Por Redação | Mercado de trabalho aquecido, preços mais comportados (sobretudo dos alimentos), Bolsa Família turbinado, programa federal de renegociação de dívidas… Neste ano, muitos fatores concorreram para que o bolso do brasileiro ganhasse um bem-vindo alívio — de R$ 176 bilhões, mais precisamente, nas contas da consultoria Tendências.
Mas 2023 também transcorreu sob a sombra dos juros mais altos em sete anos e termina com a inadimplência de longo prazo (acima de 90 dias) mais elevada desde o início da pandemia. Resultado: o consumo voltou, mas limitado pelo parco acesso a crédito e sensível a preço como nunca.
Trocando em miúdos, o brasileiro está abandonando o sabão em pedra em prol da versão líquida no atacarejo e consegue, enfim, satisfazer alguns de seus mais novos objetos de desejo — a fritadeira air fryer e a TV 4K. Mas ele ainda não tem bala na agulha (ou nome limpo na praça) para comprar carro novo ou geladeira.
E o fôlego do consumidor já começa a dar sinais de esgotamento, como atesta a última Black Friday. O que virá pela frente dependerá da reação do crédito e de como a queda dos juros será absorvida pela economia real.
— Temos visto um consumidor mais disposto a consumir, por motivos como uma menor inflação dos alimentos, que pressionava o orçamento, uma melhora contínua no mercado de trabalho formal, a valorização do salário mínimo e o reajuste do Bolsa Família. Mas a intenção do consumo já começou a desacelerar. Temos um consumidor mais endividado e com um olhar menos otimista para o emprego, enquanto o efeito positivo da redução da inflação já passou — pondera Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio (CNC).
Essa conjuntura é sentida de maneira distinta entre os segmentos. Naqueles de produtos de consumo imediato e itens de supermercado, por exemplo, a sensação ainda é de página virada, declara Rafael Couto, da firma de análise de mercado Kantar.
O vigor deste ano, em cujo primeiro semestre as vendas saltaram 9,8% frente a 2022, fez com que o país finalmente superasse o impacto da pandemia. No consumo fora de casa, o brasileiro já gasta 1% mais que no primeiro trimestre de 2020; dentro de casa, como nas compras de mercado, o patamar é 18% maior.
— Quando levamos esses dois universos em consideração, estamos 12% acima do pré-pandemia, finalmente — diz.
Do refrigerante ao croissant
O crescimento na comparação com 2022 deve muito ao chamado consumo de indulgência, com destaque para categorias como refrigerantes, chocolate, biscoito, cerveja e sanduíche/hambúrguer respondendo pelo grosso da expansão.
Fora do lar, onde o volume de produtos consumidos cresceu 3,8% no primeiro semestre, quem puxa o dado são as classes mais ricas. É quem não tem pena de abrir a carteira para saborear seu café da manhã na rua — essa ocasião bem particular cresceu 36%, ganhando peso nos gastos totais do brasileiro.
— O consumo fora de casa vem sendo puxado pela retomada da rotina, com o fim da pandemia e o aumento do emprego, e se concentra nas classes mais altas e no público mais jovem. O brasileiro vinha dando muito espaço para lanches, mas, com a recuperação da renda, as refeições estão ganhando espaço — explica Couto.
No consumo dentro de casa, a indulgência também brilha, mas o destaque é a dinâmica de compra: o brasileiro está indo menos vezes ao supermercado, mas comprando mais em cada uma delas. É um sinal de confiança. Mesmo assim, a cautela de que falava a economista da CNC também se faz presente: o brasileiro está buscando promoções e marcas econômicas como nunca.
— Ele está mais confiante, tanto que fica mais confortável em abastecer a casa quando vai no mercado. Mas, ao mesmo tempo, está mais cuidadoso com seu dinheiro, buscando preservar seu poder de compra. O que é natural depois de passar por um momento mais difícil — argumenta o analista da Kantar.
Enquanto as marcas premium avançaram 5% no segundo trimestre, as econômicas saltaram 12%. Produtos em promoção, que representavam 10% do que se comprava um ano atrás, agora já são 12%. Não à toa, o atacarejo se tornou o principal canal de compra do brasileiro, com participação de 19,4% no primeiro semestre, contra 16,6% um ano antes.
Promoções e cashback
Os dados da Kantar coincidem com as conclusões de levantamento da fintech Trigg, que acompanha semestralmente os hábitos de consumo no país.
No segundo semestre deste ano, promoções e cashback se tornaram as principais influências na hora da compra, citados por 37% e 18% dos consumidores ouvidos, respectivamente. Ultrapassaram, por exemplo, os quesitos qualidade e facilidade de pagamento, que encabeçavam a pesquisa no fim do ano passado.
— Até o semestre passado, o cliente estava muito preocupado em pagar dívida. Agora, ele quer comprar, mas mais de 50% das intenções de compra estão baseadas na lógica de preço — analisa Linconl Rocha, CEO da Trigg.
O problema é que o custo do financiamento para o varejo ficou maior, o que fez com que as lojas chegassem a dezembro com pouca margem para queimar em descontos. Daí a apatia dos consumidores na última Black Friday, particularmente acanhada em ofertas.
Levantamento da BigDataCorp com 9 milhões de produtos mostrou, por exemplo, preços 3% mais altos que dois meses antes.
Mas a combinação de bolso mais cheio e cautela permitiu que o brasileiro achasse espaço no carrinho do supermercado para produtos de maior valor agregado.
O sabão líquido para roupas parece ser a estrela do momento: foi o produto cuja presença mais cresceu em todas as classes sociais, avançando 7,7 pontos percentuais. Sua nêmesis, o sabão em pedra, foi o terceiro que mais perdeu espaço (5,3 pontos).
O alvejante sem cloro ilustra a busca por sofisticação: ganhou 3,5 pontos, enquanto a participação do seu homólogo “raiz”, o cloro, caiu 8,2 pontos. Sobra ainda espaço para pets: os alimentos para cães e gatos estão entre as categorias que mais ganharam espaço no carrinho, inclusive na classe C. Na despensa da classe D/E, por sua vez, entraram o leite aromatizado e os sucos prontos.
Em produtos mais caros, a dinâmica é diferente. Carros são o principal exemplo. O financiamento automotivo está perdendo espaço no volume de dívidas das famílias: em outubro do ano passado, representava 9%; no mesmo mês deste ano, a taxa já era de 7,8%, segundo a CNC.
A venda de automóveis até cresceu este ano — 9,7% até outubro, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) —, mas puxada pela demanda de locadoras. Enquanto isso, três quartos dos pedidos de financiamento têm sido negado pelos bancos, queixou-se o presidente da entidade, Márcio de Lima Leite, na última divulgação de resultados do setor.
Nos eletroeletrônicos, em que os tíquetes médios são elevados e o crédito também é muitas vezes condição sine qua non para o consumo, o brasileiro compra mais que antes, mas menos do que gostaria por causa dos juros altos.
As vendas do setor subiram 13% na primeira metade do ano frente ao mesmo período de 2022, mas a base de comparação é deprimida, segundo dados da Associação Nacional de Fabricantes de Produtos Eletrônicos (Eletros).
— O que tivemos foi um breve hiato em um período grande de retração no consumo. Trabalhamos no negativo desde 2021 — admite Jorge Nascimento, presidente-executivo da Eletros.
Haja ‘air fryer’
Os brasileiros compraram 44 milhões de produtos eletrônicos entre janeiro e junho, ainda 6% menos que na primeira metade de 2019 — quando a pandemia ainda não havia chegado e os juros estavam em módicos 6,5%, quase metade do patamar atual.
Mas, dada a diversidade de tamanhos, preços e utilidades na categoria, cada eletroeletrônico vive o momento à sua maneira — e alguns até escapam à crise. Quem sustenta a expansão do setor são os portáteis, maior segmento e cujas vendas saltaram 13%.
Dentro dele, a diva maior é a air fryer, que se tornou objeto de desejo das classes médias durante a pandemia e mantém o fôlego até hoje. Suas vendas dispararam 85% na primeira metade do ano.
As altas temperaturas impulsionam o ar-condicionado, cujas vendas subiram 16% até o fim de junho e devem registrar alta ainda maior quando o calorão de novembro for contabilizado nos números.
As TVs, por sua vezes, desafiam sua tendência histórica: venderam pouco em ano de Copa do Mundo, em 2022, e estão tirando o atraso agora.
— Nem a gente está conseguindo explicar por que a TV está avançando, já que, geralmente, ela explode antes da Copa do Mundo. A Smart TV já é quase 90% do mercado. O que está havendo é um movimento de troca de tecnologia de imagem, com a busca por telas 4K e mais tecnologia embarcada — acrescenta Nascimento.
Fonte: O Globo