Por Juliana Causin | Com as apostas esportivas on-line em ascensão no mundo, e o Brasil entre os países que mais acessam as plataformas, jogos virtuais deste e de outros tipos entraram de vez no orçamento do brasileiro. O fenômeno abre um debate sobre o quanto o “efeito bets” pode afetar o consumo das famílias e, consequentemente, outros setores da economia.
Varejistas têm manifestado essa preocupação, e consultorias, institutos de pesquisa e bancos tentam estimar a influência das plataformas de apostas e jogos on-line nos gastos do brasileiro em outras atividades, do supermercado ao lazer.
Na semana passada, o diretor de Política Monetária do Banco Central, Gabriel Galípolo, em um evento no Rio, comentou que alguns desses estudos sugerem que o aumento da renda verificado recentemente no mercado de trabalho não tem se traduzido em alta correspondente no consumo e na poupança das famílias. Parte poderia estar “vazando” para apostas, afirmou.
O ano tem sido de expansão no contingente de brasileiros adeptos das apostas on-line, cuja regulamentação entra em vigor em 2025. Levantamento recente do Instituto Locomotiva indica que 52 milhões já apostaram na modalidade ao menos uma vez. Há seis meses, eram 38 milhões.
— As apostas começaram por quem tem mais conhecimento de futebol e foram crescendo no dia a dia dos consumidores. Foi saindo do perfil do “boleiro” e indo mais para a sociedade de uma maneira geral — afirma Renato Meirelles, presidente do Locomotiva.
O mercado de apostas esportivas deve movimentar até R$ 130 bilhões no Brasil este ano, calcula a Strategy&, consultoria estratégica da PwC. No ano passado, o estudo estima que o valor tenha ficado entre R$ 67,1 bilhões e R$ 97,6 bilhões, o que equivale a até 0,9% do Produto Interno Bruto (PIB).
O efeito no orçamento pessoal é apontado como mais significativo para as classes D e E, que têm flexibilidade financeira mais limitada para novos gastos. Os analistas da PwC estimam que as apostas já representam 1,38% do orçamento médio familiar nos estratos sociais de menor renda no país. O índice é cinco vezes o de cinco anos antes: 0,27%. O cálculo leva em consideração dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE.
— Cada vez mais tem uma participação relevante das apostas esportivas no orçamento das famílias brasileiras, o que mexe com a renda final do consumidor. Para as classes mais baixas, já houve substituição de determinados gastos — diz Luciana Medeiros, sócia da PwC e uma das responsáveis pela pesquisa.
O estudo da PwC projeta que a despesa dos brasileiros com apostas esportivas (em todas as classes sociais) somou entre R$ 40 bilhões e R$ 50 bilhões em 2023. É mais de 40 vezes o que se gasta com ingressos de futebol e 12 vezes o que se consome no cinema.
Na mira do varejo
O aumento do engajamento dos brasileiros nas bets acompanhou a explosão de plataformas de apostas no país desde 2018, quando a atividade foi legalizada, no governo de Michel Temer. Em 2020, segundo a PwC, eram 51 marcas de apostas esportivas. Até o primeiro trimestre de 2023, esse número havia saltado para 308, um crescimento de 500%.
Faltam dados precisos sobre o total de plataformas acessadas pelos brasileiros, incluindo outros tipos de jogos on-line que envolvem prêmios. O número pode chegar a 1,2 mil, dependendo da fonte.
Apesar de as apostas esportivas e jogos como o “do Tigrinho” terem lógica e funcionamento diferentes, as duas modalidades por vezes se cruzam. Nos sites mais populares de bets, por exemplo, é comum haver um espaço dedicado à categoria “cassino”.
Em outras economias emergentes, como Índia, México, África do Sul e Colômbia, o crescimento também é acelerado, observa Gerson Charchat, sócio da PwC. A migração de plataformas globais para esses mercados, com a desaceleração dos mais consolidados, foi um dos motivos, assim como o aumento do tempo dedicado pelas pessoas a ferramentas digitais com a popularização dos smartphones.
A alta no consumo do brasileiro com o jogo virtual começou a acender o sinal amarelo em setores do varejo no ano passado. Com um conjunto de indicadores macroeconômicos mais positivos, como desemprego em queda e massa salarial em alta, além da inflação contida, as apostas apareceram como uma das explicações para o desempenho abaixo do esperado das vendas.
— O que se esperava é que, com os níveis de emprego e renda atuais, deveria haver um efeito em mais vendas no varejo e resultados não tão concentrados nos segmentos mais voltados para o consumo básico — diz Ruben Couto, analista de varejo do Santander.
Ele é um dos autores do relatório do banco que indicou as apostas como um dos fatores de deslocamento do consumo dos brasileiros. A análise aponta que as atividades de jogo (on-line e tradicionais) chegaram a 2,7% da renda das famílias brasileiras, acima do 0,8% de 2018. A alta contrasta com a queda, no mesmo período, da participação no orçamento de gastos com vestuário, calçados, eletrônicos e móveis.
O analista pondera que as apostas não podem ser apontadas como o único fator que seguram a retomada do varejo, mas diz que o aumento do gasto nas plataformas é um elemento significativo. Para ele, não é mais só “Renner concorrendo com C&A ou Shein”, mas também com as bets.
Em apresentações internas, empresas varejistas já colocam as bets como um concorrente tal qual os sites de compras internacionais. A estimativa que circula entre executivos do setor é de que o “efeito bets” represente um desconto de 5% no faturamento do varejo hoje.
Impacto não é consenso
O primeiro a falar publicamente foi o CEO do Assaí, Belmiro Gomes, em uma divulgação de resultados para investidores e em entrevista ao GLOBO no início do mês. O líder da rede de atacarejo disse que bets e jogos do tipo cassino fazem um “estrago” no bolso da população de baixa renda, impedindo a retomada dos níveis de consumo pré-pandemia.
Há dez dias, a varejista de calçados e roupas SideWalk pediu recuperação judicial e apontou as bets como um dos motivos de suas dificuldades nas vendas, informou o Valor.
Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) com a AGP Pesquisas indicou que 63% dos que fazem apostas on-line no país tiveram sua renda comprometida de alguma forma pela prática. Quase um quarto desses diz ter deixado de comprar roupas, e 19% reduziram gasto no supermercado.
— É um debate bem mais profundo — pondera Eduardo Terra, presidente da SBVC. — Tem uma discussão de proposta de valor, de para onde está indo a renda das pessoas.
A relação entre aposta on-line e freio no consumo não é consenso. Analistas do Itaú afirmaram em um relatório, na semana passada, que “não apoiam esta hipótese” e que as vendas no varejo “têm apresentado resultados dentro do esperado”.
Com dados de balanço de pagamentos do Banco Central, o Itaú estimou que os brasileiros movimentaram R$ 68 bilhões em jogos virtuais (incluindo bets e os do tipo “Tigrinho”) no acumulado de 12 meses até junho. O gasto líquido, efetivamente despendido, após a dedução do que os apostadores ganharam, foi de R$ 23,9 bilhões, o equivalente a 1,9% da massa salarial.
Para a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), que representa empresas como BetNacional e GaleraBet, as pesquisas que indicam a migração de gastos para bets “não têm embasamento fático”.
Regulação prevê ferramentas para segurança dos usuários
Numa sondagem da Hibou, empresa de pesquisa de mercado, dos brasileiros que dizem apostar em bets, mais da metade (56%) começou de um ano pra cá. A maioria aposta de R$ 10 a R$ 50 por rodada.
— A gente percebe que a loteria é buscada pelos brasileiros para um grande prêmio. Nas apostas on-line, as pessoas buscam ganhos menores e mais rápidos — diz Ligia Mello, sócia da consultoria.
Para Roberto Kanter, economista e professor de MBAs da FGV, o apelo emocional, que une paixão por esportes e a possibilidade de ganho financeiro, é um dos aspectos que fazem as bets tão populares:
— Existe um aspecto subjetivo. Mesmo que a pessoa não desembolse R$ 200 de uma vez em uma aposta, tem uma somatória de valores pequenos que pode fazer diferença. Aí a decisão de deixar de comprar algo para apostar pode, nem sempre, ser racional.
A regulação vai impor ao setor instrumentos para coibir o uso abusivo de apostas on-line e evitar vício e endividamento dos apostadores. A partir de janeiro de 2025 entram em vigor as regras aprovadas pelo Congresso, com normas do Ministério da Fazenda.
As plataformas terão de pagar pela licença para operar no Brasil e recolher impostos, mas também de cumprir salvaguardas para a segurança dos usuários. Terão de seguir regras para publicidade e criar ferramentas para identificar e coibir transtornos, como limite de valor por aposta e de tempo gasto na plataforma, a exemplo de países com mercados mais maduros, como o Reino Unido.
Em nota, a ANJL diz que os casos de superendividamento e comprometimento de renda “são raríssimos” diante do universo de milhões de jogadores.
Fonte: O Globo