Por Rodrigo Caetano | A tragédia aconteceu em uma loja da rede de supermercados Carrefour, a maior do Brasil, mas poderia acontecer em qualquer lugar. Em novembro de 2020, um homem negro foi espancado até a morte por seguranças. João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, fazia compras em uma loja de Porto Alegre quando foi abordado e acusado de roubo. O que aconteceu para um suposto furto virar uma sentença de morte é difícil de explicar, porém, sabe-se há muito tempo que o racismo está na origem da maioria desses episódios.
Para a rede varejista, a tragédia teve implicações financeiras relevantes. A empresa sofreu um enorme prejuízo de marca, teve de assinar um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o Ministério Público e rever sua estrutura de segurança privada – os profissionais envolvidos no caso eram terceirizados. Um fundo de 115 milhões de reais foi criado para financiar ações antirracistas e, quase três anos depois, a companhia ainda trabalha para criar uma estrutura que ofereça segurança às pessoas, independente da cor da pele.
Nesta segunda-feira, 3, o Carrefour anuncia mais uma iniciativa nesse sentido. Em parceria com a Universidade Zumbi dos Palmares, a varejista levará o antirracismo na segurança privada para a educação superior. Nos próximos dois anos, 90 profissionais serão formados em um curso pioneiro de Gestão da Segurança Privada, voltado para a atuação em empresas que demandam interação intensiva com o público. O objetivo é desenvolver profissionais especializados em um modelo de segurança humanizada, em que o foco é proteger pessoas, não mercadorias. Os participantes receberão diploma de tecnólogo, que tem nível superior.
“As relações de consumo estão mudando, e a segurança privada é parte importante nesse processo”, afirma José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares. “É um setor cuja preocupação sempre foi em relação a custo, nunca houve uma tentativa de compreensão desse processo.”
Segurança privada estratégica e antirracista
Para Maria Alicia Lima, diretora executiva de relações institucionais e engajamento do Carrefour, a iniciativa tem a preocupação de pensar a segurança do futuro. “Precisamos que as pessoas se sintam seguras ao comprar em nossas lojas, e isso passa por mudar o foco da proteção”, diz Lima. “Temos de proteger as pessoas primeiro, depois pensamos nas questões materiais.”
Há, na visão de Vicente e Lima, certa confusão no Brasil entre o lugar da segurança pública e da segurança privada, o que fica evidente no tipo de abordagem muitas vezes conduzidas pelos profissionais da área. “Não deve existir abordagem nas lojas, se há um problema, ele deve ser resolvido pela segurança pública. O papel da nossa equipe é de mediação.” Vicente chama atenção para a insegurança que as pessoas negras enfrentam em decorrência do tipo errado de abordagem. “O olhar do privado é próximo do público, porque, muitas vezes, os profissionais são os mesmos. E no nosso racismo estrutural, há a ideia do inimigo, que tem cor e raça”, diz o reitor.
A Zumbi dos Palmares vem contribuindo para alterar essa mentalidade em ambos os níveis. A universidade estabeleceu, por exemplo, um processo de colaboração com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cujo objetivo é desenvolver protocolos de segurança antirracista que podem ser utilizados tanto na segurança privada, quanto na pública.
Capacitação profissional na segurança privada
Um obstáculo para se avançar com o modelo de segurança humanizada é a falta de capacitação. Culturalmente, esse trabalho sempre foi relegado a profissionais de baixa escolaridade, que passam por treinamento de apenas algumas horas antes de enfrentar o enorme desafio de lidar com públicos que, frequentemente, ultrapassam as dezenas de milhares. O curso de segurança da Zumbi, que é regular na grade de universidade, busca suprir a demanda por pessoas capazes de compreender a dinâmica do varejo e tomar decisões rápidas e acertadas. “O antirracismo precisa ser transformador. Não vamos esquecer, vamos transformar”, afirma Vicente.
Além dos 90 profissionais que serão formados pela Zumbi dos Palmares com financiamento do Carrefour, a varejista anunciou o fornecimento de 900 bolsas de estudos em inglês para pessoas negras e dois outros programas de aceleração profissional: o Afro Impacto Digital, focado na aceleração de startups de pessoas negras; e o Programa PODER, elaborado pela alta liderança negra da organização para o desenvolvimento profissional de colaboradores pretos e pardos da companhia.
Fonte: Exame