Por Maria Luiza Filgueiras
O ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez, prestou depoimento ontem na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Fontes ouvidas pelo Pipeline, site de negócios do Valor, ajudam a entender a linha de argumentação do executivo, que ficou por quase quatro horas na autarquia.
Em linhas gerais, Gutierrez desconstrói a lógica esperada para essa investigação, de que em algum ponto houve uma ordem explícita e direta – dele ou para ele – para distorcer números e tampouco que o modelo que vinha sendo praticado na contabilidade era algo sigilosamente esquematizado e distante do conselho e credores bancários, mas uma brecha contábil exposta pelos juros e queda de vendas. Nessa argumentação, a companhia teria transformado um problema financeiro em um problema contábil para transferir um problema dos acionistas para os administradores – em 11 de janeiro a Americanas informou um rombo contábil de R$ 20 bilhões.
No atual estágio, o caso é ainda uma guerra de narrativas. Em conjunto, vão mostrando como cada peça se posiciona nesse tabuleiro – e como se moldarão aos fatos trazidos pelas investigações em curso.
Conforme pessoas próximas a Gutierrez, se houve fraude, ela foi anexada à empresa pela operação on-line, sobre a qual o executivo, mesmo como CEO, dizia ter pouca familiaridade. Definições sobre alterações de práticas contábeis eram, por estatuto, atribuições do conselho de administração. Uma fonte ligada a Americanas rebate que, também conforme o estatuto, caberia à diretoria a responsabilidade de submeter ao conselho essas práticas, o que não aconteceu nem por iniciativa da diretoria e nem por definição do board de fazer novas determinações. A fusão das operações on-line e física da varejista, em 2021, e a alta de juros é que teriam entornado o caldo.
“A ordem que ele sempre recebeu dos controladores era fazer a empresa crescer. Crescer, crescer, e era a isso que sua meta estava atrelada, não a lucro. Ele veio do mundo físico e ajudou a levar a rede de 90 para 3 mil lojas”, diz uma fonte próxima. “No meio do caminho, os donos resolveram comprar o Submarino, que deu origem à B2W. Ele participava dessa gestão, mas não ficava tão confortável sobre o tema por não ser sua área de conhecimento e ter uma outra dinâmica, mais dependente de crédito.” Gutierrez assumiu o comando da companhia em 2001. Cinco anos depois, a Americanas.com e o site Submarino se uniram, criando um negócio on-line mais robusto.
Sua demissão, que teria sido informada pelo board ainda em 2019, vinha em linha com a decisão de reposicionar a empresa com foco no e-commerce, e com isso foi criada uma nova estrutura com três CEOs e Gutierrez na coordenação. A partir dali, sua função seria fazer a integração das operações e a transição para um executivo com visão mais arrojada e “jovem”. Nesse processo, a empresa foi escrutinada por assessores legais e financeiros e auditores para a fusão das operações física e on-line.
A princípio, o sucessor viria da própria varejista, mas depois que a Americanas começou a perder valor após a integração e encontrou um processo mais complexo de união de sistemas, com uma operação ainda mais dependente de crédito, o conselho decidiu trazer Sergio Rial.
“As companhias foram integradas antes dos sistemas estarem integrados, o que basicamente implicava em fazer conta. Somar e subtrair o balanço de lá com o balanço de cá”, diz um executivo.
O pico de preço da ação da Americanas foi em 2020, com a pandemia criando demanda no on-line, mas com a sequência de problema nos sistemas, perda de vendas, ataque hacker e alta de juros, o jogo mudou.
A dinâmica de financiar o fornecedor e se financiar nos bancos funcionava enquanto a companhia continuasse a aumentar vendas e as despesas financeiras estivessem sob controle. A companhia ganhava velocidade e prazo, e os bancos ganhavam spread em volumes constantes. Por essa lógica, o uso do risco-sacado teria sido feito usando o que consideravam brechas regulatórias. Quando Rial anunciou “inconsistências”, a primeira coisa que afirmou é que estava tudo ali no balanço, mas nas linhas erradas.
Em 2020, a companhia faz um aumento de capital de R$ 8 bilhões para reequilibrar o balanço e, no ano seguinte, anunciou a fusão em que o trio de acionistas – Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles – não estava disposto a abrir mão de controle – o que gerou críticas de governança. Num novo formato, topavam ser diluídos, argumentando atender à demanda do mercado.
Foi depois disso que os juros então começaram a subir, e a dívida empinou de novo. “Gutierrez olhava a situação do ponto de vista do caixa e via a companhia seguindo para o mesmo patamar de antes do aumento de capital”, diz um executivo. “Em maio do ano passado, a administração discutiu a necessidade de um novo aumento de capital”. Essa conversa teria incluído Gutierrez, o então CFO, Sicupira e o conselheiro Eduardo Saggioro. O assunto voltou a aparecer, segundo duas pessoas, num retiro de liderança que a empresa fez naquela época.
Mas ao invés de capitalizar a companhia, a aposta era trazer alguém que conseguisse faturar em cima do que estava drenando a empresa: os juros. “Era a única varejista que não tinha banco e eles acreditavam que o desempenho estava pior que os pares por conta disso”, diz uma fonte. Bancos confirmam que nunca tiveram encontros com Gutierrez, muitos deles não sabem nem que aparência física tem. Rial seria responsável por montar o banco da Americanas, a partir da estrutura da “fintech” Ame.
Com a situação ainda pior das finanças, a Americanas tentou renegociar debêntures em novembro e início de dezembro. Um executivo diz que a varejista também chegou a sondar os bancos para converter parte da dívida em ações ainda em dezembro, o que três chefes de bancos negam categoricamente.
“Então a companhia já vinha mal e, de repente, tem um problema contábil, e não financeiro? A diferença disso é que um problema é do acionista, o outro é da administração”, define um executivo. Por essa lógica, não teria havido uma “arquitetura de fraude” na companhia, mas um processo que desembocou “no lado mais fraco”.
A grande tese por trás dessa narrativa – e que parece ignorar as consequências legais e reputacionais para cada parte – é que empresa e bancos entraram numa queda de braço em que a varejista só ficaria de pé armando a recuperação judicial. “Como eu faço se as dívidas dos bancos não estão dentro do balanço? Chamo essa dívida na RJ. A empresa perdeu o pé dessa gestão financeira e ficou num beco sem saída, com sua ‘melhor pior ideia’. O CEO olhava o caixa, não a regra da contabilidade”, argumenta uma fonte próxima a Gutierrez.
Conforme essa pessoa, o que dois executivos da Americanas entregaram a Rial quando ele assumiu foi “um pacote de más notícias”. “A informação”, diz, “não era que Gutierrez tinha forçado todo mundo a fazer vista grossa para o balanço, mas sim que a companhia estava numa situação periclitante de caixa, sob pressão de crescimento, e isso tinha escancarado um buraco na contabilidade.”
Gutierrez, que fez uma venda relevante de ações da Americanas assim que deixou a companhia, no ano passado, segue como acionista da empresa. O ex-CEO não deu entrevista.
Fonte: Valor Econômico