Para varejista, pontos de venda mantêm relevância ao servir como base de distribuição para as operações online
Por Joana Cunha
Desde que a família Hering desembarcou no Brasil, há mais de 140 anos, a Cia.Hering atravessou dificuldades como a gripe espanhola e crises econômicas.
A empresa viveu grandes mudanças, desde a transformação da camiseta (antes usada só como roupa íntima) até a abertura de capital, em 2007.
A entrada na Bolsa é considerada um marco para a longevidade, segundo Fabio Hering, presidente da empresa e que hoje prepara a sucessão com o filho Thiago Hering.
No 2020 da pandemia, o ecommerce avançou na empresa, mas sem ameaçar o varejo físico, tido como complementar, afirma Thiago.
A crise sanitária preocupa. “Tem que fazer algo para regular o ambiente, porque, com esse desemprego, e sem a renda acompanhando a inflação, gera crise de demanda, de consumo. E mais desigualdade”, diz Fabio.
Fundada em 1880 por dois irmãos imigrantes da Alemanha que chegaram a Blumenau (SC), a Cia.Hering, dona de marcas como Hering e Dzarm, tem hoje quase 4.500 funcionários e 758 lojas no Brasil, além de presença em países como Paraguai, Uruguai e Bolívia. Em 2020, a receita líquida ficou em R$ 1,07 bilhão
Como começa a história da Hering no Brasil?
Fabio Hering Com a imigração dos irmãos Hermann e Bruno Hering em 1878 para Blumenau. Em alemão, Hering é um peixe, por isso a marca dos dois peixinhos. Eles montam a empresa em 1880, a partir de um tear que receberam no pagamento de uma dívida. Sou a quinta geração.
Qual foi o momento mais difícil?
FH Vivemos a pandemia hoje, mas os meus antepassados viveram a gripe espanhola. Foram guerras mundiais, ciclos econômicos diversos, inflações, hiperinflação. Mas a visão que carregamos até hoje é colocar o negócio e a empresa em primeiro lugar, acima do patrimônio pessoal. Isso fez com que ela tivesse ciclos de crescimento muito fortes no milagre econômico brasileiro, quando eu ainda era criança. Na década de 70, teve expansões fortes com fábricas em outras regiões, como no Nordeste.
Como surge a camiseta?
FH Na década de 1970 e no fim dos 1960, deixou de ser roupa íntima para passar, principalmente pelos jovens, a ser um produto de uso contemporâneo. Aí se criam estampas na camiseta com um significado de transmitir o que a sociedade estava querendo exprimir, a moda. Foi um foguete de alavancagem para a companhia.
E depois?
FH Em 1980 entramos em um ciclo de inflação e cenários econômicos difíceis, choques, troca de moeda. Complicou o ambiente de negócios. A companhia passou a explorar mercados externos e ter parte da receita em moeda americana. Conseguiu se ajustar ao momento. Isso não significa dizer que ela nunca viveu fases críticas. Ela nunca quebrou mas quase quebrou, o que também foi ensinamento. Conseguiu, em 140 anos, sempre se adaptar.
Mais recentemente, 2007 foi um marco importante porque os acionistas controladores, a família Hering, decidiram criar um ciclo de crescimento novo e foi a mercado com uma oferta de ações. Essa mudança fez com que a família deixasse de ser controladora do capital da empresa. Continua sendo controladora da gestão, mas tem outros acionistas com participação no futuro da companhia. Foi uma decisão sábia para a longevidade da empresa.
Agora estamos em um momento de transição de gestão. Estou presidente da companhia, já há bastante tempo, preparando uma sucessão. Por consenso dos acionistas e no alto padrão de governança, com o conselho de administração, acabamos em conjunto fazendo a sucessão com alguém da família, que, por acaso, é um dos meus filhos. A paixão pelo negócio está no sangue. Começou com os irmãos. O Bruno não teve filhos. Somos descendentes do Hermann, e o legado de empreendedorismo permanece.
Qual o papel do ecommerce nessa perpetuidade?
FH De um passado mais recente, a gente vem com as inovações do comércio eletrônico. Não só abertura de loja eletrônica, de um ecommerce, mas com o que se chama hoje de omnicanalidade. As lojas servem também de ponto de distribuição para o ecommerce. A primeira loja eletrônica vem de cerca de 15 anos e se acelerando.
A pandemia acelerou?
FH Foi um catalisador. Se até um tempo atrás o foco era na loja eletrônica, hoje não é. É a venda em qualquer ambiente, seja físico ou virtual. Eles têm de se combinar, criar modalidades: como a compra na loja física no shopping mas através de um smartphone, ou a compra no eletrônico de casa para buscar na loja etc.
Não é o fim da loja física?
FH Sem destruir o ambiente físico. Ele é enorme vantagem. Se eu tenho mais de 700 lojas espalhadas no Brasil, eu tenho potencial de mais de 700 hubs de distribuição para o cliente poder comprar e receber em horas sem sair de casa. O ambiente físico é companheiro do eletrônico e vice-versa. Aquela impressão que se tinha de que o eletrônico ia destruir o físico é totalmente errada. E a gente constata isso nas companhias que foram criadas só no ambiente eletrônico e também estão procurando o físico. Essa harmonia dos dois é o que o futuro está mostrando.
Qual é a sua lembrança da comemoração dos cem anos da Hering?
FH Eu tinha 21 anos. Teve uma festa em Blumenau com presença de autoridades. Na época vivíamos ainda o ambiente militar. Me lembro que o presidente João Figueiredo esteve lá com ministros. E tivemos uma festa com colaboradores e suas famílias. Foi marcante ver todos juntos. Me recordo de uma das frases que se ouvia: ‘Parabéns pelos primeiros cem anos’. Imaginar que hoje tem 140, e quando se olha para a frente não é impossível que chegue aos 200.
Qual é seu sentimento sobre a economia e a pandemia?
FH Pandemia é tristeza, pelos mortos, pela doença e porque traz mais desigualdade social. Vivemos um momento estranho quando se avalia o ambiente econômico, porque se vê uma dispersão grande de desempenhos. Tem empresas ganhando muito e empresas perdendo muito. E o ambiente inesperado. Quando começou, no primeiro trimestre de 2020, todo mundo se preparou para retração de tudo. No nosso caso, fechamos as lojas em 19 de março, exceto a eletrônica. A companhia se preparou para retração absurda. Repensou o negócio.
E a ação do governo?
FH Acho que o governo até trouxe uma boa reação, com planos consistentes para manutenção do emprego dentro do possível. Até acho compreensível o custo do deficit fiscal disso. Ele não tinha perspectiva de ser recorrente. Acho que era importante naquele momento para sobrevivência.
Acaba errando um pouco porque o auxílio emergencial, na minha visão, era algo importantíssimo para fazer as pessoas que não tinham renda sobreviverem. Mas não para fazer elas trocarem de geladeira, de carro. Acho que teve um pouco de confusão. Criou uma certa demanda artificial. E acabamos entrando no segundo semestre com uma surpreendente mudança de mercado. Para nós, por exemplo, no quarto trimestre, o grande desafio foi conseguir produzir, porque tínhamos nos desmobilizado. O mercado, mais aquecido. E a produção, retraída. Para retomar aquilo, um desafio, que até continua.
A gente vê aquecimento meio artificial. Não tem tanta lógica. Tanto é que o grande indicador que demonstra isso de fato é essa pressão inflacionária que está nos preços do atacado. No varejo, nem tanto. Acho que tem que fazer alguma coisa concreta para regular o ambiente, porque com esse desemprego, e sem a renda acompanhando a inflação, gera uma crise de demanda, de consumo. E aí volta a questão de mais desigualdade. Eu sei que não é simples resolver. A gente busca dos poderes Executivo e Legislativo uma aceleração das reformas necessárias, e eu acho que esse ambiente político tem se mostrado um pouco tenso demais.
O que falta fazer?
FH Infelizmente, a gente está vivendo hoje uma pandemia que parece ser descontrolada. Notícias mostram drama em assistência hospitalar. Acho que estamos em um momento em que o importante é que as lideranças realmente demonstrem coerência e consigam encontrar um caminho de calma para a população e retomada dos negócios sem essas oscilações de fecha tudo ou abre tudo, ou o mercado despenca ou volta subitamente a consumir demais.
Acho que esse padrão de dar auxílio emergencial e tirar não é o mais interessante. O interessante mesmo é acelerar privatizações, atrair capital estrangeiro. A postura do governo, muitas vezes, afugenta capital. Não me refiro a capital para entrar em mercado financeiro especulativo. Me refiro a capital para projeto de infraestrutura, investimento que gere emprego, renda para a sociedade e combata essa desigualdade.
A preocupação com postura do governo é mais recente? A agenda liberal não é o esperado?
FH É confuso. O compromisso com a agenda liberal, que foi parte integrante da campanha do governo, é posto em xeque às vezes. E deixa a sociedade, não só o empresário, meio confusa sobre qual é o caminho. Parece não ter consistência. Esse episódio de troca da presidência da Petrobras, não quero entrar no mérito da troca, acho que é direito do acionista controlador trocar. Não avalio um ou outro nem tenho preconceito porque é general ou psicólogo. Tanto faz.
Mas, de novo, é o como foi feito. Deu espaço para a confusão de: então está se jogando fora o projeto liberal? É algo, na minha opinião, absolutamente necessário para uma economia como a brasileira, tão potente. Com tantos milhões de consumidores e riqueza natural, parece fácil. Se a gente conseguisse colocar investimento nisso, ia gerar tanta riqueza, emprego, modernidade. E esse lado político parece que é fazer gol contra. Não dá para entender bem.
Como foi a escassez de matéria-prima na pandemia?
Thiago Hering A retomada em meados de agosto pegou todos de surpresa. O mercado não esperava retomada tão acelerada. Principalmente no início, convivemos com escassez de matéria-prima e insumos, um desafio grande na retomada da cadeia produtiva. Conseguimos encontrar fontes não convencionais para driblar essas adversidades. Vivemos, ainda assim, um cenário desafiador de pressão inflacionária em matérias-primas e insumos, de retomada lenta da produtividade fabril mas, pouco a pouco, encontrando elementos para restabelecer.
O comportamento do consumidor na loja mudou na pandemia?
TH A pandemia trouxe mudança no comportamento de compra em loja física e ecommerce, com maior busca por conforto, camiseta básica, pijama, moletons. Nas lojas físicas, vimos um cliente muito objetivo, reduzindo tempo de permanência, colocando mais itens na cesta.
Teve diferença entre loja de rua e shopping?
TH A pandemia trouxe dispersão de resultados. A loja de rua tem conseguido atrair mais, tem ido acima na comparação com shopping, tanto em menor perda de fluxo como em maior tempo de permanência, indicadores de produtividade como venda média, peças por atendimento maior.
Fonte: Folha de S. Paulo