Não se assuste se, no futuro, um jargão atual do mercado financeiro como “unicórnio” virar sinônimo de palavra que caiu em desuso — ou que, no máximo, será lembrada por representar um animal mitológico. Se hoje é referência para definir as startups que possuem avaliação de preço de mercado acima de 1 bilhão de dólares, no futuro o termo pode não ser lembrado mais dessa forma. Com a pandemia do novo coronavírus (Covid-19), os investimentos secaram e o ecossistema desses novos negócios foi colocado à prova. Fundos de private equity e venture capital de grandes conglomerados financeiros já reveem seus planos de aportes, o que causa temor para algumas dessas empresas recém-nascidas — principalmente para aquelas que queimaram caixa para crescer nos últimos anos e que precisam, desesperadamente, realizar novas rodadas de captação para se manterem vivas. Um grande sinal de alerta foi aceso recentemente, quando o conglomerado japonês SoftBank — sócia de Alibaba, Rappi e Gympass, a empresa de Masayoshi Son é uma dos maiores apoiadoras de companhias em desenvolvimento no mundo — desistiu de uma oferta pública de aquisição de 3 bilhões de dólares em ações adicionais da startup de escritórios compartilhados WeWork, o que agravou ainda mais a situação da empresa, que nunca deu lucro e se vê à beira de um abismo. Mas não só ela. Diversas startups de mobilidade urbana, imóveis e hotelaria estão ameaçadas.Especialistas ouvidos por VEJA acreditam que a hecatombe de algumas das maiores startups poderá fazer com que os investidores busquem não grandes potenciais unicórnios no futuro, e sim camelos. Isso mesmo. Camelos. Os aportes, agora, levarão em consideração não só o potencial “disruptivo” da proposta das empresas em estágio inicial, mas, sobretudo, a resiliência e longevidade do negócio. “Os investidores estão procurando um novo bicho: o camelo, que anda grandes distâncias com pouca água e sobrevive 100 anos”, diz Edson Machado, sócio-diretor da EMF Consulting e professor do IBMEC. “O mercado de inovação sempre foi de altíssimo risco, até pela taxa de mortalidade das empresas. Do ponto de vista dos investidores, acredito que não será mais possível que o ecossistema sobreviva pelo modelo antigo”. A pandemia injetou um cenário de aversão ao risco, o que dificultará o acesso ao capital. Para Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, a SBVC, os investidores ficarão mais seletivos num momento pós-pandemia. “Investimento em startup é de alto risco. Esse perfil fica com um apetite menor neste momento, já que todas as empresas querem preservar o caixa”, diz. “A maioria dessas empresas em estágio inicial roda sem ponto de equilíbrio financeiro. Se ela estiver precisando captar dinheiro no segundo semestre do ano, o que é muito comum que aconteça, pode ter mais dificuldade para sobreviver”.
Maior investidor em startups no mundo, o SoftBank também não deve sair ileso da crise gerada pela pandemia do coronavírus. Muito pelo contrário. O conglomerado japonês emitiu uma nota, na segunda-feira 13, em que projeta um prejuízo de 16,6 bilhões de dólares para o fundo Vision Fund, de 100 bilhões de dólares. Será o primeiro prejuízo em 15 anos. As finanças do SoftBank estão sendo pressionadas pela aposta desastrosa na WeWork e em outras startups, como a operadora de satélites OneWeb, que acaba de entrar num processo de recuperação judicial. Em meio a uma crise dramática, a WeWork perdeu dezenas de bilhões de dólares, demitiu milhares de funcionários e decidiu processar seu maior acionista. No processo de abertura de capital, a startup abriu pela primeira vez seus números. Se a receita foi estrondosa — 1,8 bilhão de dólares em 2018, cerca de 400% a mais em relação aos números de 2016 — o prejuízo foi na mesma grandeza: 1,9 bilhão de dólares em 2018, mais de 300% acima das perdas de dois anos antes.
Diante da tempestade perfeita, foram as ações do conglomerado nipônico que sofreram. Do início de janeiro a 19 de março, a queda do SoftBank foi de 41%. Depois disso, no entanto, a empresa conseguiu se recuperar e fechou o pregão da quinta-feira, 30, com alta de 1,4% em seus papéis no ano. “Enquanto o bull market traz liquidez e demanda risco, fica difícil colocar de pé a tese que questiona os fundamentos de venture capital. A verdade é que poucos fundos de venture capital têm retorno. Mas quem vai ser contra a tese de gente ‘ultra qualificada’ e que atende dores significantes da sociedade?”, afirma Carolina da Costa, sócia da Mauá Capital e vice-presidente de graduação do Insper. Outro fiasco foi o processo de abertura de capital da Uber na bolsa de Nova York. Ainda que a empresa tenha conseguido levantar 8,1 bilhões de dólares no IPO, o valor foi 20% menor do que o projetado pela companhia antes de todo o processo.
No Brasil, as startups tentam se manter em pé com a pandemia. A Mobiauto, uma plataforma de compra e venda de carros novos e usados, manteve seus 74 funcionários na crise. A decisão do CEO é não demitir ninguém. Para isso, a startup utilizou o programa “antidesemprego” anunciado pelo governo federal recentemente. “Nós estamos utilizando o programa de redução de jornada e salário”, diz Sant Clair de Castro, CEO e cofundador da Mobiauto. Para crescer no imaginário do consumidor local, a empresa estava patrocinando o Campeonato Carioca de futebol e adquiriu um horário na grade de programação da Rede TV! para exibir um programa exclusivo. Ambas as atrações estão paralisadas por conta da pandemia. Recentemente, firmou um acordo com a Creditas, startup do setor financeiro, para conseguir digitalizar o processo de transações bancárias. A capixaba Zaitt, startup que almeja revolucionar o supermercado brasileiro, assim como faz a Amazon Go nos Estados Unidos, acredita que, neste momento, as empresas que conseguirão prosperar perante ao vírus são aquelas que investirem em tecnologia. “Neste momento de pandemia, temos seguido o nosso plano de expansão, que é levar a Zaitt para trabalhar com franquias”, diz Rodrigo Miranda, fundador e CEO da Zaitt. Apesar do momento ter pego a companhia no contra-pé, ele acredita que, seu negócio, tem potencial para prosperar na crise.
É um cenário perigoso para as novas companhias de tecnologia. Dinheiro escasso, demanda em baixa e o questionamento constante sobre a sobrevivência. Muitos setores já eram questionados, como as empresas de patinetes. Mas outras, que estavam nadando de braçadas nos últimos anos, precisaram fazer ajustes em pleno voo. É o caso da Oyo, uma empresa que faz reservas de hotéis e também apoiada pelo Softbank. Ela viu seu crescimento disparar nos últimos anos, mas, com o fechamento dos empreendimentos e o completo colapso do turismo, a empresa precisou demitir 500 dos 700 funcionários que estavam trabalhando no Brasil. Em todo o mundo foram mandados embora 5.000. “Isso é culpa do burning money. Esse modelo de queima de caixa vai ficar pra trás”, explica Edson Machado. “A reestruturação do setor, que era para acontecer em cinco anos, agora vai acontecer em cinco meses”, conclui. O alerta é claro para empreendedores, investidores e até mesmo governos: o jogo virou — e o bicho mudou.
Fonte: Veja