Por Adriana Mattos | O potencial de consumo da população, que envolve todo o dinheiro em circulação para gastos, volta a patinar depois da breve recuperação no início da pandemia. Na faixa de quase R$ 4,8 trilhões anuais, o total registra queda real – descontada a inflação -, e ainda sente peso da manutenção dos juros altos na economia, que reduz o poder de compra.
Economistas e consultorias acreditam que o movimento de redução na taxa básica (Selic) após agosto e o ambiente de inflação mais controlado a partir do segundo semestre tendem a aumentar o potencial de renda a ser convertida em consumo, mas ainda haverá desigualdades nesse processo, e ele será lento.
“Crescimento econômico não garante distribuição de renda e amplia consumo, o que garante é qualificação de mão de obra”, resume Fabio Bentes, economista da CNC, a confederação nacional do comércio, serviços e turismo.
Um conjunto de dados de diferentes pesquisas realizadas após a divulgação, em junho, do Censo Demográfico do IBGE, mostra que mais da metade dos dez Estados com as estimativas menos otimistas para o potencial de consumo neste ano são aqueles com os maiores níveis de desigualdade de renda, como Amapá, Amazonas Rio Grande do Norte e Pará.
A conclusão faz parte de levantamento realizado ao Valor pela Geofusion, empresa de coleta e análise de dados, que atende clientes do varejo e da indústria, cruzado com informações sobre distribuição do rendimento do IBGE, publicadas em maio.
“Quando olhamos os dados, os Estados com as melhores projeções para 2023 estão no Centro-Oeste e Sul, que dizemos que são locais que ‘não mexem o ponteiro’. Como são fortes na agropecuária, ainda registram baixo emprego de mão de obra, e há uma circulação de recursos para gastos concentrada nas mãos de poucos”, afirma Isabela Albuquerque, gerente de produto de dados da Geofusion. A explicação para isso é que a renda se espalha menos e em ritmo menor que nas regiões que têm mão de obra concentrada em atividades que empregam mais gente, como comércio, serviços e indústria.
Apesar de ter ocorrido um aumento no ritmo de geração de vagas na região central do país, entre 2019 e 2023, pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), o agro não é um grande gerador de empregos diretos. Do total de ocupados em março na região, 8% estavam no setores da agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura.
“É o contrário do que ocorre em São Paulo e no Rio de Janeiro, com serviços e comércio fortes, que até geram vagas e ‘espalham’ mais a renda, mas que registram projeções de crescimento bem menores”, diz ela. Para os dois Estados a estimativa da Geofusion é de alta de 2,57% e 0,25%, nominais, respectivamente, em 2023. Já Mato Grosso aparece com 11,94%, Paraná, 8,79%, e Goiás, 6,19% (ver quadro acima).
Trata-se de comparações de desempenho em mercados de consumo mais maduros, caso do Sudeste, ou com taxas de crescimento já elevadas nos últimos anos, caso do Centro-Oeste. É uma alta sobre bases mais fortes de comparação.
Por potencial de consumo, a Geofusion mede o quanto de dinheiro disponível é gasto pela população em determinada região, ou seja, são os valores que circulam por ano nas áreas analisadas.
Ao se cruzar o mapa da estimativa de expansão do potencial do consumo por Estado com o ranking do coeficiente Gini de 2022, do IBGE, entre as dez maiores taxas de crescimento no consumo, cinco são Estados “ricos”, com baixo nível de desigualdade econômica.
O que garante crescimento é qualificação de mão de obra”
Nesse grupo, estão, nessa ordem: Santa Catarina, Mato Grosso, Paraná, Mato Grosso do Sul e Goiás. O índice de Gini avalia a distribuição das riquezas de um determinado lugar, numa escala entre 0 e 1. Quanto mais perto de zero, menor a desigualdade.
Entre os dez Estados analisados com menores estimativas de aumento no potencial de consumo, seis registraram os piores índices de desigualdade e concentração de renda: Amapá, Rondônia, Amazonas, Pará, Acre e Tocantins.
“Se olharmos a receita nominal do comércio de 2011 a 2021, Estados do Nordeste, Norte e o Rio de Janeiro estão abaixo da expansão média, e os dados são muito aderentes ao material da Rais [relatório de informações sociais do governo] e às pesquisas de potencial de consumo”, diz Bentes, da CNC.
Para o economista, há alguns sinais de maior descentralização econômica, como a expansão de Santa Catarina. Ele cita também o Espírito Santo. “São regiões, do ponto de vista fiscal, com melhor qualidade das contas públicas, e com desenvolvimento de novas atividades”, diz.
Para Bentes, o aumento da digitalização do varejo, com redes espalhando suas estruturas de entrega pelo país, ajuda a democratizar o consumo. A reforma tributária, que desloca a cobrança do imposto da origem para o destino, também deve favorecer mais Estados fora do Sudeste no médio prazo. “Mas ainda dependemos de uma melhora desse cenário de investimentos em mão de obra qualificada e de crescimento econômico geral, que é o que gera ganho mesmo no longo prazo.”
A Geofusion se baseou nas informações da Pnad, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e em indicadores setoriais da FGV. Também usou a base de transações da Mastercard, que cobre 60% das operações por cartão no país, e o cadastro de dados da Receita Federal e da Big Data Corp, que captura informações de 1,5 bilhão de sites e bancos de dados públicos.
Além da inflação, que afeta o poder de compra e limita o ganho real, há o impacto da desaceleração no ritmo de expansão da população e do efeito do aumento no total de domicílios particulares vagos no potencial de consumo de certas regiões. Ambos os dados foram publicados em junho no Censo do IBGE, afirma Marcos Pazzini, responsável pelo IPC Maps, outro indicador de potencial de consumo, da IPC Marketing Editora.
O número de casas vagas no Brasil subiu 87% entre 2010 e 2022, chegando a 11,7 milhões, o que leva a uma queda na circulação de consumidores nos locais afetados.
Os três municípios com maior percentual de domicílios vagos, segundo o IBGE, são nordestinos: São João do Jaguaribe, no Ceará, Canavieira, no Piauí, e Bom Sucesso, na Paraíba.
“Houve um esvaziamento recente de certas cidades, e nós ainda estamos estudando esse movimento. Pode ter sido migração definitiva de pessoas na pandemia, após a crise, e que foram morar em outros municípios, buscando melhores condições de aluguel ou renda. E isso tem impacto no potencial de consumo”, diz Pazzini.
Segundo pesquisa da IPC Maps publicada em junho, o potencial de consumo no Brasil poderá chegar a R$ 6,7 trilhões em 2023, aumento real de 1,5% ante a 2022. No ano passado a alta foi de 4,3%. É um levantamento diferente do da Geofusion, que em 2022 apurou potencial de R$ 4,77 trilhões, praticamente estável sobre 2021. Descontada a inflação (IPCA), há queda de 5,31%, calcula o Valor Data.
Para 2023, a companhia iniciou o levantamento de estimativas iniciais por Estado, mas ainda não concluiu o relatório nacional.
Nessa conta das consultorias especializadas, também há o impacto do custo financeiro da taxa de juros na renda.
Apesar do ambiente de taxa básica em queda após agosto, os efeitos para o consumidor serão vistos após o fim de 2023 e início de 2024, dizem os consultores. A manutenção dos juros em alto patamar desde o fim de 2021 comprometeu a renda atual das famílias.
Para a gerente da Geofusion, o ritmo de crescimento da população abaixo do projetado (203 milhões de pessoas, inferior aos 213 milhões previstos), somado a outros fatores, impacta nas projeções de consumo, e afeta planos de investimentos das empresas. Indústrias e redes de varejo contratam consultorias e compram relatórios de empresas de dados para a definição de estratégias de investimentos futuros por região.
O atual cenário de demanda ainda em recuperação vem obrigando as empresas a segmentar ainda mais estratégias de lançamentos e de vendas.
Para Ana Paula Tozzi, CEO da AGR Consultores, apesar da expansão forte no centro-sul, as companhias não vêm alocando recursos majoritariamente nessas duas regiões, por causa do volume e da escala gerados em vendas no Sudeste e Nordeste. “Não dá para jogar todas as fichas lá, pela força das classes médias nos outros mercados, e até porque esses consumidores, especialmente do Centro-Oeste, migram para São Paulo e Rio para consumir fortemente nessas regiões.”
Fonte: Valor Econômico