Por Pedro Diniz
Theo, 21, prefere nem escovar os dentes com a água da torneira de sua casa. Cozinhar, nem pensar. “Sabe aquela coisa de pegar a água para fazer café? De jeito nenhum”, diz o professor de educação física, que preferiu ter o nome trocado para preservar sua identidade, assim como os outros moradores da pequena Toritama com quem o Valor conversou.
É que há coisas que não se diz a céu aberto nessa cidade do agreste pernambucano, cujo apelido “capital do jeans” fez crescer o entorno, alimentou famílias como a dele – que migrou de São Paulo há mais de dez anos para trabalhar nas confecções locais – e fez o lugar produzir estimados 16% de todas as peças de denim consumidas no país.
A céu aberto, porém, falam alto problemas que pareciam superados e explicam o receio do jovem, ainda que, hoje, a cidade tenha acesso a poços e caminhões pipa. Entre terrenos baldios tomados por pequenas montanhas de retalhos queimados, ainda se sente os odores do esgoto azul, tal qual as calças, correndo pelas margens da rodovia PE-90, além de uma fumaça algo doce. Ela sai das chaminés de lavanderias clandestinas nas primeiras horas da manhã e embaça a montanha de Vila Canaã, onde uma cruz abraça a cidade (ver Em Toritama, 37% das casas são confecções).
A lavagem é a fase final do processo de confecção das peças, na qual pelo menos 5 mil litros de água são dispensados num único modelo para produzir tons mais claros e o amaciamento do tecido. Sem nenhum tipo de tecnologia, como a lavagem a laser, o consumo pode chegar a 11 mil litros numa única peça.
Há várias dessas “terras prometidas” da moda no Brasil. Apesar do valor gerado por sua indústria fashion, o país despejou em 2021 um total de 4,58 milhões de toneladas de resíduos têxteis, couro e borracha, segundo o primeiro levantamento da Associação das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Os números englobam os restos de produtos de moda dispensados no lixo comum por residências e confecções que não fazem a destinação industrial de seus resíduos.
Considerando a média estimada pela Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), de que a manufatura nas confecções geraria até 110 mil toneladas de sobras por ano, e o descarte da indústria calçadista, que não dispõe de dados do montante de resíduos gerados pela cadeia, a situação é crítica.
O apagão de dados nos diferentes segmentos impede uma leitura fidedigna do tamanho do despejo em lixões, afluentes e aterros. Estes últimos são a destinação mais correta disponível para o resíduo, mas não sustentam no longo prazo a pressão do descarte conjugado às aspirações de crescimento da indústria. Só em 2021, foram produzidas no país 8,1 bilhões de peças.
Para o diretor da Abrelpe, Carlos Silva Filho, seria certo afirmar que, no Brasil, “estamos muito pior que no Atacama”. Presidente da Associação Internacional de Resíduos Sólidos (SIWA), ele se refere ao desastre ambiental revelado no deserto do Chile, onde 40 mil toneladas de roupas por ano são descartadas pelos países ricos para apodrecerem ali.
Levando em consideração que 40% de todo o lixo brasileiro não tem “destinação correta” -ou seja, acaba em lixões- e o fato de que, Filho afirma, “nosso sistema de descarte é pulverizado em diferentes partes do país, diferentemente do Atacama, onde o problema está restrito a um só lugar”, a solução para o problema brasileiro envolve esforços tanto de quem produz quanto de quem descarta, a partir de casa, as próprias roupas e acessórios.
Essa urgência, vale dizer, não está restrita só a questões morais relativas à crise ambiental em curso, mas também a fatores econômicos. O desejo do Brasil de integrar a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, passa por provar ao mundo que suas práticas estão em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Dar destinação correta aos resíduos é um deles.
Somente as regiões do Brás e do Bom Retiro, em São Paulo, despejam cerca de 57 toneladas de lixo têxtil por dia – pelo menos 14 mil toneladas no acumulado dos dias úteis do ano, segundo dados de um relatório divulgado em 2022 pela ONG Modefica em parceria com a FGV. Não se sabe quanto disso para nas mãos de catadores para ser reciclado. Sabe-se, porém, que parte importante estaciona na rua à espera da coleta e um outro percentual acaba em bueiros.
Outra das “terras prometidas” do setor e de onde se estima partir mais da metade da moda feminina consumida no país, esse polo paulistano é exemplo do primeiro degrau quebrado na relação do país com seus resíduos de moda.
É que muitas grifes não terceirizam apenas o corte nas confecções instaladas ali, mas também a responsabilidade sobre o lixo. Na lei paulistana, empresas que geram até 200 litros de resíduos por dia não se enquadram na categoria de grandes geradores, portanto, estão isentas da obrigação de contratar empresas para a coleta. Menos custos fixos, mais barganhas no preço da peça.
Para combater esse “jeitinho” de poluir sem poluir, um projeto do Sinditêxtil-SP, o Retalho Fashion, foi lançado em 2012 com a promessa de unir a cadeia local, junto aos catadores, para separar e destinar as sobras para reciclagem. Segundo uma fonte a par do processo, devido às mudanças na gestão municipal e à falta de acordo com cooperativas, a ideia nunca saiu do papel. Um novo desenho deve ser apresentado neste ano ao poder público.
“Ninguém no mundo tem uma bala de prata, um modelo único que resolva a questão [dos resíduos]. Se compararmos com outros países, o Brasil está mais avançado, principalmente na indústria têxtil, que tem pilares bem definidos na agenda ambiental”, diz o presidente da Abit, Fernando Pimentel.
Ele reconhece a frustração em ver as mudanças acontecerem a passos lentos, mas reforça que elas ocorrem e remam contra um padrão de “suicídio coletivo” das empresas que insistem na produção linear, sem planos de logística reversa e gestão de resíduos.
É nesse contexto que os maiores grupos de moda do Brasil, listados em bolsa, correm para ser modelos e afastar dos negócios a pecha de poluente vinculada ao setor. No Soma, dono de marcas como Animale, Farm e Hering, a política de “aterro zero” é construída de forma conjunta com os departamentos criativos das marcas e empresas que, por exemplo, desfibram o excedente têxtil da mesa de corte, compram os poucos rolos que não serão usados por nenhuma das marcas ou renovam peças com defeito.
O grupo Soma informou que só no segundo semestre de 2022, conseguiu que 99% das 1,5 mil toneladas de sobras de sua produção fossem desfibradas. Parte retorna como nova fibra para fabricar peças das linhas sustentáveis. A Hering já recicla a totalidade dos resíduos, enquanto as irmãs atingiram a marca de 96%. A meta é que, até 2030, nada vá para aterros.
A diretora de ESG do Soma, Taciana Abreu, afirma que o esforço envolve a criação e o consumidor. Na primeira etapa da produção, antes de a equipe de estilo bater o martelo sobre um modelo, o mostruário de peças-piloto é feito digitalmente em formato 3D, dispensando a fabricação de várias roupas. A iniciativa permitiu uma economia de 25% na geração de resíduos na etapa e, de quebra, dez dias de antecipação no lançamento. Um “provão on-line” com clientes passou a ser aplicado e, a partir dele, a empresa atingiu índice de 70% de assertividade nas coleções, reduzindo sobras.
“O que alimenta a filosofia da produção linear é a máxima de que para alguém ganhar, alguém tem de perder, crescendo indefinidamente, ano após ano, espremendo toda a cadeia de trás. A chave é o cálculo financeiro, colocar a logística reversa nos custos, porque se isso não estiver claro, a maioria não vai abrir o caixa para mudar”, diz Abreu.
A logística reversa é o centro do debate sobre a inclusão da moda entre os segmentos da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que obriga empresas a oferecer pontos de descarte para seus produtos e incentivar o despejo correto por quem consome. Além do Soma, o grupo Arezzo&Co e varejistas como Renner e C&A já implantaram projetos de coleta.
A Renner coletou 10,9 toneladas de roupas, frascos e embalagens de clientes entre 2017, quando iniciou o projeto, até 2021. A rede calcula que, só no último ano dessa conta, evitou o despejo de 830 quilos de resíduos e reinseriu as peças em programas de “upcycling”. A C&A, por sua vez, estima ter coletado 52 toneladas nos últimos seis anos com o Movimento Re.Ciclo, sendo 17 toneladas só em 2022.
Outro entusiasta da política de não jogar nada em aterros, o grupo Arezzo processa a maior parte dos resíduos para gerar energia na indústria cimenteira de Santa Rita, no Rio Grande do Sul. A empresa informa que em 2022 gerou pouco mais de 900 toneladas de resíduos, todos recuperados, ante a marca de 811 toneladas do ano anterior.
A diretora de sustentabilidade do grupo, Suelen Joner, dá a dimensão do desafio ao calcular que tratar o próprio resíduo onera em três vezes o custo em relação ao descarte em aterros. “Mas esse é o caminho, porque o lixo da indústria é um passivo que fica no aterro para sempre”, explica Joner.
Ela ressalta que, diferentemente da roupa, pouca coisa na composição do calçado é passível de ser reutilizada, “a não ser partes para fazer um novo cabedal ou solado”, e que, por esse fator, a empresa começa tratativas para definir metas de ampliação do sistema de coleta em lojas, que gerou bons resultados em pontos da grife Ahlme.
É devido a mudanças de rota como essas que, segundo Fernando Pimentel, da Abit, o Brasil deveria ser visto como referência. “Nunca fomos lixão das marcas de países desenvolvidos”, diz, citando o caso do Atacama. “Eles que deveriam ter vergonha de alardear uma sustentabilidade hipócrita, dita correta, que despeja o lixo longe de casa.”
Fonte: Valor Econômico