, ele diz que as análises levavam em conta o calibre dos acionistas de referência da companhia: o trio formado por Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. “Era uma empresa grande e tinha esses investidores. Ninguém imaginava que isso acontecia. Então, na hora de analisar mais a fundo o risco de crédito, era melhor se concentrar em outros casos que pareciam mais problemáticos”, diz.
A menção ao trio de acionistas como um ponto de conforto é recorrente nas conversas com executivos de bancos. No discurso deles, ter esses investidores na companhia era uma segurança, uma garantia de qualidade. No entanto, também era um passaporte para que concedessem à varejista um limite de crédito maior do que teria sem eles em sua composição acionária.
Para o diretor técnico do Instituo Brasileiro dos Auditores Independentes (Ibracon), Rogerio Mota, é prematuro tirar qualquer conclusão sobre o que aconteceu no caso Americanas. Ele ressaltou, no entanto, que a carta de circularização é um documento “muito importante” na checagem de dados durante o trabalho de auditoria. Além disso, é essencial um ambiente saudável de governança, com funcionamento efetivo dos controles internos da companhia auditada. “Não adianta ter um esquema de controle espetacular no papel que não é colocado em prática, não está impregnado na cultura da empresa”, diz.
Procurada, a Americanas informou, em nota, que “diante dos fatos identificados em janeiro, o Conselho de Administração, imediatamente, instaurou um comitê independente para investigar as circunstâncias que levaram ao fato, inclusive a dinâmica com que se dava a interação com bancos e auditores independentes a respeito do endividamento da empresa. A companhia reforça que todos os seus órgãos sociais (conselho, diretoria e comitês) estão trabalhando conjuntamente com o objetivo de manter suas operações de forma adequada. A Americanas está colaborando com todas as investigações, incluindo as realizadas pela Comissão de Valores Mobiliários e as de outras autoridades e órgãos competentes e segue com seu compromisso de manter o mercado informado a respeito dos desdobramentos do fato relatado.”
A KPMG informou por meio de um porta-voz que, “por motivos de cláusulas de sigilo e regras da profissão, está impedida de se manifestar sobre casos envolvendo clientes ou ex-clientes da firma”. A PwC disse que não comenta temas de clientes “por questões de confidencialidade e regras de sigilo profissional”.
Após a publicação desta reportagem, a Americanas enviou um novo posicionamento, reproduzido integralmente abaixo:
“Em relação à reportagem publicada no jornal Valor Econômico sob o título “Como a Americanas pediu a bancos para ocultar risco sacado”, a Americanas reitera que em 3 de fevereiro comunicou à Comissão de Valores de Mercado (CVM), em Fato Relevante e ata de reunião do conselho de administração, o afastamento dos diretores estatutários e executivos, de todas as suas funções e atividades na Companhia e em suas controladas durante o curso das apurações decorrentes do Fato Relevante de 11 de janeiro de 2023. O então diretor citado na matéria é um dos afastados e a decisão tem como objetivo a apuração dos fatos e não configura nenhum juízo de valor.”
Fonte: Valor Econômico