Por Adriana Mattos.
Nos últimos dias, uma das perguntas que mais circularam entre investidores se referiu ao tamanho da crise que se abateu sobre as empresas de varejo. “Acabei de sair de uma reunião de comitê de uma varejista e a questão principal era qual seria a próxima a tombar”, disse, na última sexta-feira, um membro de conselho de administração de uma rede. Há uma percepção, nas últimas semanas, da existência de um efeito dominó nas empresas do setor, num cenário de turbulência generalizada.
Apenas no último mês, a Americanas relatou rombo contábil de R$ 20 bilhões e a Marisa Lojas iniciou conversas para renegociar dívidas brutas de curto prazo de menos de R$ 300 milhões, dizem fontes. A Livraria Cultura teve a falência decretada pela Justiça na quinta-feira, e a concorrente Saraiva, que permanece em recuperação judicial, vem enfrentando adiamento de assembleia de acionistas e críticas de sócio à governança na rede.
Olhando mais para trás, a Máquina de Vendas, dona da Ricardo Eletro, reverteu a sua falência decretada duas vezes em primeira instância, e retornou, meses atrás, à condição de rede em recuperação judicial, mas o caso ainda aguarda julgamento, já que a Justiça cita, na ação, o efeito suspensivo da falência por meio de recurso.
O Valor apurou que duas empresas ligadas ao comércio digital, da última leva de abertura de capital, em 2021, analisam iniciar uma recuperação extrajudicial, para alongar pagamentos a credores.
Especialistas concordam que há uma concentração de casos desde a segunda metade de 2022, porém diretores de redes e consultores não veem problemas estruturais no setor, ou sinais de uma onda de quebradeira de negócios. Além disso, alertam que não dá “para colocar tudo na mesma cesta”. E há situações que essas empresas enfrentam que não são comparáveis, e são próprias de seus setores – e variam segundo a intensidade da crise que cada uma atravessa.
Em comum a quase todas – excluindo a Americanas, que enfrenta uma grave crise contábil –, há uma aceleração na alavancagem financeira, após aumento nos investimentos feito com empréstimos, cujos juros dispararam em 2015 e 2016, e entre 2021 e metade de 2022. A taxa alcançou 14,25% e 13,75% ao ano, respectivamente, nesses dois intervalos. Isso fez com que as despesas financeiras da redes na B3 subissem cerca de 176%, de setembro de 2021 a 2022, segundo o Valor Data.
Varejistas brasileiras se endividam regularmente porque trata-se de um setor altamente competitivo e que demanda muito recurso para financiar capital de giro, abertura de lojas e novas tecnologias – isso num ambiente de demanda altamente sensível a juros.
Ocorre que, mesmo nesse cenário, a grande maioria das varejistas não abriu processo de recuperação judicial ou de reestruturação de dívidas. Em determinados casos, há um histórico de erros de gestão e planos que não funcionaram.
“Quem para no varejo corre o risco de morrer. Só que quem anda muito rápido, sem disciplina financeira, bons fundamentos e boa execução pode ter o mesmo fim”, diz Alberto Serrentino, sócio e fundador da Varese Retail. “O varejo não é um setor de empresas frágeis ou vulneráveis, mas o varejo no Brasil é cruel. É extremamente competitivo, e reage rapidamente às decisões que se tomam. Não dá para cometer erros e demorar a consertar, porque o preço que se paga por isso é altíssimo”, diz ele.
Na Marisa, além de buscar a renegociação de dívidas de curto prazo, foi contratada a Galeazzi Associados para revisão de despesas e possíveis cortes de custos. A cadeia começou a ver sinais de melhoras em alguns números no fim de 2019, após anos de mudanças em seu posicionamento de preço e marca, mas a pandemia veio quando ela tentava implementar um nova política comercial.
Passada a fase aguda da crise sanitária, em 2022, as vendas na rede caíam 5% de julho a setembro, por causa do canal digital (suas rivais na bolsa não caíram), com efeito no fluxo de caixa.
“Há uma busca por melhor gestão dos ativos e a Marisa tem que se voltar mais para isso também. Talvez se não existisse o rombo na Americanas, que afugentou investidores e os bancos do setor, o anúncio da empresa não fizesse tanto barulho. Mas mesmo assim, é preciso dar sinais mais claros de ganhos de eficiência”, diz ele.
No mesmo comunicado ao mercado sobre a dívida, a rede relatou a saída do diretor-presidente Adalberto dos Santos – Alberto Kohn, atual vice-presidente comercial, assume interinamente. O anúncio não tem relação com a renegociação de dívidas, mas confundiu o mercado, o que ajuda a gerar esse ambiente de dúvidas no setor.
O Pipeline, site do Valor, informou que a saída de Santos ocorreu após pressão maior para melhorar os números, e por razões pessoais. Foram quase R$ 100 milhões de prejuízo de julho a setembro. Com a Galeazzi, a Marisa quer melhorar sua “rentabilidade e competitividade”, diz em nota ao Valor, e busca “mapear oportunidades” para ser mais eficiente. Fala que, apesar de trazer a consultoria para uma revisão, ela vê avanços em seu controle de custos. E pelo lado dos bancos, afirma que há “boa vontade para se chegar a bom termo”.
Para consultores, os clientes ficaram confusos sobre o que a Marisa quer vender, porque ela entrou no fast fashion, depois saiu. Hoje, quer vender qualidade a preço baixo, diz um consultor.
Na visão de Eduardo Terra, sócio-diretor da BTR Educação e Consultoria, novas reestruturações de dívidas e recuperações extrajudiciais devem afetar o setor neste ano. Ele lembra que empresas de varejo, com força no digital, consideram certos gastos como investimentos e não despesas, o que pressionou menos os resultados no passado, mas essa conta começa a chegar de outra forma. “Elas foram se financiando para manter seu crescimento quando tínhamos juros baixos, de 2% ao ano. Isso dava para ir amortizando a dívida. Com a Selic em 13,75%, as empresas até vão ter Ebitda [juro antes de juros, impostos, amortização e depreciação] nos próximos trimestres, já que investimento ela não põe como despesa. Mas ela não vai gerar caixa pois as amortizações agora pesam”.
Dados do Valor Data mostram que a relação entre dívida líquida e Ebitda em 48 empresas fechadas e abertas passou de 0,62 em setembro de 2021 para 1,41 em setembro de 2022 – abaixo de duas vezes, média considerada aceitável, mas em aceleração rápida.
Terra lembra que houve um aumento do risco do varejo na visão dos bancos, após a crise da Americanas . “Mas não vejo um risco generalizado ou um problema estrutural do setor. A Americanas é um caso específico e ainda se investiga o que de fato ocorreu”.
Outro fator que impactou o mercado foi a decretação da falência da Livraria Cultura, na quinta-feira. O despacho judicial citou a existência de fraude em movimentações financeiras de sócios, num momento em que a Americanas investiga se o rombo de R$ 20 bilhões teve ação fraudulenta.
Para Terra, no caso da Cultura e Saraiva, houve impacto da queda do mercado de livros e da forte concorrência com a Amazon.
O comando da Saraiva vê efeitos da queda do poder de compra do brasileiro desde 2014, aumento nos custo de operação e a expansão da Amazon no canal on-line. Mas cita também impacto negativo de decisões tomadas. Marcos Guedes, CEO da Saraiva, diz que em 2018 a cadeia estava trocando seu sistema de gestão (ERP) e que a empresa perdeu, nos meses de outubro e novembro, mais de 50% de suas vendas porque o sistema não funcionou corretamente.
Para ele, há um peso relevante do cenário econômico na crise do setor, que “foi uma catástrofe para o mercado e principalmente o modelo de grandes lojas passou a ser questionado”. “O livro não acompanhou a inflação, as margens das livrarias passaram a ficar cada vez mais apertadas. A venda do livro em megastores, com lojas enormes, necessita de um novo modelo de negócio”.
No caso da Ricardo Eletro, a decisão de não integrar redes adquiridas após 2010, num modelo de governança frágil, pesou num ambiente econômico que se deteriorou. “Havia desentendimentos entre sócios de questões estratégicas e também banais. A companhia também não tinha conseguido sinergia de integrações [das fusões] e tinha alto custo de financiamento”, disse Pedro Biachi, presidente da empresa. “Mas vínhamos numa crescente em janeiro e fevereiro de 2020 [antes de pedir recuperação], aí veio a pandemia e o fechamento de lojas”, diz o executivo. A Justiça liberou recursos para abertura de 3 a 5 lojas (são duas hoje) e deve mudar seu nome para “Nossa Eletro”.
Fonte: Valor Econômico