Já faz quase 1.500 anos que a China inventou o papel-moeda. Hoje em dia, ela pode virar um pioneiro de novo, desta vez descartando o dinheiro vivo. No século VII, no reinado da dinastia Tang, os comerciantes começaram a fazer pagamentos entre si com recibos de papel, deixando as moedas de metal para serem guardadas por pessoas de confiança.
Já no século X, sob a dinastia Song, surgiu a escassez de cobre para cunhar moedas. Na época, foi decidido emitir papel-moeda. Por mais estranho que pareça, hoje em dia a China continua sendo um país que proporciona ao mundo inovações financeiras. Bem pode acontecer que logo ela se torne no primeiro país a descartar o dinheiro vivo.
Nas grandes cidades chinesas sempre houve muitos mendigos. Eles andavam com latas que tinham alguns trocados. Ao fazer barulho com essas moedas, eles atraiam a atenção do público. Particularmente, eles gostavam de se dirigir aos estrangeiros, esperando que os ricaços ocidentais lhes botassem algum dinheiro em sobra.
Mas, de fato, a resposta costumava ser precisamente a contrária: o estrangeiro apanhava susto e, para se livrar do mendigo, dizia: “Desculpa, não tenho dinheiro vivo.” Mas hoje em dia esse truque não passaria. Os mendigos levam ao pescoço um código QR impresso, ou às vezes o colam diretamente nessas latinhas. Por isso, qualquer um pode escanear esse código com seu celular e enviar qualquer valor através de serviços de pagamentos como Alipay ou Wechat pay.
O mercado de pagamentos por celular na China está se tornando cada vez maior. Em 2016, o volume conjunto dos pagamentos por celular somou 5,5 trilhões de dólares, o que é 50 vezes mais que no mercado semelhante nos EUA, que foi de 112 bilhões de dólares.
Nas grandes cidades da China, como Pequim, Xangai, Guangzhou e Hangzhou, é quase em todo o lugar que se pode pagar através do celular. Mais de 80% dos supermercados aceitam pagamento com aplicativos Alipay ou Wechat pay, e a mesma porcentagem de pequenos comerciantes coloca em frente das bancas cartões com códigos QR, enquanto os taxistas se recusam a viajar com pagamento em dinheiro líquido. Com um pagamento via celular, até se pode enviar doações aos templos.
A edição South China Morning Post cita as palavras de um comerciante de legumes em um dos mercados de Guangzhou falando que sem pagamentos por celular seu negócio ficaria na bancarrota.
“Aqueles que parecem ter menos que 40 anos quase não costumam pagar em dinheiro”, contou.
Ao mesmo tempo, o proprietário de uma loja esportiva em Guangzhou observa que o dinheiro líquido representa apenas 15% das receitas.
Ainda em 2006, a China estava atrasada nos volumes de pagamentos com cartão. O dinheiro líquido representava 13% do PIB, enquanto nos EUA era de 6,4% e no Reino Unido — apenas 3,5%. Entretanto, neste ano, segundo as estatísticas da KPMG, 84% dos chineses preferem pagar por celular. Ao mesmo tempo, nos EUA apenas 20% dos proprietários de smartphones os usam para comprar algo. Por que é que, então, este tipo de pagamento é tão popular na China?
A resposta pode parecer paradoxal: às vezes, o atraso técnico é uma coisa útil. Os países que não estão sobrecarregados com infraestruturas existentes podem desenvolver as tecnologias mais avançadas desde o nada. Para que fique claro, vale explicar recorrendo a um exemplo.
Nos EUA, já faz várias décadas que funcionam as áreas de estacionamento pagas. Elas existem em quase todas as cidades. Mas o problema é que a infraestrutura básica foi criada nos fins da década de 60 e início da década de 70. Em resultado, até hoje só se pode pagar nos terminais de estacionamento com moedas de 25 cêntimos. Ao mesmo tempo, os preços subiram devido à inflação. Ou seja, por 3 horas de estacionamento se deve alimentar a máquina com 60 moedas, sendo todas do mesmo valor. Onde a gente as poderá obter já é problema seu. Para comparar — na capital russa, Moscou, há áreas de estacionamento pagas há vários anos. Por isso, a tecnologia já pressupunha o pagamento com aplicativos desde o início, pois é rápido e cômodo.
A mesma situação acontece com a infraestrutura bancaria na China. Hoje em dia, as estatísticas indicam que cada quinto adulto não tem acesso aos serviços bancários tradicionais. Ao mesmo tempo, há apenas 55 caixas eletrônicas e 8 escritórios de bancos por cada 100 mil habitantes na China. Nos EUA, entretanto, há 222 e 28, respectivamente.
Nos EUA, as pessoas estão acostumadas a pagar com cartões de crédito e de débito. E é difícil e não faz sentido para elas passar para o novo sistema de pagamentos por celular.
Já na China, o baixo desenvolvimento de tal infraestrutura ajudou a pular com um salto a época dos cartões bancários. Resulta que nas economias menos desenvolvidas as novas tecnologias pegam melhor, pois não há nada que o impeça ou concorra com elas, afirma o diretor do Centro do Setor Bancário da Universidade Central de Economia e Finanças da China, Guo Tianyong.
“Embora nos EUA existam serviços de pagamento por celular, tais como Applepay, mas na China eles são muito mais desenvolvidos. A coisa é que os serviços bancários estão menos desenvolvidos. Por exemplo, não é muito comum usar cartões bancários aqui, e isso nos ajuda. Primeiro, aquele que já se acostumou a usar cartões não vê nenhuma necessidade de mudar alguma coisa, já está confortável. Quanto à população chinesa, que sempre usou dinheiro líquido, isto é um verdadeiro avanço. Uma pessoa pode esquecer de levar um cartão bancário, mas o celular está sempre com você. Para os vendedores, os pagamentos por celular também são muito preferíveis. Para aceitar um cartão bancário, é preciso um equipamento caro, por exemplo, terminais tipo POS. Muitas vezes, os lojistas não podem se dar ao luxo de comprá-los. Quanto aos pagamentos por celular, o vendedor apenas precisa de criar uma carteira eletrônica grátis e imprimir seu código QR. Por isso, os pagamentos por celular na China acabaram por ser muito mais simples e cômodos para todos”, explicou.
Os pequenos comerciantes ficaram entusiasmados com a oportunidade de aceitar pagamentos eletrônicos. Antigamente, eles eram frequentemente vítimas de assaltos. E não só eles. Os taxistas também estão contentes por deixarem de levar dinheiro líquido consigo, pois anteriormente o batedor de carteiras bem poderia lhes tirar toda a receita do dia. Evidentemente, os pagamentos eletrônicos são muito mais seguros.
Claro que, em teoria, os hackers podem também atacar uma carteira eletrônica. Mas o risco de fraude existe inclusive nas operações com cartões bancários, afirma Guo Tianyong.
“Houve fraudes tanto com cartões bancários, como nos pagamentos por celular. Nenhum modo de pagamento pode ser absolutamente seguro. Entretanto, o bem sempre derrota o mal, e as tecnologias chinesas de combate ao cibercrime também se estão desenvolvendo constantemente”, frisou.
Entretanto, fica uma pergunta. Para criar uma carteira eletrônica e usar um serviço de pagamentos por celular, seja o Alipay ou Wechar pay, precisa ligar um cartão bancário a ela. E se a gente precisa de um cartão de qualquer maneira, para quê criar uma carteira eletrônica também? Porque não se pode apenas usar o cartão, como se faz nos países do Ocidente, bem como na Rússia?
Há uma peculiaridade aqui. Na China, é muito fácil obter um cartão de débito. Mas apenas 20% da população tem cartões de crédito. É muito complicado obtê-lo, pois os bancos chineses, tradicionalmente, são pouco inclinados a confiar e conceder créditos a pessoas físicas. Foi esse problema que fez o jogo da Alibaba e Tencent.
No início, a Alibaba era apenas a maior plataforma de comércio eletrônico. Já a Tencent possui o maior serviço de mensagens na China, o Wechat. Tendo uma base de clientes vasta, eles inventaram como se pode fazer as pessoas usarem suas ferramentas financeiras. Deste modo, em 2013, nas vésperas do Ano Novo chinês, o Wechat criou um serviço de envio de “envelopes vermelhos” virtuais aos amigos. Por tradição, na China se costuma presentear os parentes e os amigos com envelopes vermelhos com dinheiro.
O serviço obteve um sucesso fantástico e a empresa, desse modo, fez as pessoas ligarem seus cartões às carteiras eletrônicas.
A Alibaba, por sua vez, escolheu outro caminho. No mesmo ano de 2013, a empresa lançou o serviço online Yue bao. De início, aos clientes apenas foi proposto gerir suas finanças nas carteiras eletrônicas destinadas a pagar artigos na plataforma da Alibaba. Ao mesmo tempo, se oferecia uma porcentagem bem grande, muito mais vantajosa que colocar o dinheiro em depósito. Deste modo, nos primeiros 18 meses de funcionamento, o serviço atraiu 600 bilhões de yuans de mais de 185 milhões de depositantes.
Deste modo, recolhendo os depósitos “convencionais”, as empresas começaram a propor um serviço inédito para todos os chineses — isto é, um pequeno crédito de consumo.
Assim, uma espécie de cartão de crédito ficou acessível a quase todos nas plataformas de pagamentos por celular.
Parece que é mais uma razão séria para usar os celulares para pagamentos e não ir ao banco para obter um cartão. De qualquer maneira, é demasiado complicado adquiri-lo, tomando em consideração a ausência de registro de créditos da maioria da população.
Quanto aos smartphones, muitos os têm: na China já há 751 milhões de internautas, dos quais 96% usam, em sua maioria, a Internet do celular.
Por isso não se pode descartar que logo a China se torne o primeiro país no mundo que vai construir uma sociedade sem dinheiro vivo.
Fonte: Sputnik News