Por Pedro Arbex – Nos últimos dias, executivos e acionistas do varejo de vestuário têm focado 100% de seu tempo numa ameaça existencial comum: a isenção do imposto de importação nas compras internacionais de até US$ 50, que beneficia a Shein e prejudica concorrentes como a Lojas Renner, Riachuelo, Marisa e C&A, que jogam pelas regras locais.
Numa conversa com o Brazil Journal, Fernando Yunes, o country manager da empresa no País, disse que a gigante do ecommerce recebeu com surpresa a notícia da isenção, já que o Governo vinha sinalizando que faria o contrário.
“O Brasil está indo na contramão do mundo,” disse o executivo. “A Índia proibiu essas empresas chinesas de venderem lá. Nos Estados Unidos, esse tema está no departamento antitruste e estão processando e vai ter consequência. Na Europa, também estão criando barreiras pelas práticas que muitas dessas empresas têm.”
Yunes disse que espera que a medida seja revertida o quanto antes.
“Privilegiar essas empresas estrangeiras versus os vendedores e fabricantes locais? Eu não consigo acreditar que isso vai ser feito de forma estrutural,” disse ele. “Acho que foi uma maneira de lançar o Remessa Conforme, e em paralelo agora eles devem estar definindo qual vai ser o imposto de importação para ser colocado o quanto antes.”
Abaixo, os principais trechos da conversa.
Qual a visão de vocês em relação a essa portaria publicada pelo Governo que isentou as vendas internacionais de até US$ 50 do imposto de importação?
São dois pontos principais. O primeiro é que o projeto Remessa Conforme, a gente achou um projeto muito bom. Ele foi bem desenhado e é bem interessante na forma como foi organizado, porque vai permitir organizar as importações para o Brasil e ter mais informações e controle sobre o que está acontecendo. A lógica dele de “canal verde” e “canal vermelho” também faz todo sentido para conseguir ter controle das informações.
A lógica faz sentido, mas um ponto que o Mercado Livre discorda foi a redução do imposto de importação. Imaginávamos que ia ser lançado o Remessa Conforme e que ele manteria os impostos anteriores, e teria a criação do ICMS – tanto acima quanto abaixo de US$ 50 para as pessoas jurídicas vendendo para pessoas físicas.
Reduzir de 60% para zero o imposto de importação abaixo de US$ 50, que é praticamente a totalidade das importações, não faz sentido.
Vi um dado que 98% das importações de remessas são abaixo de US$ 50. Tem que ter uma isonomia de impostos entre os players locais e os internacionais. Essa redução do imposto é um ponto com o qual não concordamos e que foi uma surpresa.
Achamos que isso tem que ser transitório e que o imposto de importação deveria voltar rapidamente. Ou para os 60% ou para um patamar que somado ao ICMS chegue nos 60%. Isso faria com que o imposto ficasse entre 60% e 77%.
Isso gera uma concorrência desleal? O fato de não estar havendo isonomia no tratamento entre os varejistas brasileiros e esses players internacionais?
Não sei se a palavra é desleal, mas certamente desequilibra a concorrência. Os players nacionais acabam pagando muito mais imposto que os players internacionais, e o que vemos em outros países é o contrário. A Índia proibiu essas empresas chinesas de venderem lá. Nos Estados Unidos, esse tema está no departamento antitruste: estão processando e vai ter consequência. Na Europa, também estão criando barreiras pelas práticas que muitas dessas empresas têm.
E no Brasil a gente abaixa o imposto de 60% para zero? Estamos indo na contramão do mundo.
O mundo está criando barreiras contra essas empresas, pelas práticas delas, e o Brasil está fazendo o contrário. Por isso, achamos que isso é transitório. Não dá para acreditar que isso vai ser algo definitivo.
Muita gente estranhou a portaria porque o próprio Governo vinha sinalizando que faria exatamente o oposto. Como vocês enxergam essa mudança radical de postura?
Exatamente. Se formos olhar um mês atrás, o discurso era outro. O que acontece? Chegam no Brasil de 600 mil a 700 mil pacotes por dia. Não existe mão de obra, infraestrutura, para conseguir checar esses produtos. E esses produtos acabam entrando como se fosse pessoa física vendendo para pessoa física, ou como se fossem compras fracionadas para ficar em valores muito baixos. Na nossa Aduana, nos nossos órgãos de fiscalização, não conseguimos fiscalizar esses produtos todos. Então acaba entrando, e os clientes não pagam imposto pela importação.
O que vimos é que a importação que é realmente pessoa física vendendo para pessoa física, é cerca de 1,2%. É praticamente nada. Então a primeira decisão do Governo foi: ‘já que é 1,2%, vamos fazer o seguinte, não existe mais isenção para pessoa física abaixo de US$ 50. Vamos acabar com isso, e agora toda importação abaixo de US$ 50 vai pagar imposto.’ Com isso, se teria a certeza da cobrança do imposto.
Mas aí teve repercussão negativa nas mídias sociais e o Governo voltou atrás e falou: ‘deixa eu pensar numa nova forma de criar o modelo’. Mas mesmo nesse momento ele estava indo numa linha de endurecer e cobrar de uma forma que cobriria todo mundo.
Na sexta passada a gente achava que o ‘Remessa Conforme’ ia manter pessoa física para pessoa física sem pagar o imposto e a pessoa jurídica teria duas opções.
A empresa que quiser aderir ao ‘Remessa Conforme’ cobraria o imposto direto da venda. A pessoa física veria o preço do produto, frete e imposto, e pagaria tudo, e aí a empresa recolheria e repassaria à Receita. E aí quando chega no Brasil ela poderia passar no canal verde de importação, que tem uma liberação mais rápida.
Já quem não aderisse ao ‘Remessa Conforme’ ficaria no canal vermelho, e os produtos demorariam um tempo maior para ser liberados, e teriam fiscalização.
Com isso, as empresas decidiriam se continuariam atuando como antes, e aí poderiam ter consequências se o Governo conseguisse fiscalizar e autuar, ou se elas iam arrecadar os impostos e fazer da forma certa. Mas os impostos seguiriam iguais! Seria apenas uma forma de aplicar a lei, e não uma contrapartida para um imposto zero.
O Ministro Fernando Haddad disse numa entrevista que a portaria foi uma resposta do Governo ao recuo da Shein. Que pelo fato dela ter decidido começar a produzir no Brasil, o Governo decidiu recuar também. Isso faz sentido?
Acho algumas coisas. Primeiro, não é só a Shein que se beneficia disso. Tem a Aliexpress, a Shopee, a Amazon. Tem várias empresas que se beneficiam, não só uma. A segunda é que vai levar um bom tempo até a Shein conseguir construir a infraestrutura de produção local. Então você vai zerar o imposto e privilegiar uma empresa enquanto isso? Dar um tempo para ela construir a infraestrutura local com um benefício em relação aos players locais? Ninguém consegue entender essa lógica.
Como o Mercado Livre, um dos líderes do setor, tem atuado em relação a esse tema? Vocês têm tido conversas com o Governo? Tem buscado mostrar a visão de vocês sobre isso?
Sim. A gente tem tido conversas com Secretarias de Receita. Temos colocado nosso ponto de vista desde antes até da primeira medida, que depois voltaram atrás.
Esse não é um tema novo. Parece novo, mas não é. E temos nos colocado à disposição do Governo para tentar construir um modelo que funcione com todos os interlocutores.
A expectativa de vocês é que seja revertida essa decisão?
Eu espero que sim. Eu não consigo entender: favorecendo estrangeiros contra a cadeia local. E ainda empresas que têm práticas… Não são todas, são algumas. Mas privilegiar essas empresas versus os vendedores e fabricantes locais?
Eu não consigo acreditar que isso vai ser feito de forma estrutural. Acho que foi uma maneira de lançar o Remessa Conforme, e em paralelo agora eles devem estar definindo qual vai ser o imposto de importação para ser colocado o quanto antes. Eu imagino e espero isso.
Porque olha o impacto. Um modelo de negócios desse está gerando emprego no exterior e não está arrecadando imposto. Um modelo como o do Mercado Livre e de outros players locais, está gerando emprego e pagando imposto.
Só no Mercado Livre formalizamos 250 mil empresas desde 2020, que geram emprego, recolhem impostos, fazem tudo de forma correta. Por isso defendemos uma concorrência que seja leal, bem balizada. Penalizar esses fabricantes locais com uma carga alta e beneficiar os que vêm de fora não faz nenhum sentido.
Qual o impacto que uma medida como essa têm para os sellers de vocês da categoria de moda?
Não consigo te dar uma resposta precisa. Mas o que posso dizer é que alguns modelos de produtos vão chegar a preços que os vendedores locais não vão conseguir competir. A mesma peça vai poder ser comprada do exterior a um preço menor do que se fosse comprada aqui, e com isso alguns vendedores vão deixar de existir. Eles vão ter uma venda muito menor, não vão conseguir sustentar os custos e vão fechar.
Alguns varejistas têm falado que poderiam começar a produzir no exterior e importar para o Brasil, porque sairia mais barato do que produzir no Brasil.
Ouvimos isso também. Que empresas médias e grandes poderiam mover a produção para a China, por exemplo. Porque o custo de produção lá ficaria muito mais baixo que aqui. E sem pagar o imposto de importação com o custo mais baixo, o preço seria menor. Mas o problema é que as menores não teriam essa capacidade. Então para as médias e grandes seria uma pena ter que desmobilizar empregos do Brasil para gerar empregos no exterior. Mas para as menores a situação seria bem mais crítica.
E para o Governo seria uma perda de arrecadação e de empregos.
Exato. É como se o que importasse mais fosse o preço daquele produto, independente de como ele está sendo feito. O produto vai ter um preço mais barato, mas não está pagando imposto e está sendo produzido no exterior. Os brasileiros vão ter acesso a um produto mais barato, mas de uma forma que não tem isonomia. E de uma forma que vai tirar empregos do Brasil. Isso vai ter um custo social. E, como eu já disse, o que vemos é o mundo todo indo na direção oposta: bloqueando esse tipo de player. O Brasil foi o único país do mundo que fez esse movimento oposto.
Vocês anunciaram recentemente um projeto piloto para ajudar a digitalizar os lojistas do Brás. Esse projeto é de alguma forma uma resposta ao crescimento da Shein no Brasil? Como ele dialoga com esse tema que estamos discutindo?
Nossa estratégia na categoria de moda é uma combinação de trabalhar com as grandes marcas, com marcas que são amadas, preferidas e que as pessoas procuram, e complementar com um sortimento para pessoas que preferem algo mais acessível. Trouxemos mais de 1.000 marcas para o Mercado Livre nos últimos anos, que são marcas icônicas em moda. E esse projeto no Brás é para entendermos como seria a cadeia de produção, não só com os grandes, mas com os menores, com marcas menos aspiracionais.
Como vocês avaliam o modelo de negócio de players como a Shein e a Shopee? Além do imposto existe uma vantagem no modelo deles, uma maior eficiência, por exemplo?
Eu acho que o custo de produção na China é um custo mais baixo mesmo. O custo de salários é menor e a cadeia de impostos é mais baixa, e a condição de trabalho também é diferente. No Brasil, as pessoas trabalham 40 horas por semana. A gente escuta que tem locais na China onde as pessoas trabalham 80 horas por semana. Então é a mesma pessoa, ganhando menos e com o dobro da produtividade, com uma cadeia de impostos mais baixa.
Isso obviamente gera um custo de produção menor. Escutamos que algumas empresas sim têm um custo de produção bem mais baixo. Agora, tem algumas que você entra no site e tem um tênis Nike de R$ 49, que claramente é falsificado.
Uma coisa é a empresa ser mais eficiente jogando as regras do jogo. A outra coisa é ela jogar fora das regras. Aí a gente discorda.
Fonte: Brazil Journal