Se as vendas online e multicanal ainda engatinham no varejo brasileiro, em um segmento específico, o consumidor mostra ainda menos apetite pelas compras virtuais: o varejo alimentar. Com a mudança repentina no comportamento de consumo por conta da Covid-19, a expectativa, no entanto, é de que essa vertente comece a ganhar escala.
Nesse contexto, o grupo francês Carrefour é um dos nomes que já está colhendo frutos dessa onda digital. No primeiro trimestre, as vendas gerais de alimentos na rede superaram, pela primeira vez desde 2017, a categoria não-alimentar, ao somarem R$ 2,68 bilhões, alta de 11,2% sobre igual período no ano passado.
Maior aumento trimestral dos últimos cinco anos, o índice foi impulsionado pela corrida dos consumidores às lojas do Carrefour. E também pelo crescimento nos cliques nos canais digitais do varejista, em especial, na categoria de alimentos.
A rede registrou um salto, na comparação anual, de 235% no volume bruto de mercadorias (GMV) no segmento de alimentos, por meio de seu e-commerce e do seu marketplace, e também pelos serviços de entrega, como Rappi.
Outros dados reforçam essa expansão no período. Em apenas um dia, a categoria alcançou um volume recorde de 4.269 mil pedidos, contra uma média de 1.674 mil nos primeiros 14 dias de março. No trimestre, as entregas em domicílio responderam por 85% das compras digitais de alimentos, ante 61% no quarto trimestre de 2019.
“Esse crescimento do GMV alimentar atesta a mudança do padrão de compra para o online”, disse Noël Prioux, CEO do Carrefour no Brasil. “Com esses resultados, estamos acelerando nossa ambição de sermos o varejista online de alimentos número um do Brasil.”
O desempenho da categoria no online foi um dos pontos ressaltados em relatório do Credit Suisse sobre o trimestre do Carrefour. “É provável que a empresa esteja ainda mais bem posicionada em seu e-commerce de alimentos, dada a aceleração observada neste mercado, que pegou muitos concorrentes despreparados”, escreveram os analistas Victor Saragiotto e Pedro Pinto.
O resultado geral da rede no período não agradou, porém, o mercado. Entre janeiro e março, a receita do grupo avançou 12,7%, para R$ 15,38 bilhões. O lucro líquido, por sua vez, ficou em R$ 363 milhões, queda de 18% na comparação anual.
Idas e vindas
O caminho do Carrefour para consolidar uma oferta no varejo online alimentar foi tortuoso. Em 2012, a rede encerrou sua operação de e-commerce lançada três anos antes, com outras categorias. O canal foi retomado apenas em 2016, sem demonstrar, porém, grandes avanços nos meses seguintes.
“Estamos acelerando nossa ambição de sermos o varejista online de alimentos número um do Brasil”, diz Noël Prioux
A pegada digital começou tomar forma, de fato, na empresa em outubro de 2017, com a nomeação do CEO global Alexandre Bompard, em substituição a Georges Plassat.
Ex-presidente da Fnac Darty, Bompard trazia como cartão de visitas a liderança no processo de transformação digital da varejista francesa. A vertente era um dos principais gargalos do Carrefour em todo mundo.
A chegada do executivo acelerou esse processo. No Brasil, por exemplo, um dos reflexos foi o lançamento do e-commerce de varejo alimentar, dois meses depois. Desde então, a empresa tem investido em uma série de estratégias nessa frente.
Os esforços incluíram, por exemplo, a compra da foodtech e-Midia, no fim de 2018, a parceria com a Rappi e a implantação do serviço de clique e retire, que, em 2019, estava disponível para a categoria alimentar em 34 unidades da rede de lojas do grupo.
Entre os movimentos mais recentes, está o investimento nas chamadas “side stores”, pontos voltados exclusivamente às entregas e que apoiam a logística das lojas físicas.
O grupo encerrou 2019 com 12 unidades desse formato e planeja chegar a 40 em um prazo de dois anos. No ano passado, o canal absorveu 25% das vendas do varejo alimentar online.
No curto prazo, uma iniciativa é a mudança na plataforma que sustenta a operação de e-commerce do grupo, programada para acontecer entre julho e agosto.
“Tivemos alguns problemas e já tínhamos planejado essa mudança antes da crise, pois precisamos de uma tecnologia mais robusta”, disse Prioux. “A atual nos permite crescer, mas não nos dá tanta agilidade. Essa mudança vai acelerar a expansão do canal no segundo semestre.”
Concorrência
No roteiro para concretizar o plano de liderar as vendas digitais da categoria, o Carrefour encontrará e terá de superar um velho e conhecido rival dos canais mais tradicionais do varejo: o Grupo Pão de Açúcar (GPA), controlado pelo rival francês Casino.
O GPA irá divulgar seu resultado referente ao primeiro trimestre na próxima quinta-feira, 14 de maio. No varejo alimentar online, no entanto, a companhia está à frente do Carrefour, pelo fato de investir em uma estratégia digital há mais tempo.
Nos números mais recentes divulgados, relativos ao ano de 2019, o e-commerce alimentar do GPA registrou um avanço de 40%, impulsionado por formatos de entrega como o Clique & Retire, presente em 119 lojas do grupo.
Em 2019, o e-commerce alimentar do GPA registrou um avanço de 40%, impulsionado por formatos de entrega como o Clique & Retire
No ano, o GPA também expandiu a operação da James Delivery, serviço de entregas comprado no fim de 2018, para 19 cidades. O número de pedidos nessa modalidade foi ampliado em 15 vezes em 2019 e registrou um crescimento de 446% no GMV.
“O GPA foi pioneiro dessa vertente e, nos últimos anos, começou a ganhar ainda mais tração”, diz Alberto Serrentino, sócio e fundador da consultoria Varese. Ele ressalta, porém, o avanço do Carrefour. “Com a entrada do CEO global, eles ganharam foco e investimentos, e estão reduzindo essa lacuna.”
Nessa disputa, Serrentino destaca entre os pontos fortes do GPA, além do pioneirismo, a base de clientes formada no canal, sua integração com o programa de fidelidade Pão de Açúcar Mais e o serviço de entregas da James Delivery.
“O GPA já tem um histórico transacional grande, que pode ser usado para acelerar a plataforma digital”, afirma. “E o James Delivery é essencial, pois blinda esses dados dos clientes, que geralmente são apropriados pelos aplicativos de entrega parceiros.”
Para Serrentino, a tendência é que essa disputa se intensifique, à medida que a Covid-19 vai consolidar mudanças de comportamento que irão favorecer o crescimento da participação dos alimentos nos canais online.
Até então, a categoria encontrava diversas barreiras para crescer nesse ambiente. E não apenas no Brasil. Entre elas, a necessidade de o produto estar muito próximo da casa do cliente e o fato de a última milha ser extremamente cara no País. Ao mesmo tempo, diferentemente de outros segmentos, os alimentos exigem outras condições e prazos de estoque e de logística, o que encarece a operação.
“Com as quarentenas e o lockdown, no entanto, houve um impulso muito forte de novos consumidores para as compras de alimentos online”, diz. “E nos poucos varejistas que estavam preparados, como GPA e Carrefour, esse canal está deixando de ser um negócio marginal.”
Uma pesquisa divulgada nesta semana pelo Ebit Nielsen reforça essa tendência. Segundo o estudo, entre 17 de março e 27 de abril, 31% dos consumidores que compraram nos canais digitais de autosserviço, que incluem os hipermercados e supermercados, afirmaram que usaram esse recurso pela primeira vez. Há um ano, esse índice foi de 16%.
Em outros países, a penetração do varejo alimentar no canal digital foi impulsionada pelos movimentos de alguns gigantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele veio com a compra da Whole Foods pela Amazon, em 2017, por US$ 13,7 bilhões, o que obrigou varejistas como o Walmart a reverem suas estratégias. O mesmo movimento aconteceu na China, com o Alibaba.
No Brasil, Serrentino enxerga duas frentes que podem ameaçar o domínio, até aqui, de GPA e do Carrefour no segmento. A primeira delas envolve o Magazine Luiza, que já ensaia passos nessa direção, e a B2W, que tem à disposição a rede de pontos de venda da Lojas Americanas e que, no inicio do ano, comprou a Supermercado Now, plataforma de compras online de supermercado.
No segundo front, ele destaca aplicativos como Rappi e iFood, que, embora trabalhem em parceria com muitas redes, poderiam avançar nessa categoria. “GPA e Carrefour tem musculatura, histórico e vão ser relevantes nessa arena”, diz Serrentino. “Mas, certamente, eles não estarão sozinhos nesse espaço.”
Fonte: Neofeed