O Brasil passou por anos transformadores. Na última década, mais de 35 milhões de brasileiros entraram na chamada Classe C. A mobilidade social deu poder aos indivíduos das classes D e E – poder de consumo, de escolha. Um novo quadro se formou no qual esses consumidores passaram a adquirir novos produtos, investir em escolaridade, moradia, transporte. Nos anos de crise, porém, a renda diminuiu, o desemprego atingiu níveis recordes e a confiança nacional foi abalada. O que esperar dos próximos anos? O tema foi debatido durante o Recover Money nesta terça-feira, dia 9.
André Torretta, sócio-presidente da consultoria A Ponte, explica o que aconteceu de 1994 a 2014: além da mobilidade social, houve o Plano Real, a internet chegou a milhares de brasileiros, muitas crianças entraram na escola. “Uma mudança de Brasil enorme”, define. Hoje, vemos cidades do Nordeste que tinham condições paupérrimas onde as pessoas estão com um nível melhor de vida. “Estava tudo indo bem até que o Brasil perdeu de 7 a 1”, brinca. Brincadeira a parte, o que alguns economistas já sentiam no final de 2013 foi evidenciado em 2014. A crise política e econômica chegou, houve uma queda abrupta.
Aliado ao quadro, é preciso levar em consideração a cultura de consumo existente no Brasil. Como lembra o especialista, em termos de hiperinflação, todo brasileiro corria atrás de promoção. “Houve um trauma tão grande que corremos atrás de promoção até hoje. Nossa Tiffany é a única do mundo que vende no cartão crediário em 10 vezes. E não é um comportamento só da classe C, mas todos os brasileiros têm o habito de pegar crédito”.
Somar o hábito de compras parceladas com a crise econômica e queda de renda, resulta em um cenário de inadimplência bastante complicado. Como lembra Denise de Pasqual, sócia e diretora da Tendências Consultoria Integrada, por mais que, em termos percentuais, a Classe A tenha perdido mais renda (12%), os 3% de perda que a Classe C sentiu foi muito mais impactante para o mercado de consumo. “As características das pessoas dessas classes são muito diferentes. Precisamos separar renda de hábitos”, comenta. Quando um indivíduo tem acesso a escolaridade, além de recursos educacionais e informativos, tem um padrão diferente e um nível de exigência maior.
O que aconteceu?
A fatia de trabalhadores do comércio e serviços é muito grande na classe C – um setor tremendamente impactado pela crise e que está com muito desemprego. Por isso, observamos milhares de brasileiros que tinham ascendido na última década retornando ao seu patamar inicial (D ou E). Nesse quadro, existe um ponto primordial. “No Brasil, perfil de escolaridade é fundamental. Pessoa com segundo grau chegam a ganhar 80% a mais do que quem não tem, é grande fator de mobilidade social”, destaca Denise. Atualmente, aproximadamente 20% das pessoas tem nível universitário, o que impacta diretamente na forma como esses indivíduos sentem a crise. “Essa percepção sobre a escolaridade é uma tendência que veio para ficar”, garante.
Em um cenário de pleno emprego e mercado imobiliário aquecido, como ocorreu alguns anos atrás, fatores como esse citado pela especialista acabam um pouco deixados de lado. No entanto, Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital, lembra que o que aconteceu era uma bolha. “No momento, a bolha está reajustando, então sentimos muitos efeitos”. A classe C, principalmente. “Quando você tem zero de renda sobrando, como faz quando perde 3%? Depois de parcelar um imóvel, um carro, colocar os filhos na escola, pagar plano de saúde, comprar notebook, smartphone…”, descreve. A demanda reprimida de consumo, que foi encabeçada por esses brasileiros em seu momento de ascensão, teve pontos positivos, mas trouxe reflexão. É preciso readequar agora.
E gera um ciclo: afinal, família hiperendividada corta consumo, que impacto o comércio e acaba gerando desemprego, já que as empresas precisam adequar as contas.
Nuances
Pereira aponta que enxerga uma mudança no perfil de solicitação de empréstimos no Brasil. “Antes, existiam muitas solicitações de crédito para consumo e não necessariamente bem durável. Nos últimos dois anos, mudou. O crédito começou a ser pego para compor orçamento, famílias perderam renda e precisam pagar contas fixas”, conta. A percepção no geral é bastante incisiva: essa foi uma crise diferente.
Nas crises anteriores, existia uma ideia de que logo as coisas retornariam ao seu lugar. As classes mais baixas imaginavam que arrumando “bicos” ou novos empregos conseguiriam melhorar sua situação. “O que vimos neste momento foram pessoas desempregadas a 10, 12 meses, é difícil se recompor desse jeito”, comenta Pasqual. Nesses anos, brasileiros adquiriram empréstimos para pagar outros empréstimos. Foi uma bola de neve.
Oportunidades
Torretta, de A Ponte, lembra que já existiu um momento em que o mercado duvidada da ascensão da classe C. Isso teve um impacto nas estratégias. “Novos modelos de negócio ainda encontram espaços nessas classes sociais e eu não vejo modelos formatados para essas pessoas”, aponta.
É uma grande lacuna de mercado – que precisa de uma estratégia bem feita. “Trabalhar com classe C é trabalhar com eficiência. Porque é preciso pensar em volume, precisa ter escala”, explica o presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital. Vender um produto de classe A traz um ticket médio alto – para gerar lucro com consumidores com poder aquisitivo menor, é preciso vender um número muito maior. “Para ter escala é preciso ter eficiência e o Brasil é o modelo de entrave para eficiência, somos o país da burocracia”, lembra.
Até mesmo o modelo de crédito nacional é pensado nas classes mais altas. “Para emprestar R$ 1 mil uma empresa tem os mesmos custos burocráticos que um empréstimos de R$ 100 mil, sendo que precisa emprestar muito mais. Como lidar com isso?”, questiona Pereira. São questões que precisarão ser pensadas no futuro. É preciso pensar em um sistema que consiga chegar a todos.
“É cada vez mais importante olhar para o consumidor e ver como fazer coisas pra ele. É preciso ser ganhador em um mercado que cresce pouco, isso é muito difícil”, lembra Danise Pasqual, da Tendências. “Tem muitas empresas que têm foco em tudo. Precisamos diferenciar os produtos. Não só ter Premium, mas fazer produtos diferenciados com preços mais baixos, pensar em todas as classes. Que produtos eu tenho para um público específico”, diz.
Perfil
De todo o quadro, é preciso que as empresas – e a sociedade – levem um ensinamento. A classe C mudou de comportamento, hoje esse consumidor tem um nível diferente de exigência. “É preciso entender como ele pensa e o que ele gosta – e lidar com todos os entraves burocráticos que isso representa”, lembra Pasqual. “Boa parte do que ele se transformou é para sempre. Determinados valores ficam sempre, a escolaridade, a exigência e é preciso entender isso”, garante.
Apesar das dificuldades aparentes, os especialistas têm uma visão positiva. O mercado vai melhorar. Vai ser devagar – mas a aparente demora representa perenidade lá na frente. Por fim, Torretta lembra que se a classe C passar por dificuldades, toda a sociedade passa. “É preciso pensar qual será o quadro do futuro e o seu impacto em todos os indivíduos – pois juntos eles fazem a roda girar”, conclui.
Fonte: Consumidor Moderno