Por Carlos Sambrana | No fim de abril, quando a varejista chinesa Shein se encontrava nas cordas, acusada de trazer produtos ao Brasil sem pagar impostos, o executivo Marcelo Claure, ex-todo-poderoso do Softbank e atual chairman da Shein para a América Latina, desembarcou no Brasil para uma série de encontros.
Ele se reuniu com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em uma audiência intermediada pelo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, dono da Coteminas, numa conversa que durou duas horas. De lá, Claure saiu com mensagens propagadas em manchetes de veículos de comunicação.
Da fabricação no Brasil, passando pela geração de 100 mil novos empregos e até uma forcinha – na verdade uma baita força – da primeira-dama Rosângela Lula da Silva, a Janja, em evitar a taxação dos pacotes de até US$ 50 enviados por pessoas físicas, viraram notícia. De uma hora para a outra, a Shein virava a chave do bombardeio que vinha recebendo.
E ainda tinha a cereja do bolo, um acordo com a Coteminas – a empresa do presidente da Fiesp, que se encontra endividada e com uma capacidade de produção ociosa – para produzir tudo com os fornecedores da companhia de Josué, que foi convidado para integrar o governo Lula, mas declinou.
Apesar de toda essa movimentação da companhia, os imbróglios, ao que parece, não acabaram. O NeoFeed apurou que as operações de remessa de dinheiro para o exterior da Shein, que envolvem Ebanx e Banco Topázio, duas empresas que ajudam a empresa nas transações realizadas por consumidores brasileiros em sua plataforma, estariam chamando a atenção do Banco Central.
Procurado e indagado sobre se, de fato, há uma investigação em curso, o Banco Central, por meio de sua assessoria de imprensa, enviou uma nota ao NeoFeed afirmando que “não comenta questões específicas sobre entidades reguladas”.
No cerne da questão, está o aumento expressivo de operações de câmbio e o pagamento de IOF. Se um consumidor brasileiro compra em uma plataforma internacional, de outro país, ele paga 5,38% de IOF. Numa operação tradicional de compra no exterior com cartões brasileiros é obrigação do banco emissor reter e repassar na fatura a compra do IOF separado.
Mas, segundo varejistas, a Shein, com a ajuda dos parceiros, estaria fazendo uma “simulação” de uma operação de remessa de câmbio para, em vez de recolher IOF de 5,38%, recolher um imposto de 0,38%. O Ebanx, que é acionista do Banco Topázio, faz a operação e o Banco Topázio, por sua vez, o lastro.
Um consumidor que recentemente fez uma encomenda na plataforma relatou que a compra de R$ 389,21 foi cobrada na fatura do cartão como se fosse despesa no Brasil. Ou seja, não pagou IOF de compra internacional na fatura do cartão de crédito. A única cobrança que aparece é de IOF de 0,38% de um recibo que o usuário recebeu do Ebanx confirmando que houve uma transação internacional numa operação de câmbio.
O NeoFeed escutou tributaristas para entender como isso é possível. Em tese, a Shein efetua a venda no Brasil, de um seller que está no exterior, como se fosse uma venda nacional. Recebe aqui e, depois, a loja remete para a matriz na China.
Sendo de titulares diferentes, o IOF seria de 0,38%, como foi o caso exemplificado. No entanto, se fosse de Shein para a própria Shein, a alíquota deveria ser de, no mínimo, 1,1%. Ainda mais, o fato de ser uma venda por cartão de um produto localizado no exterior, a alíquota correta deveria ser supostamente de 5,38%.
E tudo isso é realizado com a anuência dos consumidores. Na página da Shein, nos termos de condições de usuários, em letras bem pequenas, o cliente autoriza “a empresa e suas afiliadas a fazer declarações, enviar, alterar e invalidar todas declarações e documentos se necessário para a importações das mercadorias.”
R$ 100 bilhões de perdas?
Estima-se que, entre IOF e impostos federais e estaduais, a perda de arrecadação por conta do modus operandi das plataformas internacionais tenha girado entre R$ 53 bilhões e R$ 68 bilhões em 2022. Se nada for feito, dizem os varejistas, a perda de arrecadação poderá chegar a R$ 100 bilhões em 2025. Na indústria de moda, isso virou uma questão de honra e, obviamente, de sobrevivência.
As principais empresas brasileiras estão sofrendo por conta do que pode ser chamado de “pesadelo chinês”. “Sem esse contrabando todo, talvez eu não tivesse de fechar 90 lojas”, disse o CEO da Marisa, João Pinheiro Nogueira Batista, em recente entrevista ao Estadão, ressaltando que a crise da companhia foi acentuada pelas práticas de plataformas chinesas.
A Guararapes, dona da Riachuelo, fechou uma de suas fábricas, em Fortaleza, demitindo 2 mil pessoas e está em busca de um sócio. A varejista online Amaro entrou em recuperação judicial. A Renner e a C&A estão amargando resultados ruins trimestre atrás de trimestre por conta do “efeito Shein”.
Segundo um estudo do IDV, em 2018, as plataformas internacionais importaram produtos de pequeno valor que totalizaram R$ 7,4 bilhões. No ano passado, esse número chegou a R$ 67,8 bilhões. Só a Shein, por exemplo, saiu de zero para mais de R$ 7 bilhões de faturamento em três anos. São aviões cargueiros que, semanalmente, aterrissam no Brasil abarrotados de pacotes.
A partir de julho, em tese, o controle deverá ser maior. Isso porque vai entrar em vigor a Instrução Normativa 2.124, aprovada em dezembro de 2022. Por conta dela, a plataforma digital estrangeira será obrigada a declarar antecipadamente os seus próprios dados, do comprador e as informações do produto.
O ponto mais nevrálgico dessa norma é que os Correios terão de fornecer para a Receita Federal um formulário com informações do comprador. E esses dados serão fornecidos antes pelas plataformas. Ou seja, os Correios, que transportam 98% das entregas dessas plataformas, também farão parte da fiscalização, diminuindo os desvios tributários – o que dá para ser visto hoje nos preços praticados.
Mais barata do que a concorrência
Um estudo do BTG, que compara a Shein com concorrentes brasileiros, aponta a discrepância nos preços praticados e o impacto que isso tem. Em alguns casos, roupas e acessórios da varejista chinesa podem custar menos da metade do cobrado por Riachuelo, C&A e Renner.
O relatório, assinado por Luiz Guanais e Gabriel Disseli, compara uma cesta de oito produtos como vestido, jeans, jaqueta, saia, suéter, camiseta, botas e bolsas. No caso da chinesa, o preço é de R$ 648. Na Riachuelo, custa R$ 989. Na C&A, R$ 990. E na Renner, R$ 1.089. A Shein, segundo essa simulação do BTG, é 34,5% mais barata que a Riachuelo e C&A. E 40,5% do que a Renner.
Um jeans, por exemplo, custa R$ 69 na Shein. Uma peça semelhante adquirida em lojas como Renner e C&A sairia por R$ 160. Na Riachuelo, R$ 140. Por outro lado, uma camiseta na Shein custa em média R$ 52. Nas empresas brasileiras o valor de uma peça semelhante sairia por no máximo R$ 40.
O relatório aponta que o escrutínio por parte do Ministério da Fazenda será maior e ressalta que “esses movimentos também significam que Shein competirá nas mesmas condições que produtores/varejistas locais (o que pode levar a preços mais altos).” Segundo uma reportagem do jornal Valor Econômico, a Receita Federal vai propor a cobrança dos impostos no ato da compra. Mas as plataformas não seriam obrigadas a aceitar esse trâmite.
Varejistas brasileiros continuam no front de batalha, por meio do IDV, para coibir uma série de práticas consideradas desleais. “Ocorre que essas empresas chinesas foram praticando ilegalidades tributárias e fizeram todo mundo achar que era normal, que podia ser feito”, diz Jorge Gonçalves Filho, presidente do IDV, ao NeoFeed.
Um executivo de alto escalão de uma grande empresa de moda diz ao NeoFeed que o cenário no setor é de perplexidade. “Dizem que as empresas brasileiras estão reclamando porque não querem competição”, afirma ele. “Bobagem. Queremos competição em iguais condições.” E prossegue. “A Shein está com uma operação que levanta várias suspeitas de fraude e ninguém está fazendo nada.”
Práticas duvidosas
As acusações vão desde se passar por uma pessoa física fictícia, roubo intelectual e sonegação de impostos. Uma das estratégias mais atacadas pelas companhias brasileiras refere-se ao “de minimis”. Na prática, quando uma pessoa física do exterior manda uma encomenda para outra pessoa física no valor de até US$ 50 não há cobrança de impostos. Mas, é bom frisar, somente quando se trata de um presente ou algo pessoal. Quando é uma transação comercial, mesmo que seja abaixo de US$ 50, há sim cobrança de impostos.
As plataformas chinesas, alegam as empresas nacionais, estariam usando o “de minimis” para inundar o mercado brasileiro com seus produtos. Um executivo de uma varejista brasileira revelou ao NeoFeed que fez algumas dezenas de encomendas na Shein. “Um exemplo, eles vendem por US$ 71 e declaram US$ 41 no envio da remessa. Eles declaram abaixo”, diz o executivo de uma companhia listada na bolsa.
Outra artimanha seria simular a entrega de uma pessoa física. Em mais de uma dezena de compras, o remetente era sempre o mesmo: Tong Fang. A varejista brasileira, ao acionar profissionais na China, descobriu que o endereço daquela pessoa física era, na verdade, um grande parque industrial.
Ao contrário do que se pensa, os clientes da Shein não são das classes C e D. São, em grande parte, das classes A e B. Pessoas que têm mais informações, acesso a internet e bancarizados. E diversos YouTubers surgem nas redes sociais para mostrar como fazer várias compras fracionadas para não pagar imposto.
Outra acusação contra a Shein diz respeito a extração de imagens de sites de varejistas concorrentes que atuam no Brasil e uso em sua plataforma. O NeoFeed teve acesso a imagens, com a mesma modelo, e a mesma roupa, usada na plataforma da Shein. Isso aconteceu, por exemplo, com Zara, Renner e C&A. “Eles só tiram quando recebem uma notificação extrajudicial”, diz um executivo do setor.
O exemplo Amazon
Semanas atrás, o próprio ministro Haddad disse publicamente que não conhecia a Shein e sim a Amazon, onde comprava livros. Cogitou taxar os pacotes de até US$ 50 enviados por pessoas físicas para outras pessoas físicas como presentes. Mas foi demovido pelas pressões da primeira-dama Janja que, logo depois da reunião em que o ministro teve com Marcelo Claure, da Shein, declarou em suas redes sociais: “O Brasil que queremos tem brusinhas (sic)”.
Isso inflamou muitos varejistas ouvidos pelo NeoFeed. “Quero ver ela dizer isso quando as empresas brasileiras fecharem, como já estão fechando, gerando desemprego”, afirma um deles. A Shein já está começando a vender aqui no Brasil, mas o NeoFeed teve acesso a um documento encaminhado ao Ministério da Fazenda mostrando práticas ilegais da empresa.
Um grande varejista comprou sete peças de diferentes sellers brasileiros no marketplace da empresa. O valor total da compra foi de R$ 184,00. O pedido foi entregue e na embalagem veio a declaração de R$ 34,87, de apenas um produto, e a descrição de que aquele seller não se enquadrava na condição de contribuinte.
Detalhe: os sete produtos estavam dentro da embalagem, alguns com CNPJs inválidos, e o endereço era de uma grande loja no bairro do Bom Retiro, em São Paulo. “Já estão fazendo errado aqui dentro”, diz um executivo do setor.
O exemplo da Amazon, dado pelo próprio Haddad, aliás, é usado pelos empresários do setor. A companhia de Jeff Bezos está no Brasil há mais de 10 anos e não está nem entre as três primeiras. Ela opera vendendo produtos dos Estados Unidos, é verdade, mas recolhe os 60% de imposto de importação – o que equilibra a equação com quem vende no Brasil. Essa mesma discussão acontece em outros países e em diferentes escalas.
Na Índia, a Shein foi proibida de atuar, na Espanha sofreu sanções e na África do Sul está sendo investigada por sonegar. Em fevereiro deste ano, um grupo de senadores americanos, entre eles a democrata Elizabeth Warren, questionou a origem dos produtos fabricados na região de Xianjiang, onde o povo Uyghur é submetido a trabalhos forçados.
O canal de notícias Bloomberg encomendou dois lotes de roupas da Shein, um em março do ano passado e outro em julho, e contratou um laboratório para identificar a origem do algodão usado nas roupas que chegavam aos EUA. “Temos que concluir que é uma amostra típica de Xinjiang, na China”, disse o CEO da Agroisolab, Markus Boner, para a Bloomberg, depois da análise feita em seu laboratório na Alemanha.
No início de maio, parlamentares americanos que integram a US-China Economic and Security Review Commission, que investiga a atuação de empresas chinesas nos EUA, publicaram um report e pediram para que a Securities and Exchange Commission (SEC) dobre a atenção sobre a companhia, avaliada privadamente em US$ 66 bilhões e que pretende fazer um IPO em uma bolsa americana.
A Shein, fundada em 2008 e hoje presente em 150 países, tem investidores como Sequoia, General Atlantic e Tiger Global. Ela chacoalhou o mercado rapidamente com o seu modelo baseado em entender o público jovem e um software que identifica o que faz sucesso nas redes e o que está vendendo mais. Rapidamente, a companhia pluga 6 mil fábricas que produzem a toque de caixa.
Seu faturamento, que era de US$ 10 bilhões, em 2020, saltou para US$ 100 bilhões no ano passado. Definitivamente, um foguete. Agora, ela terá de ser rápida para sair do cerco em que se encontra.
O que elas dizem?
Procurados, a Receita Federal e o Ministério da Fazenda disseram, por meio de suas assessorias de imprensa, que “não se pronunciariam”.
Procurado e indagado sobre todas as questões envolvendo o meio de pagamento e o recolhimento de IOF, o Ebanx não detalhou a operação e disse, por meio de nota, que “não comenta em nome da Shein ou de qualquer outro cliente. Questões sobre diferentes modelos de negócio só podem ser respondidas e comentadas pelas próprias empresas.”
A empresa disse ainda que “oferece métodos de pagamentos locais para empresas globais, para que os consumidores dessas empresas possam realizar compras localmente, permitindo acesso dos brasileiros a produtos e serviços internacionais.”
A companhia prosseguiu dizendo que “opera como eFX, regulado pelo Banco Central do Brasil. A empresa tem um modelo de negócio que prevê que essas transações aconteçam 100% em conformidade com a regulamentação local e com os tributos aplicáveis de acordo com a legislação. Como é de conhecimento público, o EBANX também é acionista do Banco Topázio desde o início de 2021, e a relação busca otimizar a oferta de pagamentos para os clientes globais do EBANX.”
Procurada, a Shein, por meio de sua assessoria de imprensa, deixou algumas perguntas sem resposta e respondeu outras. Abaixo, o NeoFeed publica as perguntas enviadas e o que foi respondido.
Como a Shein, por meio do Ebanx, transforma compras que são internacionais em compras nacionais?
Sem resposta.
Por que nas compras que são claramente de produtos internacionais, vendidas por sellers estrangeiros, não são recolhidos 5,38% de IOF?
Sem resposta.
Como a compra no cartão é transformada em uma remessa de câmbio?
Sem resposta.
O cliente que compra no site da Shein autoriza essa transação de câmbio?
Sem resposta.
O Banco Topázio, do qual o Ebanx é sócio, participa dessa triangulação?
Sem resposta.
Quais são os estabelecimentos comerciais que realizam vendas no Brasil de produtos que estão localizados no exterior?
Esse modelo de negócio não se aplica à operação da SHEIN.
Como as adquirentes realizaram os cadastros desses estabelecimentos e fiscalizam esses estabelecimentos que operam no Brasil?
Não se aplica à operação da SHEIN.
Qual é a base legal para a realização dessas operações?
Não se aplica à operação da SHEIN.
Como a Shein vai coibir a sonegação de impostos de seus sellers, mesmo os brasileiros?
Para vender na plataforma da SHEIN no Brasil, todos os sellers precisam emitir nota fiscal. Além disso, todos os sellers que vendem no marketplace da empresa no país, são sellers CNPJ.
Existem acusações de que a Shein usa fotos dos sites dos concorrentes em seu próprio site. Isso aconteceu? Como isso é tratado internamente?
A SHEIN conta com regras e processos rígidos de verificação de informações dos sellers que ingressam em nossa plataforma. Quando identificamos que alguma conduta vai contra as nossas diretrizes e políticas, o seller em questão é notificado – podendo sofrer sanções ou mesmo ser excluído da plataforma – e a imagem do produto é retirada do ar.
A Shein é acusada de usar o “de minimis” para vender em larga escala. O que a empresa tem a dizer sobre isso?
O De Minimis é uma prática tributária global, legislada e reconhecida em mais de 120 países, que promove o fluxo de mercadorias de pequeno valor agregado e incentiva a inclusão comercial de classes menos favorecidas. A SHEIN faz parte de um ecossistema global que obedece às regulações aduaneiras e tributárias de cada país no que concerne a essa prática.
A Shein é acusada de usar trabalho forçado na região de Xianjiang. O que a empresa tem a dizer sobre isso?
A SHEIN não tem fornecedores na região de Xinjiang. Nossos fornecedores estão localizados em regiões como o Brasil, o sul da China e a Turquia. Levamos a sério a transparência da nossa cadeia de fornecedores e temos o compromisso de respeitar os direitos humanos e aderir às leis locais de cada mercado em que operamos. Nossos fornecedores aderem a um código de conduta rigoroso, alinhado às principais convenções da Organização Internacional do Trabalho. Temos tolerância zero em relação ao trabalho forçado.
* Em nota enviada por seu escritório de advocacia, o Banco Topázio “informa de forma expressa que a atuação da instituição não viola qualquer norma fiscal, regulatória ou de outra natureza, dando-se estritamente de acordo com os termos da legislação que lhe é aplicável”. E informa ainda sobre a ausência de contato do NeoFeed com o BANCO TOPÁZIO até o presente momento para apurar as informações veiculadas na matéria.
Fonte: Neofeed